Um pequeno fio de água no asfalto poderia passar despercebido num dia corrido. A gente pula e segue a vida. Nem percebe que milhares de pequenos rios se formam nas sarjetas, cachoeiras em miniatura caem das calhas, mini-lagoas se formam nos brinquedos da pracinha. Na turbulência da rotina, a gente deixa de olhar pra toda essa vida escondida.

Sobre criancas e rios como o incentivo dos pais muda a relacao que os pequenos tem com a natureza meio4

Mas e se, numa certa manhã sem chuva, uma menina desviasse o olhar dos prédios altos e enxergasse ali, no chão, um riozinho fino correndo em uma direção desconhecida? Aquilo poderia se tornar facilmente uma brincadeira e suscitaria mil outras perguntas e novas experiências. Quem nunca brincou de colocar uma folha no fiozinho de água no quintal como um barquinho correndo no rio?

O contato das crianças com o fluxo da água é natural e instintivo; elas são capazes de enxergar numa simples poça uma infinidade de possibilidades. E que bom que é assim! A questão é: até quando elas sentem essa conexão? Por que chega um momento em que não olhamos mais (ou não sentimos mais) a natureza como parte intrínseca de quem somos?

É a partir dessa premissa filosófica, mas também bastante real, que a obra Fio de Rio, primeiro livro escrito e ilustrado pela artista Anita Prades, nos faz refletir sobre como a falta de contato das crianças com as águas nos meios urbanos vai criando, desde a infância, um distanciamento da natureza, até o ponto de não nos darmos mais conta de que estamos cercados por ela.

“Às vezes a gente acha que ‘natureza’ é só aquela idílica, longe do nosso alcance como população urbana, né? Mas temos que desmistificar: vamos falar de espaços abertos, das áreas ao ar livre, da natureza próxima e possível”, propõe Maria Isabel de Barros, engenheira florestal e pesquisadora do programa “Criança e Natureza”, do Instituto Alana.

Isso ajuda a afastar aquela ideia distante da natureza perfeita que nem sempre conseguimos proporcionar para os nossos filhos todos os dias. Projetamos que o contato com as águas e as árvores só aconteça no meio de uma mata, num sítio bem afastado ou numa cachoeira, mas nos esquecemos (ou menosprezamos) o contato possível de quem mora nos centros urbanos, ou seja, a pracinha do bairro, o parque da cidade, o pátio arborizado da escola. Para quem mora nas grandes metrópoles, manter a constância do contato com os ambientes abertos pode ser mais interessante do que idealizar um cenário que não podemos, de fato, ter todos os dias.

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Brincadeiras complexas

Por tudo isso, um simples correr na chuva ou deixar a imaginação rolar junto de um fio de água na rua é fundamental na infância. Permitir que a criança tenha contatos variados com a água também traz tantos benefícios quanto um dia inteiro no mar. Tenha em mente que, quanto mais você proporcionar experiências diversas, melhor, porque isso aumenta o repertório de vida do seu filho ou filha. E, pode ter certeza, o contato com a natureza rende ganhos que vão muito além de boas memórias. Os benefícios são cognitivos, físicos e sociais.

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“Esses pequenos desafios que as crianças vão encontrando nos ambientes abertos, por exemplo, para engatinhar na grama ou subir e descer um barranco, passar por um arbusto e depois, quem sabe, escalar uma árvore mais a frente, são muito favorecedores para o desenvolvimento integral das crianças”, explica Maria Isabel, que também é mestre em Recursos Florestais e Conservação de Ecossistemas Florestais pela USP.

E tem mais: o brincar que acontece nesses ambientes externos é mais criativo, mais complexo. “Veja que as crianças podem cavar um buraco e descobrir uma joaninha ou um tatu-bola, uma minhoca. Aí ela já pensa em fazer uma casinha ou procurar comida pro bichinho… Uma coisa leva a outra! Então é muita descoberta e muita criatividade envolvidas. Isso sem falar no que chamamos de partes soltas, ou seja, os gravetos, as pedrinhas, a terra, a água. Elas são brinquedos abertos, servem para ativar toda a potencialidade que a criança tem de criação, de exploração, o que rende esse brincar mais completo e mais complexo também”, explica a especialista em infância e natureza.

