Você já leu um livro em que a história não é contada apenas com as palavras? Um livro em que as imagens são tão importantes que é preciso “lê-las” para compreender o que acontece? Se a resposta for sim, saiba que você teve em mãos um livro ilustrado ou álbum ilustrado.
Esse tipo de obra é muito comum nos dias de hoje: basta caminhar na seção infantil de uma livraria ou biblioteca, olhar a lista de títulos pedida pelas escolas no começo do ano ou espiar o que temos em casa para as crianças. Mas nem sempre foi assim. Vamos conhecer mais sobre a história desse tipo de livro?
A história do livro ilustrado
Num passado não muito distante, o formato que predominava era outro. Pense, por exemplo, nos livros de importantes escritores brasileiros do século XX, como Monteiro Lobato, Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Lygia Bojunga.
Nas obras desses autores, o texto era o centro, o foco, era ele que contava toda a história. As ilustrações acompanhavam as palavras para abrir um capítulo, destacar alguma cena, atrair a atenção dos leitores para determinado trecho, mas eram sempre coadjuvantes.
Nesse tipo de livro, chamado de livro com ilustração, o texto existe de forma independente. Diferentes ilustradores podiam ilustrar um mesmo livro que a história continuava sendo contada da mesma maneira.
É difícil definir historicamente o nascimento do livro ilustrado, mas um marco considerado importante foi a publicação, em 1963, de Onde Vivem os Monstros, do escritor e ilustrador estadunidense Maurice Sendak. Estudiosos de literatura afirmam que essa obra mudou a forma como lemos um livro e influenciou a produção que veio nas décadas seguintes.
Sendak conta, por meio de palavras e imagens, a história de Max, um menino que vai para o quarto de castigo, sem jantar, após irritar a mãe. Lá, as paredes viram floresta, e Max parte à terra onde vivem os monstros e se torna rei. As imagens ganham força e presença conforme Max adentra no mundo dos monstros, uma metáfora para o seu inconsciente, e, ao mesmo tempo, o texto vai desaparecendo, como se Max perdesse o contato com a civilização.
Publicado no Brasil pela CosacNaify, Onde Vivem os Monstros foi o ponto de partida para gerações de autores que passaram a estabelecer muitas formas de relação entre palavra e imagem. E isso é uma das grandes magias do livro ilustrado. Aqui, vamos contar para vocês de duas relações que podem haver, mas há muitas outras – há livros teóricos que tratam especificamente disso.
Particularmente, gostamos muito quando as imagens contam uma história paralela à do texto, acrescentando, por exemplo, um personagem que você só descobre quando lê as imagens. Outro tipo de relação bastante interessante é quando as imagens contradizem o que o texto está dizendo, e cabe ao leitor identificar o que está de fato acontecendo.
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O que é materialidade da obra?
Além de estabelecer novas formas de relação entre palavra e imagem, o livro ilustrado coloca mais um elemento nessa discussão: a materialidade da obra. Isso significa que o tamanho do livro, o seu formato, o tipo de papel e até a costura passam a ser utilizados por muitos autores para contar a história.
Um bom exemplo para falar de materialidade. Chama-se Vazio, da autora catalã Anna Llenas, e foi publicado no Brasil pela Editora Salamandra. A capa e a contracapa da obra são feitas em uma espécie de papel cartão bem grosso, e já na capa está a menina protagonista, Júlia, ilustrada como se uma criança a tivesse desenhado. Ela é branca, usa um vestido rosa e tem um buraco na barriga – um furo real que atravessa esse papel cartão.
O grande vazio que Júlia sente está materializado nesse vazio de sua barriga, um furo por onde é possível ver a cidade onde ela mora, por onde o frio atravessa o seu corpo, por onde passam até monstros. Não é um buraco qualquer, é um elemento totalmente alinhado com a história. Ao longo da narrativa, a menina busca uma maneira de tapar esse vazio e descobre não vai conseguir fazer isso com uma tampa ou algo físico.
qual a importância do livro ilustrado?
A junção dessas múltiplas linguagens – o texto, as imagens e sua materialidade – tornam o livro ilustrado um objeto artístico único e, por isso, apresentá-lo às crianças desde cedo é colocá-las em contato com a arte.
“Um dos fatores muito positivos de oferecer o livro ilustrado para as crianças desde cedo é que, quando muito pequenas, elas são muito sinestésicas, elas percebem o mundo pelos sentidos. Elas querem comer o mundo, elas querem comer o livro, elas querem tocar, e o livro ilustrado, por explorar ao máximo a linguagem gráfica, a linguagem verbal e a materialidade, de alguma forma responde a essa fome das crianças, da infância, e também dos adolescentes e dos adultos que mantêm esse núcleo de infância dentro de si”, conta Cristiane Tavares, doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordenadora da Pós-Graduação Literatura para Crianças e Jovens no Instituto Vera Cruz, em São Paulo.
Por demandar essa articulação entre palavra, imagem e materialidade, leitores que não tiveram contato com essa experiência na infância, ou seja, não foram alfabetizados na linguagem do livro ilustrado, podem ter dificuldade em fazer a leitura de alguns títulos. Para eles, a recomendação é ler, sempre.
