Você, certamente, já deve ter ouvido falar em características que supostamente tornam um livro bom ou ruim para crianças. Por exemplo, precisa ser bem colorido ou então não vai chamar atenção. Há ainda o clássico “tem que ser curtinho, porque criança não consegue permanecer muito tempo na mesma história”. Para completar, outro pensamento comum: não adianta trazer uma narrativa que represente uma realidade diferente daquela onde a criança está inserida, porque ela não vai se conectar.
Mas quer saber a verdade? Tudo isso é balela e não são poucas as mentiras sobre os livros infantis. A literatura é muito mais do que uma coleção de critérios, e vai bem além de uma lista de itens que, uma vez checados, nos dão o poder de dizer: “ok, temos aqui um bom livro infantil”.
Os mitos sobre livros infantis e a formação leitora
Talvez as mentiras sobre os livros infantis tenham origem na ideia de que existem assuntos inadequados para as crianças. E, aqui, é importante não confundir o assunto com a abordagem, viu? Há quem pense que devemos preservá-las de temas considerados difíceis ou dolorosos, porque o mundo em si já é duro demais, e que os livros infantis precisam necessariamente ensinar alguma coisa e ter moral sempre – caso contrário, não prestam.
Mas, se olharmos para a literatura infantil como ela verdadeiramente é, com toda sua beleza e seu potencial transformador, seremos capazes de perceber sua importância para o desenvolvimento de habilidades fundamentais, que permitem às crianças ler o mundo, e não apenas os livros.
A seguir, vamos conhecer algumas das mentiras sobre os livros infantis para que você não caia mais nessas conversinhas!
1. Livro para criança precisa ser bem colorido
As cores e o tipo de ilustração dos livros infantis, quando presentes, são uma escolha dos autores e costumam estar profundamente relacionadas com a história que se quer contar. No entanto, existem livros infantis em preto e branco que, além de serem belíssimos, são capazes de prender a atenção, emocionar e conquistar o coração das crianças.
Veja Rio, o cão preto, de Suzy Lee, por exemplo. Além de não ter cores, algumas ilustrações são bem pequenas, e nem por isso essa deixa de ser uma obra extraordinária.
2. Livro para criança deve ensinar boas maneiras
Se isso fosse mesmo verdade, o que seria de títulos como Píppi Meialonga, de Astrid Lindgren e Ingrid Nyman, ou Onde vivem os monstros, de Maurice Sendak, dois dos maiores clássicos da literatura infantil mundial? Essas obras trazem como protagonistas crianças com autonomia, que expressam seus sentimentos, desejos e vontades, e dispensam a aprovação do leitor para serem exatamente como são.
Há uma ideia equivocada de que apresentar histórias com crianças “desobedientes” pode incentivar nossos filhos a adotar o mesmo comportamento. Mas você já pensou que pode ser justamente o oposto? Colocar as crianças em uma posição de observação do outro, semelhante a si, pode abrir as portas para um belo e respeitoso diálogo sobre responsabilidade, causas e consequências, empatia e muito mais.
3. Existem temas que não devem ser falados com as crianças
As crianças estão inseridas no mundo, tanto quanto nós. Ainda que, momentaneamente, com menos bagagem e referências, elas também passam por situações delicadas que podem ser tristes e dolorosas, como a morte, a solidão e a violência. A literatura pode ser um instrumento poderoso para alcançar essas crianças e conversar com elas sobre tudo isso, de maneira a validar, acolher e transformar esses sentimentos.
Obras como Leila, de Tino Freitas e Thais Beltrame; Aqui e Aqui, de Caio Zero; Todos contra Dante, de Luís Dill; e Eu devia estar na escola, com cartas escritas por crianças do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, abordam temas difíceis, mas que não podem ser isolados das crianças, principalmente quando estão, elas mesmas, no centro dessas questões.
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4. Livro de poesia não serve para criança
Essa é uma das maiores mentiras sobre os livros infantis! A poesia é um gênero literário muito rico, capaz de nos transportar para outros tempos e contextos, enquanto nos emociona e toca profundamente.
