Você já reparou na concentração de uma criança ao subir uma árvore ou se equilibrar em uma mureta? Já viu como ela se expressa ao cuidar de uma planta? E ao modelar um pedaço de argila? Você já observou como esse corpo se movimenta ao caminhar num trecho de barro?

Para além da cultura das infâncias e da poética da imaginação e do brincar, o que muito nos encanta, aqui chamamos a atenção para o contato com o mundo natural como sinônimo de saúde – das crianças e da Terra. Isso é desemparedar a infância. Esse conceito bastante atual deve ser tratado como pacto na sociedade, um direito inegociável que faz que nós, adultos, possamos assumir uma postura que favorece a presença, o cuidado e o vínculo com a vida.

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O contato com o mundo natural

Mas, afinal, o que significa desemparedar a infância? De forma direta, é permitir e criar caminhos para que as crianças tenham contato com o mundo natural.

Em 2018, o programa Criança e Natureza, do Instituto Alana, editou uma publicação com esse título, Desemparedamento da infância, contribuindo para que as escolas encarassem o termo como uma prática cotidiana da pedagogia e assim fizessem escolhas que protagonizassem as crianças e os seus desejos, ampliando ainda a ideia que temos de natureza – que não está separada da nossa cultura e não se resume a uma ideia idílica e intocável; na verdade, nós somos natureza e o contato com ela não depende de vivermos no campo ou na praia, mas, sim, de cultivarmos possibilidades muitas vezes simples e pequenas, mas que trazem benefícios imensos. Na publicação, que pode ser baixada gratuitamente aqui, há uma série de ações transformadoras para se colocar em prática.

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As crianças têm sentimentos de pertencimento com a natureza, gostam de estar ao ar livre, sentem afeto por seres vivos, carregam em suas curiosidades e descobertas o fascínio pelos bichos, pelas pedras e pelos quatro elementos, e experimentam o bem-estar através desses brinquedos naturais. No entanto, os desafios e as desigualdades nos centros urbanos (onde vive quase 85% da população brasileira) criam obstáculos e nos distanciam dessas vivências.

As poucas áreas verdes, a centralização dos equipamentos de lazer, o deslocamento, a verticalização das cidades e a segurança pública são alguns fatores para que as crianças, no mundo moderno e conectado de hoje, acabem sofrendo com o que chamamos de transtorno de déficit de natureza – termo cunhado pelo pesquisador estadunidense Richard Louv no livro A última criança na natureza.

A boa notícia, no entanto, é que algumas ações simples têm grande impacto e podem ser aplicadas dentro da rotina de casa. Mas, antes das nossas dicas, é importante que as famílias saibam quais são os benefícios físicos e mentais de brincar ao ar livre, como nos mostra o manual de orientação do Grupo de Trabalho em Saúde e Natureza, realizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria em parceria com o Criança e Natureza. A seguir, reproduzimos um dos quadros do material.

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Como as famílias podem incentivar

Após a lista acima, que não se esgota aqui, sugerimos algumas dicas de como as famílias podem incentivar e promover relações de afeto e vínculo das crianças com a natureza. Confira!

1 – Realize visitas e atividades

Visite parques e praças, junte o bairro em ações de melhorias, faça coletas e piqueniques e, quando em ambientes seguros, tente acampar com as crianças. Há formatos e opções para todo tipo de família aventureira, das mais “raiz” àquelas que não gostam muito do pacote completo, mas topam a ideia de passar uma noite em barracas em algum esquema hoteleiro. E lembre-se: terra não é sujeira e criança com a roupa de lama é criança feliz e saudável. Além disso, poucas coisas são mais divertidas que fogueira e banho de garoa.

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2 – Observe e acompanhe

Leve as crianças para as feiras livres, olhe para os alimentos da época com louvor, plante algo em um vasinho caseiro. É mágico acompanhar o ciclo de um alimento, afinal de contas, é tudo muito parecido com a nossa vida. Se você costuma comprar flores, não as jogue fora imediatamente porque estão ficando velhas; a passagem do tempo dá um divertido e belo desenho de observação.

3 – Leia e se informe

Leia livros de gêneros diversos sobre a natureza. Há muitos informativos poéticos, além dos livros de ficção. Em muitos deles, o meio natural revela territórios e culturas. Amplie a diversidade dessas leituras: histórias escritas e ilustradas por povos tradicionais, por exemplo, costumam apresentar o protagonismo da natureza e as relações horizontais dos seres humanos com ela. Você pode conferir algumas obras com essa perspectiva em nosso site. Cuida quem se importa, e os livros são ótimas janelas para conhecermos e cuidarmos do mundo.