“Sabemos que aprendemos a ler, lendo, a escrever, escrevendo, então nós desenvolvemos recursos para ler o livro ilustrado a medida em que vamos lendo. Quem tem menos familiaridade com esse formato, quanto mais leituras fizerem, mais relações farão. A constância é muito importante na leitura, assim como a diversidade. Ler muito, ler sempre e ler coisas diferentes, se possível em interação com outras pessoas – a interlocução com outros leitores ajuda muito a ler. Ler coletivamente, ler em grupo, compartilhar leituras e conversar sobre as leituras são formas de ampliar a percepção, de amplificar os sentidos de um texto”, diz Cristiane.
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5 dicas de livroS ilustradoS para ler com as crianças
Para quem quer começar ou continuar a ler livros ilustrados diversos, conheça a seguir cinco sugestões.
Ratolândia
Em um país chamado Ratolândia, os gatos pretos governam os ratos e criam leis boas apenas para si próprios. Uma delas, por exemplo, proíbe que os ratos corram rápido para facilitar o café da manhã de seus governantes. Um dia, os ratos se cansam e decidem não votar mais nos gatos pretos. Elegem, então, os gatos brancos. Mas a vida continua difícil. Após sucessivos pleitos, gatos pretos e brancos dão início a um governo de coalizão. E continuam, mais uma vez, negligenciando seus governados. Até que os ratos tentam uma outra estratégia para sair da situação.
Ratolândia trata, com uma linguagem simples, de democracia, eleições, representatividade e participação política.
A obra, publicada em 2020 na França, é o primeiro livro ilustrado da escritora francesa Alice Méricourt, e as ilustrações são do premiado ilustrador chinês Ma Sanjin, que cria um ambiente hostil para Ratolândia, com pitadas de humor.
Milhões de gatos
Um casal muito velho mora sozinho, se sente muito só e acredita que por isso não consegue ser feliz. Um dia, a mulher diz para o companheiro que talvez um gato possa ajudá-los. E ele parte em busca de um. Depois de muito andar, o homem chega a uma colina de gatos e diz que escolherá o mais belo. Pega então um preto, um branco, um cinza… e no fim, sem conseguir escolher, decide levar todos.
Milhões de Gatos, da escritora norte-americana Wanda Gág (1893-1946) questiona sobre o que é belo e trata das escolhas que fazemos. Além de uma história incrível, o livro tem um ritmo gostoso: o trecho “Centenas de gatos/Milhares de gatos/Milhões e bilhões e trilhões de gatos” é repetido várias vezes, encadeando o desenrolar da história.
Publicado pela primeira vez em 1928, Milhões de Gatos é considerado por especialistas em literatura infantil o primeiro livro ilustrado dos Estados Unidos. A obra chegou ao Brasil exatos 90 anos após ter sido lançada, pelas mãos das Edições Barbatana.
A guerra
No livro ilustrado A Guerra, os portugueses José Jorge Letria e André Letria, pai e filho, traçam um retrato sensível e potente do uso da violência no enfrentamento dos problemas. Na obra, misturam sequências narrativas em que a história é contada apenas por imagens com outras em que imagem e palavras estão presentes. Também utilizam uma linguagem visual quase cinematográfica, com distanciamentos e aproximações: imagens aéreas, seguidas por outras mais próximas, seguidas por sua vez por detalhes. Quando há texto, as frases são curtas e impactantes – elas mobilizam, chegam a doer.
A Guerra trata das decisões tomadas em silêncio e que não consideram o ser humano; o desespero diante do que está por vir; o ódio, a ambição e o rancor; o fim da tranquilidade, dos sonhos e das vozes de quem não quis guerrear; o desejo de poder e de glória de quem comanda.
O preto e o cinza dominam a paleta de cores, mas o marrom, o amarelo mostarda e o verde militar também ajudam a falar do terror e da falta de esperança.
Ninanão
Com delicadeza e poesia, a autora Daniela Galanti questiona a máxima de que as meninas gostam de rosa e os meninos, de azul. Sabemos, sim, que muitas meninas adoram a cor comumente associada à feminilidade, mas não são todas, não é mesmo? E como se sentem as que não gostam?
Daniela conta a história de Nina, uma garota que prefere o azul e que não tem a sua preferência reconhecida. A mãe prefere rosa, a amiga também. Nesse universo cor de rosa, Nina se sente triste e deslocada e busca uma saída.
Propositalmente, o livro tem uma paleta de cores reduzida, focada no rosa e no grafite, e traz o azul como secundária. Uma lindeza.
Por que choramos?
Por que choramos? é um livro para ser lido em vários momentos. Crianças pequenas captarão algumas camadas e crianças maiorzinhas, outras. Os adultos, por sua vez, colocarão a bagagem da vida em cada página.
Neste livro, os autores apresentam Mário, um menino que está no parque, e lança a pergunta: Mamãe, por que a gente chora? A mãe, então, explica porque choramos com muita sensibilidade e frases repletas de alegorias. Ela reflete sobre as diferentes interpretações do choro e faz conexões com sentimentos como tristeza e raiva.
As ilustrações se esparramam pelas páginas e ora são concretas ora lúdicas.