Educar uma criança talvez seja o maior desafio da contemporaneidade. A nossa geração foi criada, em grande parte, seguindo valores culturais como hierarquia, disciplina e obediência. “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Agora, no entanto, estamos diante de um quadro social que exige dos indivíduos proatividade, flexibilidade e autonomia. Valorizamos pessoas criativas, inovadoras, resolutivas, independentes, que se posicionam. São todas qualidades que entram em conflito com o comportamento pelo qual éramos aprovados durante nossa infância: o de simplesmente obedecer.
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Repensar a obediência
Pais, cuidadores, professores e todos aqueles que desejam ser educadores em algum grau precisam repensar a categoria de obediência. Culturalmente, estamos acostumados a associar o bom comportamento infantil à disposição da criança em acatar ordens. A sociedade não gosta de crianças falantes, questionadoras, pensantes. Os educadores constantemente recorrem à necessidade de obedecer, como se esta fosse a chave para solucionar os dilemas educacionais do ser humano. “Como fazer meu filho me obedecer?”. “Meus alunos são desobedientes, como resolver?”. No entanto, basta uma simples busca no dicionário para que esse termo seja colocado em questão.
Obediência:
1. Ação de quem obedece, de quem é submisso, dócil.
2. Disposição para obedecer; submissão completa; sujeição, vassalagem.
3. Ato pelo qual alguém se conforma com ordens recebidas.
Se perguntados se gostariam que seus filhos ou alunos se transformassem em pessoas submissas, em “vassalos” dependentes ou em pessoas conformadas, dificilmente estes mesmos pais ou professores diriam que sim. Isso aponta como a obediência tem sido entendida de maneira equivocada. Valorizamos posturas obedientes, mas não concordamos com o perfil de sujeito que essa postura constrói. A educação das nossas crianças precisa estar de mãos dadas com a perspectiva de construção de uma autonomia.
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Obediência não é sinônimo de educação
Entendemos que quando a orientação familiar está preocupada com a obediência, em geral, essa preocupação se refere a encontrar soluções educacionais que garantam um desenvolvimento infantil seguro e ético.
Situações cotidianas, como quando a criança não aceita se alimentar de forma saudável ou não quer parar de jogar ou de assistir às telas, representam riscos ao seu desenvolvimento físico e intelectual. Da mesma maneira, situações em que a criança apresenta um comportamento agressivo ou desrespeitoso para com outra pessoa são exemplos de alerta em seu desenvolvimento moral. Afinal, como garantir que essa criança cresça e desenvolva um raciocínio e uma afetuosidade em prol de seu bem-estar e do bem-estar da comunidade à qual ela faz parte? A obediência não serve para isso?
Não, esse é o papel da educação. No âmbito pedagógico, a consolidação desse desenvolvimento sociopessoal não pode ser pautada pela simples obediência. A educação deve preparar o indivíduo para que ele seja capaz de mobilizar conhecimentos, reconhecer os próprios desejos e necessidades, e assimilar suas ações às devidas responsabilizações. Nesse sentido, se a criação de filhos é voltada para que eles apenas acatem as ordens dadas, então essas crianças passam a agir segundo os conhecimentos, os desejos e as responsabilidades de outra pessoa, desconectando-se de si mesmas.
“O adulto é quem sabe das coisas”. “Criança não tem querer, só obedecer”. “Não tem o que questionar ou discutir, faça o que estou mandando”. A obediência exige que a criança aja, na maioria das vezes, sem ao menos compreender a importância ou os motivos por trás daquela ação. Para seguir esse fluxo contraintuitivo de agir contra sua própria vontade, a criança é motivada a obedecer pelo medo da punição: o castigo, a bronca, a desaprovação dos pais. É este, afinal, o cerne da natureza de toda obediência. Ela só existe em uma relação hierárquica, em que o mais forte pode impor sua vontade e controlar as ações do mais fraco.
Na busca por uma pedagogia da autonomia, é importante oferecer ferramentas para ampliar o repertório e o entendimento crítico da criança. Trata-se de ajudar a construir as motivações corretas para que, à medida em que ela entre em contato com novas vivências, consiga posicionar-se de forma responsável. O foco é deslocado: ao invés de tentar controlar o comportamento da criança através do castigo, busca-se estimular as suas potencialidades, fortalecendo o raciocínio e o senso de responsabilidade dessa criança. Existem muitas maneiras de educar um sujeito autônomo, e nenhuma delas passa pela obediência.
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Mobilização de conhecimentos
Um dos argumentos mais utilizados em defesa da obediência é o de que a criança não saberia distinguir o certo do errado, ou de que seu conhecimento de mundo ainda não permitiria que ela compreendesse a melhor ação a tomar. O problema com esse argumento é de que a obediência tampouco trabalha para que essa criança, no futuro, seja capaz de mobilizar esses conhecimentos. Afinal, ela não precisa pensar sobre o assunto quando é estimulada a apenas seguir ordens.