Ela lembra de uma frase de um arquiteto especialista em parquinhos com brinquedos naturalizados, que diz: “não existe nenhum brinquedo melhor do que uma árvore para uma criança, porque tem tanta coisa lá: semente, flor, fruto, galho, são possibilidade infinitas”. Além disso, a natureza oferece ainda, um recurso extra e fundamental para a infância: o espaço da autorregulação. “É um lugar interessante para as crianças que também procuram um pouco mais de silêncio, de quietude. É muito raro elas terem esse tipo de espaço longe dos adultos e é importante ter esses pequenos refúgios, esconderijos na natureza”, aponta Maria Isabel.

“As crianças têm essa vontade dentro delas, de procurar a natureza; ninguém precisa ensinar isso pra elas. É inato, porque nós somos seres da natureza também. A gente só esqueceu disso. Então, quando validamos isso pra criança, estamos ajudando-a demais”, diz a especialista em infâncias.

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Abram o olhar, pais E MÃES!

E mesmo entendendo, como pais, mães e cuidadores, a importância desse contato, vale sempre se perguntar quando foi que nós deixamos de olhar para a natureza que nos cerca com essa atenção que as crianças ainda conseguem ter? Parece uma pergunta ingênua, mas não é. Afinal, como é que podemos ensinar genuinamente nossos filhos, se nós mesmos não conseguimos mais ver a importância?

“O nosso afastamento da natureza como seres humanos é uma questão complexa, que passa por muitas dimensões da nossa constituição como sociedade e como cultura. A gente percebe – e, geralmente, só depois que tem filhos –, que nossas experiências mais significativas não foram num shopping center, não foram ligadas ao consumo. Frequentemente é ‘quando eu fui pescar com o meu pai’, ou ‘quando fui no sítio com meus avós’. Quando realmente nos aprofundamos nessa reflexão, percebemos que são experiências vinculadas a coisas mais simples”, acredita a pesquisadora do Instituto Alana.

Segundo ela, não deveríamos, portanto, caminhar pela culpa de não proporcionar uma infância rica em natureza nas cidades, mas entender como podemos, no dia a dia, mudar essa realidade com nossos filhos. Será que é caminhando por aquele trajeto mais arborizado do seu bairro? Será que é deixando que eles brinquem no barro da pracinha depois da chuva? Talvez escolher aquela creche que tem areia e árvores no pátio? Todas as ideias são válidas quando existe um propósito.

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E aqui é preciso entender que o nosso papel como pais, mães e cuidadores é também pensar numa melhor maneira de apresentar e decifrar o mundo com as crianças. Porque, sim, o modo como contamos para eles sobre a natureza, os rios e os animais, têm grande impacto no que eles vão entender sobre o mundo que habitam. “Elas aprendem a partir do que nós validamos como tendo valor ou não”, resume Maria Isabel.

Ou seja, se reclamamos que o Rio Tietê, por exemplo, atrapalha a cidade, ou que o Rio Pinheiros cheira mal, estamos passando uma mensagem implícita de que os rios são um problema, um incômodo e que sua presença nas cidades não é bem-vinda. Como se as águas precisassem ser “domesticadas” pelos homens para nos serem úteis. Como se a natureza tivesse um “dono”, entende? Se por outro lado, dialogarmos sobre a importância da chuva, se mostrarmos quão majestoso é o rio na sua nascente, como é fundamental o papel da água no ciclo da vida, talvez as crianças cresçam com outra relação com este elemento.