E como desemparedar a escola?

“O planeta está enfermo – é preciso ‘reajardiná-lo'”. A frase é do cientista Antonio Nobre, autor do relatório O Futuro Climático da Amazônia e um dos principais propagadores da Teoria de Gaia, além de um grande nome quando falamos da união da divulgação científica com os saberes tradicionais como um ato de amor pela natureza.

Aqui, emprestamos o título da entrevista concedida à revista National Geographic e pedimos licença para alterar uma palavra, fazendo uma provocação e colocando o foco no desemparedamento da infância: “A escola está enferma – é preciso reajardiná-la”.

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É urgente compreendermos que a escola deve ser um lugar de encontro com a natureza, e que isso é possível mesmo diante de todos os desafios e desigualdades diárias vivenciadas no nosso País, desde que seja uma prioridade em diferentes esferas. A escola, seja ela pública ou privada, tem um grande papel nesse acordo, já que é o lugar obrigatoriamente frequentado por todas as crianças a partir dos quatro anos de idade. Assim como é fundamental oferecer na escola uma excelente alimentação para garantir a saúde das crianças, é fundamental que o espaço e o tempo da infância sejam nutridos por vivências com a natureza nos espaços de aprendizagem.

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O livro Desemparedamento da Infância é uma iniciativa que ajuda educadores e gestores a cuidarem deste tema, para que juntos possam buscar e promover políticas públicas para a construção de espaços escolares verdes, já que entre tantos ganhos, “a presença da natureza no espaço escolar e em outros territórios educativos, aliada à liberdade para brincar, contribui com processos de aprendizagem que contemplam a autoria, a criatividade e a autonomia da criança. Além disso, as escolas mais verdes e o uso de diferentes espaços e elementos no ensino potencializa o acolhimento de pessoas diversas e diferentes modos de aprender”, em tradução livre inspirada na publicação Construindo um Movimento Nacional por Espaços Escolares Verdes em Todas as Comunidades, lançada pela Children & Nature Network em 2016 (página 78).

Conexões fundamentais

Sentido, significado, interesse, encontro, experimentação, movimento, investigação e brincadeira são palavras da infância que precisam fazer parte da vida na escola. Quando somadas às vivências na natureza, um pensamento sistêmico vai se construindo, fazendo que as crianças tenham a oportunidade de, através dos sistemas naturais, compreenderem conceitos vitais como ritmo, desenvolvimento, renovação e transformação. Isso é vida e o pátio ou quintal da escola, assim como as salas, laboratórios e passeios externos podem ser grandes mestres e aliados. Mas atenção: não basta construir um espaço verde, é preciso restabelecer uma conexão entre criança, adulto e natureza. Uma horta sem contexto de uso social, apenas colocada sem a participação da comunidade escolar ou totalmente à parte do projeto pedagógico, não terá impactos significativos.

Veja também: Criança em contato com a natureza: saiba a importância desse momento.

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O vínculo precisa vir de uma relação verdadeira. Vamos pensar uma infância mais verde para as crianças? Lançamos aqui um convite, ou primeiro passo: escuta!

  • O que desejam as crianças na sua escola?
  • Como suas curiosidades e hipóteses são ouvidas quando estão na natureza?
  • De que forma o currículo inspira ou seduz para a investigação estética?
  • Os professores recebem formação sobre esse tema, são sensibilizados a sentir e pensar um mundo mais bonito e sustentável através desse olhar?
  • E as árvores na sua escola, são brinquedo ou estão aprisionadas em correntes e placas proibitivas?
  • O chão de cimento pode virar terra ou grama?
  • É possível substituir a palavra perigo por risco, entendendo que o risco, quando não for grave, pode ser responsável por ensinar às crianças sobre o que de fato é perigoso?
  • Há destaque para os livros sobre a natureza na biblioteca da escola?
  • Como são as saídas por aí?
  • Há alguma praça próxima para as vivências em espaço público?
  • Há articulação comunitária?
  • Como são os brinquedos e de quais materiais eles são produzidos?
  • O que você e sua equipe podem fazer para favorecer essa retomada na infância?

Nós do clube de assinaturas Quindim queremos muito ouvir quem nos lê, quem sabe até fazer uma rede inspiradora aqui neste post – é só comentar sobre suas práticas e dúvidas, afinal, sonhando junto a gente chega lá! Bora?