Há poemas que nos marcam de tal maneira que carregamos seus versos conosco por toda a vida, e para eles nos voltamos de tempos em tempos, para receber um afago, um colo, um novo fôlego. Por que, então, privar as crianças dessa possibilidade? Além disso, a sonoridade dos poemas costuma envolver os pequenos, já acostumados com a melodia de cantigas.
Obras como Uma ideia toda azul, de Marina Colasanti, Ou isto ou Aquilo, de Cecília Meireles e Odilon Moraes, e Para criar passarinho, de Bartolomeu Campos de Queiroz e Guto Lacaz são ótimas opções para apresentar a poesia às crianças, ou fortalecer os vínculos que os pequenos já possuem com ela.
Direto do Instagram: 8 livros de poesia
5. Livro tem idade certa para ser lido
A faixa etária recomendada para a leitura de um livro é apenas um dos fatores que podemos levar em consideração ao escolher um título junto com nossos pequenos. Como o que cada um de nós extrai de uma narrativa está profundamente associado às nossas próprias experiências e repertórios, uma mesma obra será interpretada de maneiras distintas por um bebezinho, uma criança de cinco anos, outra de nove e por nós mesmos, já adultos. Assim, vale mais a pena focar nos temas de interesse da criança do que na faixa etária em si.
Tome como exemplo a obra A árvore generosa, de Sheldon Allan Silverstein. É um livro clássico para crianças mas, a cada releitura, em diferentes fases da vida, vamos percebendo aspectos que se complementam em torno do mosaico das nossas experiências.
6. Livro para criança precisa ter texto (mas não muito)
Mais uma das mentiras sobre os livros infantis sem fundamento! Existem obras incríveis onde há poucas ou nenhuma palavra escrita, como O país mais bobo, de Dipacho; Broto, de Fran Matsumoto e Raíssa Kaspar; e As mãos do meu pai, de Deok-kyu Choi, absolutamente capazes de fazer rir, pensar e emocionar.
No entanto, muitos adultos ficam sem saber o que fazer com obras assim, em que não há um texto escrito para guiar a leitura. Uma dica: não tenha medo do silêncio. Observe as imagens com calma e permita que sua criança faça o mesmo. Não tente preencher as lacunas a qualquer custo.
Por outro lado, a ideia de que livros infantis não podem ter muito texto, como se as crianças não fossem capazes de se envolver com narrativas mais longas, também é um grande equívoco. Há textos tão fascinantes que, por mais grossos que sejam os livros, vão ser devorados em pouco tempo, e ainda deixar aquele gostinho de quero mais quando chegar ao fim.
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7. Livro infantil é coisa (só) de criança
Os livros infantis podem ser tão transformadores e tocantes para as crianças quanto para os adultos. Há muitas obras que provocam verdadeiras reflexões sobre a vida, nossas escolhas, nossa relação com nós mesmos, com os outros e com o mundo, que não só podem como devem ser lidos e relidos muitas vezes pelos adultos também.
Essas narrativas, como A avó que sabia das coisas, de Nana Toledo e Simone Matias; Quando vejo você, de Yael Frankel; Inspire e expire, de Hu Yifan; e O menino com flores no cabelo, de Jarvis oferecem uma oportunidade valiosa de olhar para a história que estamos construindo, e pensar, inclusive, sobre quais outras regras inventadas não fazem o menor sentido para as nossas vidas.
Como você pode ver, as possibilidades trazidas pelos livros são infinitas. Inspire-se em Bu, do livro Buscar, de Olga de Dios: levante a cabeça, observe o que há ao seu redor, enxergue além dos estereótipos e, certamente, você descobrirá um mundo repleto de obras extraordinárias para sua criança e, por que não?, para você também.
Estante Quindim
Além dos livros já citados anteriormente, conheça aqui mais três obras incríveis para ler com as crianças que fogem dos estereótipos da literatura infantil: