De acordo com o Instituto Fogo Cruzado (que usa tecnologia para produzir e divulgar dados abertos e colaborativos sobre violência armada), as operações policiais foram o principal motivo para vitimar crianças e adolescentes entre 2016 e 2023 na região metropolitana do Rio de Janeiro: 286 foram atingidos nessas circunstâncias, resultando na morte de 112 e deixando outros 174 feridos. 

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Em meio a esse trágico cenário, margeando a Baía da Guanabara e entre importantes vias que cortam a capital fluminense, ficam as 16 favelas da Maré, onde moram mais de 140 mil pessoas. Assim como outras comunidades no Rio de Janeiro, a Maré é alvo de constantes operações policiais.

Dados do 7o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré mostram que, ali, as mortes em operações policiais subiram 145% em 2022 na comparação com 2021. Também em 2022, 62% das operações ocorreram perto de escolas e creches. O relatório é uma iniciativa da ONG Redes da Maré, nascida da mobilização comunitária a partir dos anos 1980, que tem como missão tecer as redes necessárias para efetivar os direitos dessa população.

De acordo com o Censo Populacional da Maré 2019, organizado pela ONG, a maior parte dos moradores do complexo é jovem: 51,9% tinham menos de 30 anos; na faixa etária de 0 a 14 anos, eram 34.034 ou 24,5% – um em cada quatro moradores.

Com esses dados em mente, fica a pergunta: quem dá espaço para que as crianças da Maré digam o que sentem e como vivem em meio à violência e às consequências das operações policiais? Foi pensando nisso que a Redes da Maré, em 2019, começou o projeto que, em março de 2024, levou ao lançamento do livro Eu devia estar na escola, publicado pela Editora Caixote, narrado e ilustrado por muitas crianças moradoras de favelas da Maré.

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Capa do livro Eu devia estar na escola, escrito por muitas crianças moradoras das favelas da Maré.

Em 2022, nas favelas da Maré…*

…aconteceram 27 operações policiais.
…houve oito confrontos entre grupos armados, além de sete registros de tiros com vítimas e 80 de tiros pontuais.
39 mortes foram causadas por armas de fogo. As mortes em decorrência da violência armada aumentaram 77% em relação ao ano anterior e 87% delas tiveram indícios de execução.
…ocorreram 283 violações de direitos, além dos homicídios – 91,5% aconteceram em contexto de operações policiais.
…foram 15 dias de atividades suspensas nas escolas em decorrência da violência armada.
unidades de saúde ficaram 19 dias sem atividade.

*Dados do 7o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, da ONG Redes da Maré.

As diferentes infâncias

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Imagem do livro Eu devia estar na escola, escrito por muitas crianças moradoras das favelas da Maré.

Quando se pensa em dar espaço para escutar o que as crianças da Maré têm a dizer, é preciso, primeiro, entender melhor o universo da infância. “Existem diferentes infâncias. No entanto, de uma forma geral, há uma estrutura no sentido de apresentar um único modelo de infância, que é idealizado, de origem colonizadora. As crianças consideradas mais aptas, mais inteligentes, mais bonitas, mais adequadas, são as que se enquadram nesse modelo eurocêntrico. Mas nós estamos aqui falando de crianças de favela”, explica Adelaide Rezende, pesquisadora do livro Eu devia estar na escola e pós-doutoranda em psicologia na UFRJ. Adelaide estuda infância, brincadeira e racismo, é editora da revista DESidades, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC), da UFRJ, e tecedora da Redes da Maré.

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Então, quem são essas crianças? Adelaide continua: “São crianças que já estão à margem da sociedade, porque estão distantes do modelo eurocêntrico, no sentido da aparência. Na maioria, são negras e pardas. Vêm da cultura de uma família de trabalhadores e trabalhadoras. Elas também não têm acesso a direitos que são constituídos como direitos de todos. Ao falar especificamente da Maré, precisamos dizer que também são várias infâncias, porque são 16 favelas, o território é extremamente diversificado. Existem conjuntos habitacionais de funcionários, por exemplo, da UFRJ, de classe média. Há também favelas que são aglomerados, puxadinhos, lages que as pessoas vão construindo. Se existem classes diferentes dentro das favelas da Maré, vão existir estruturas familiares diferentes e, consequentemente, infâncias diferentes”.

No entanto, existe algo que, segundo Adelaide, atravessa as infâncias da Maré e de outras favelas nos grandes centros urbanos: os conflitos armados. Foi esse um dos aspectos que, em 2019, levaram ao projeto das cartas que expressam os desejos das crianças em relação ao cenário de violência. 

“As crianças da Maré não querem conflitos armados, não querem ter que andar até a padaria e, no percurso, encontrar vários homens com AR-15, fuzis, armas grandes”, conta Adelaide. Ela segue explicando que o que é chamado de guerra ao tráfico “vem justificando o fortalecimento dos armamentos dentro das favelas e expondo a vida de todos que moram ali a frequentes tiroteios. Quando não são operações policiais, são disputas territoriais entre as diferentes forças. A Maré tem o Comando Vermelho, o Terceiro Comando e áreas de milícias”.

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Imagem do livro Eu devia estar na escola, escrito por muitas crianças moradoras das favelas da Maré.

Assim, entre julho e agosto de 2019, 1.509 cartas, entre desenhos, bilhetes e pedidos, foram produzidas por crianças e jovens e entregues ao Tribunal de Justiça do Estado pela Redes da Maré, expressando o que sentiam diante dos confrontos armados das favelas e solicitando o restabelecimento da Ação Civil Pública (ACP) da Maré, vigente desde 2017, mas que, naquele momento, estava suspensa.

A ACP da Maré prevê uma série de medidas para diminuir riscos e danos durante os recorrentes confrontos armados, incluindo as operações policiais, que acontecem na região. Entre elas: proibição de operações policiais no Complexo Maré em horário de deslocamento escolar; necessidade de haver ambulâncias acompanhando as ações; a obrigação de instalar equipamentos de GPS, vídeo e áudio nas viaturas da Polícia Militar e da Polícia Civil.

As cartas foram entregues ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 12 de agosto, mesmo dia em que a Defensoria Pública solicitou formalmente o restabelecimento da ACP da Maré – ela tinha sido suspensa em 19 de julho de 2019. Apesar de terem sido arquivadas, as cartas repercutiram na mídia. Dois dias depois da entrega, o desembargador Jessé Torres decidiu retomar a ACP, que entrou novamente em vigor, em regime provisório, até que o caso seja julgado.

Direitos violados

Viver em um cenário como o do Complexo da Maré viola uma série de direitos. Em primeiro lugar, o direito à vida. Para além disso, o direito de ir à escola. De acordo com Adelaide, quando acontecem operações policiais, as aulas não ocorrem. “Em um sistema competitivo em relação às seleções (nas universidades, concursos, vagas de trabalho), essas crianças estão o tempo inteiro sendo roubadas do direito de competir por um lugar na sociedade”, afirma. Ela ainda ressalta o direito à saúde, pelo impedimento, por exemplo, de chegar a um exame ou consulta que estava agendado e que pode demorar meses para que seja novamente marcado no sistema público de saúde. 

Há, ainda, o direito à segurança pública para poder circular pelos espaços do território onde se vive. “Na Maré, as casas são muito apertadas e muitas pessoas moram em uma mesma casa. E tudo é muito quente, vivemos em um país tropical. Isso faz com que as ruas estejam sempre cheias de gente. Quando tem tiroteio, todos voltam para dentro de casa e ficam encolhidos ali, oprimidos”, relata Adelaide. “[A situação] atravessa todos os outros direitos”, diz.

Exemplos de todas essas violações são encontradas no livro Eu devia estar na escola, como neste trecho: “De tarde, eu teria capoeira. Tinha combinado de ir com minha avó ao mercado. Eu tinha médico. No entanto, aqui estou: atrás da máquina de lavar. Embaixo da cama. Embaixo da mesa. E se eles entrarem na minha casa?”.

Ao ver a história das cartas e relatos como este, Isabel Malzoni, criadora da Editora Caixote, entrou em contato com a Redes da Maré para tentar escrever um livro. “Ela pensou em como poderia abordar esse tema, que é tão difícil, tão duro e triste, com outras crianças e jovens. É um assunto que não combina com a imagem idealizada que se tem da criança, da alegria, brincadeira. Como fazer um livro que alcançasse outras infâncias e juventudes, as famílias que não sabem sobre essas realidades, sem que fosse pesado?”, relembra Adelaide.

O primeiro passo foi tentar entrar em contato com as pessoas que tinham escrito as cartas em 2019. No entanto, com algum tempo passado, algumas já não eram mais crianças. Ainda veio a pandemia, que tornou a articulação mais complicada. Era preciso complementar o material existente.

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Imagem do livro Eu devia estar na escola, escrito por muitas crianças moradoras das favelas da Maré.

“A Eliana Sousa Silva, diretora-geral da Redes da Maré, disse para a Isabel falar comigo. Eu já estava visitando algumas escolas e fazendo algumas atividades. A Isabel me apresentou a Ananda Luz, que é outra pesquisadora da infância e também escriba do livro. Uma das escolas em que eu já estava discutindo a questão da segurança pública é o CIEP [Centro Integrado de Educação Pública] Presidente Samora Machel. Conversei com a direção e planejamos uma semana de oficinas de desenho, junto a um arte-educador. Criamos um clima em que as crianças pudessem se sentir à vontade para falar sobre um tema muito delicado, que traz ansiedade, tristeza. Também há o medo por conta dos poderes armados que existem ali. De alguma maneira, é preciso construir um vínculo de confiança para que as pessoas se sintam à vontade em falar, principalmente as crianças. E esse vínculo eu já tinha, pelo trabalho de anos na Maré”, conta Adelaide.

Nesse processo, ao longo de uma semana, Isabel e Ananda saíram de São Paulo e se juntaram à Adelaide e ao arte-educador na escola, em oficinas de desenho, piqueniques e diversas rodas de conversa com as crianças. Tudo foi explicado a elas: desde a vinda de pessoas desconhecidas até o que é o processo de produção do livro e as razões para o interesse no assunto. Alguns meses mais tarde, o trabalho resultaria no livro Eu devia estar na escola.

“No primeiro lançamento, em um espaço cultural na Maré, eu perguntei a uma das crianças que participaram: ‘Quem você gostaria que lesse o livro?’. Ela me disse: ‘O governador Cláudio Castro’. Outra falou o nome de um youtuber famoso. Queremos que o livro chegue a espaços bem diversificados. Ele fala de uma realidade de maneira direta, com a linguagem da criança sem filtro, de um tema sobre o qual precisamos nos responsabilizar. Se estamos aqui, nesse tempo histórico, temos responsabilidade sobre isso. O livro é um instrumento riquíssimo e não coloca cortinas sobre um assunto que precisa cada vez mais ser discutido em outra perspectiva. As favelas não são apenas cheias de bandidos e de carências. Tem muita gente inteligente, muita criança incrível, o cotidiano da favela também é divertido. O livro pode ajudar a refletir sobre isso, porque o infante não é aquele que não fala, é aquele que tem fala. Precisamos compreender isso”, conclui Adelaide.

Eu devia estar na escola ainda reproduz o modelo de carta original, em branco, que as crianças escreveram ao poder público, como um convite para que a iniciativa continue. A Editora Caixote divulgou que a parcela da receita condizente com os direitos autorais da obra será destinada a projetos da Redes da Maré que sejam referentes às crianças e à segurança pública.

Você se interessa por esse tipo de conteúdo? Então, confira aqui na Revista do Clube Quindim como falar sobre guerras com as crianças, além de informações para abordar a temática das drogas. E, ainda, saiba mais sobre os direitos das crianças.