Em certa parte do livro de Anita Prades, ela questiona: “Quantos rios se escondem por baixo do asfalto da cidade?”. Talvez uma criança, acostumada com o ambiente urbano, de fato, precise de um auxílio dos pais para entender que nem sempre a cidade esteve ali, que os rios foram desviados ou soterrados, que a mata ciliar foi destruída para dar lugar às construções. É preciso que os adultos guiem esse interesse e acrescentem camadas a ele.

“As pesquisas mostram que, quando perguntamos para os adultos que possuem um vínculo muito profundo com a natureza – e muitas vezes até escolhem carreiras ligadas a ela – ‘quais são os fatores que contribuíram para isso?’, um dos elementos primordiais que aparecem é o papel do mentor. Um adulto de referência, que não precisa necessariamente ser o pai ou a mãe, mas, às vezes, é um professor, uma tia, um avô, que divide com essa criança o amor pela natureza”, explica Maria Isabel e completa: “Não só o conhecimento cognitivo, sabe? Mas todo o seu interesse, a sua paixão e a sua apreciação pela natureza. Esse fator é importantíssimo”.

Como falar da crise ambiental com as crianças?

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E tudo bem se você perdeu esse interesse ao longo da vida ou, quem sabe, nunca teve quem te acompanhasse nessa jornada pela natureza. É sempre tempo de entender, mudar os rumos do futuro e, nesse caso, é preciso, viu? Afinal, estamos metidos numa crise ambiental sem precedentes.

Você sabia que, hoje, uma em cada três crianças em todo o mundo – ou seja, 739 milhões delas – vivem em áreas expostas a uma escassez de água alta ou extremamente alta? É o que mostra o relatório “A Criança Mudada pelo Clima”, do UNICEF. Só no Brasil já são 1,1 milhão de crianças e adolescentes vivendo com níveis muito baixos de água potável e as mudanças climáticas ainda ameaçam piorar a situação. E veja que nosso país abriga 12% das reservas de água doce do planeta todo. No total, são 83 rios, isso sem contar as bacias hidrográficas e os aquíferos.

Por aqui, o desmatamento e as queimadas destinadas à produção agrícola e pecuária acabam influenciando em todo o ciclo da água, já que aumentam a temperatura, provocam assoreamento de rios e lagos, alteram o fluxo dessas águas e, consequentemente, a vida que depende dela. Inclusive, a das cidades, onde há racionamento hídrico em algumas regiões e enchentes constantes, outro reflexo desse descontrole ambiental causado por um pensamento predatório. A ironia é que, sem água, também ficamos sem comida. Ou seja, é urgente.

Quem vai herdar esse planeta repleto de consequências climáticas e ambientais são justamente os nossos filhos e netos. E, sim, é claro que eles também precisam crescer compreendendo a situação e sem negar a realidade, mas é necessário acompanhá-los nesse entendimento passo a passo. Nunca se esqueça de que é preciso se atentar para a maneira como passamos essas informações sobre o clima e a urgência de mudanças.

Embora seja fundamental sempre falar a verdade, é preciso que a sua fala seja coerente com a idade, o entendimento e maturidade de cada criança. E, principalmente, é preciso abandonar o tom alarmista de discursos como “feche a torneira, a água está acabando no mundo e vai ser culpa sua”.

“Tenho convicção que não é por esse caminho. Elas não estão preparadas ainda para esse tipo de abordagem. Quando estamos falando de crianças pequenas, na primeira infância, antes de tudo, temos que nos preocupar delas se apaixonarem pela natureza e se sentirem à vontade brincando nela. Que seja natural, por exemplo, caminhar descalço, observar formigas, tomar chuva, sentir o calor, se movimentar, até mesmo cair e se machucar. Tudo isso tem que ser naturalizado, é parte da vida, é parte do que nós somos. E nós somos parte da natureza e os outros seres vivos merecem o mesmo cuidado que nós”, explica a especialista do Instituto Alana.

Segundo ela, devagarinho, vamos falando sobre cuidado, sobre direitos, vamos nomeando as coisas para depois falar sobre os problemas de fato em outra fase da vida do seu filho. “Quando as crianças são pequenas, elas devem ver o que é belo, bom e devem ter experiência positivas de amor e de vínculo. Essa é a base”.

Veja também: A crise climática e o impacto sobre crianças e adolescentes.

O vínculo com a natureza traz a consciência ambiental

Formada essa base na primeira infância, aí sim é possível aprofundar a conversa com os filhos. E você vai perceber que, quando há essa formação, a conversa flui naturalmente, sem forçar a barra e sem palestrar sobre o que a criança não entende. Quanto mais fizer parte do dia a dia da família, melhor.

Se os pais explicam, por exemplo, que nessa casa não se desperdiça água, porque trata-se de um elemento muito importante e a base da vida para todas as espécies vivas, então a criança fecha a torneira desde cedo. Se todos os dias o lixo é separado como parte da rotina, o pequeno entende que cada resíduo pode ser reaproveitado e já cresce com isso enraizado. E o mesmo vale para o desperdício de alimentos, para a reutilização das roupas, tudo rende um questionamento sobre o consumo.

“A gente pode explicar que existem muitos seres humanos no mundo e que tudo que a gente consome demanda um gasto de energia, de recursos, e que precisamos ser conscientes com o que consumimos, porque isso vai ter um impacto”, explica a pesquisadora. Segundo ela, a criança vai se sentindo parte daquela cultura familiar de valores e entende que precisa fazer a sua parte naturalmente. “Por isso, eu não chamaria nem de formação da consciência ambiental, mas de vínculo, sabe? Porque a consciência vem como consequência desse vínculo”,

Pouco a pouco, elas vão percebendo que fazem parte do mundo. Primeiro, da casa, depois da escola, da comunidade, do bairro. “Elas vão percebendo que ‘puxa, o que eu faço impacta o outro também, impacta o espaço comunitário que eu divido com as outras pessoas né?’. A rua, os espaços públicos, por isso que uma simples caminhada pelo bairro a pé amplia o senso de pertencimento”, indica Maria Isabel.

A expectativa, no fim das contas, é que, crescendo amparadas assim, elas não percam o olhar para o fiozinho de água no asfalto e percebam que, afinal, aquele “riozinho” desemboca num grande oceano. Tudo está conectado e faz parte de um ciclo que possibilita a vida.

E, felizmente, há esperança: vimos em 2023, na Conferência do Clima da ONU, a COP28, adolescentes e crianças reivindicando seu lugar de fala na discussão sobre a crise climática. Elas têm o que dizer e querem ser ouvidas. Uma das propostas, organizada por estes pequenos ativistas no “Manifesto por uma COP das crianças em 2025”, é justamente para que haja mais educação climática baseada na natureza. É a prova de que é possível que as próximas gerações consigam se colocar numa posição de mais responsabilidade e mudança.

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E aí, voltamos ao ponto inicial da discussão levantada sabiamente pelo livro Fio de Rio. Em vez de nos sentirmos culpados por viver nas cidades, deveríamos agir, estimulando as crianças a enxergar além do concreto, do asfalto e dos prédios. É permitir, educar e dar espaço para as descobertas dos nossos filhos, mas também reeducar o nosso próprio olhar. É lembrarmos, todos juntos, que, antes dos edifícios e das ruas, era a natureza que ocupava tudo aqui – e que somos parte dela. Apenas nos esquecemos disso.

Talvez na próxima chuva, quem sabe você se lembre de tudo isso e possa se deixar atravessar mais pelos riozinhos que surgirem pelo seu caminho, não é mesmo? Tomara que sim.

Estante Quindim

Conheça algumas obras para falar com as crianças sobre a importância da preservação dos rios:

Fio de Rio, de Anita Prades
A mancha (escritor Guilherme Gontijo Flores, ilustrador Daniel Kondo, editora FTD)
A mancha, de Guilherme Gontijo Flores e Daniel Kondo
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Um dia, um rio, de Leo Cunha e André Neves