Muitas vezes, antes mesmo de compreender a situação em que se encontra, a criança recebe um sonoro “não faça isso”. A antecipação do que deve ser feito pode revelar uma superproteção, um medo dos próprios pais ou educadores de que a criança seja exposta ao erro ou à decepção. Nesse sentido, a obediência é uma armadilha que impede a criança de crescer. Os educadores barram a possibilidade do erro, mas retiram conjuntamente a possibilidade de descobrimento, experimentação e encantamento desse sujeito.
No sentido educacional, é muito mais eficiente validar os questionamentos e vivências desse sujeito, valorizando suas tentativas e estabelecendo um cenário para o florescimento do diálogo, apresentando argumentos e exemplos relacionados com experiências reconhecíveis para a criança. Cria-se um quadro para enfim estimular a criança a produzir as próprias respostas. Afinal, estamos interessados em formar sujeitos produtores de conhecimento, que atuem na construção de uma sociedade melhor.
Reconhecimento dos próprios desejos e necessidades
Outro fator a ser observado quando falamos em obediência é a desconexão da criança com os seus desejos e necessidades. A obediência prepara o sujeito para realizar ações independentemente de sua concordância. Nela, é o outro – o adulto – que sabe o que é melhor para a criança. Por isso, basta seguir o que o outro diz. A perpetuação dessa situação pode gerar impactos psíquicos e emocionais negativos nas relações estabelecidas por esse sujeito, inclusive na vida adulta. Esses impactos incluem a dificuldade de escutar a si mesmo, de reconhecer os próprios sentimentos ou de emitir a própria opinião.
É um trabalho para a vida toda aprofundar-se no autoconhecimento e no cuidado de si. Se na infância a pessoa é constantemente ignorada em suas queixas, questões ou posicionamentos, tende a acreditar que sua opinião é irrelevante. Torna-se suscetível a autoritarismos e relações abusivas. O consentimento é um elemento chave para essa discussão, tendo em vista que, ao ser ensinada a obedecer cegamente, a criança é deslegitimada do seu direito de dizer “não”. Crianças incapazes de desobedecer serão adultos incapazes de resistir a qualquer pressão social.
Da mesma maneira, se outra pessoa está sempre dizendo o que a criança deve fazer, prejudica a autoconfiança, a criatividade e a proatividade dela. Encabeçar iniciativas e projetos da própria autoria torna-se um dilema. Quando pensamos em uma educação para a autonomia, é preciso antes de tudo construir uma relação de confiança em que a criança se sinta à vontade para se expressar, compreendendo que ela é também um sujeito pensante, que suas ideias e sentimentos são valorosos.
Assim, a criança é encorajada em seu desenvolvimento emocional. Nesse âmbito, aprender a escutar e reconhecer os próprios desejos não necessariamente significa realizá-los (assim como acontece na vida adulta). Trata-se de entender os porquês e comos, de construir linhas de reflexão sobre a realidade vivenciada e de ser capaz de expressar-se, tendo consciência de que é um sujeito livre para manifestar-se, assim como digno de ser ouvido e considerado.
Responsabilização sobre as próprias ações
Não menos importante, a obediência dificulta a construção de um verdadeiro senso de responsabilidade. A criança obediente tem um “eu” que cresce na negação de si. Assim como é ensinada a agir pelos conhecimentos e desejos alheios, tampouco pode ser responsabilizada pelas consequências desses atos. Afinal, se estava apenas obedecendo ordens, por que ela deveria comprometer-se com o resultado de suas ações?
A obediência cega transforma o sujeito em facilmente manipulável. Se na infância somos acostumados a realizar tarefas mesmo não concordando com elas, como podemos construir critérios de ética? Como, ao longo do nosso desenvolvimento, vamos discernir o certo do errado, sem que alguém tenha sempre que nos dizer o que fazer? A ética precisa ser uma construção individual, é a maneira como cada um constrói consigo mesmo uma relação pela qual se “autoriza” ou se “desautoriza” a fazer determinada coisa. É a ética que cria o senso de responsabilidade, enquanto a obediência transfere essa responsabilidade a terceiros, aos que emitiram as ordens.
Que ensinemos às nossas crianças o fazer autônomo, muito melhor que a pura obediência. Em vez de controlarmos seu comportamento, que potencializemos sua emancipação. Não queremos crianças obedientes ou adultos resignados. Queremos que sejam seres questionadores, conectados com seus desejos, dispostos a enfrentar as injustiças do mundo. A educação é feita pelas relações, pelo exemplo, pelo compartilhamento de valores e conhecimentos, pela disposição do afeto, pela nutrição do diálogo. A educação é a tarefa que edifica aquilo que conhecemos como humanidade. E que seres humanos gostaríamos de ser?