Tibor Scitovsky é um dos fundadores dos estudos sobre a relação da felicidade das pessoas com o consumo. Dentre várias teorias que o pesquisador americano tem, trago uma para a gente conversar. A diferença entre “bens de conforto” e “bens de criatividade”. Já ouviu falar?

Vou resumir, porque ele falou disso em 1972 e continua super atual. Os bens de conforto trazem sensações prazerosas de curto prazo, estímulos imediatos e são reconfortantes. Os bens de criatividade, ao contrário, têm tendência a durar longo prazo, porque são relacionais, culturais e estimulantes. Ele faz uma ressalva que esses bens de criatividade são mais trabalhosos para se ter, exigindo um número maior de experimentações e energia pessoal para serem apreciados.

Crianças e marcas: consumo, logo existo? Sobre o ter e o ser a partir de coisas.
Maos segurando um telefone celular.

É fácil entender: comprar um celular (conforto) e ler um livro (criatividade). Comprar uma roupa nova (conforto) ou ir ao museu (criatividade). Scitovsky dizia que consumimos muitos bens de conforto e poucos bens de criatividade. Antes ele sustentava que isso ocorria porque o acesso aos bens de criatividade era caro. Esse cenário mudou bastante. Mas um ponto me chama a atenção: com o acesso livre para esses dois bens, para qual estamos dando prioridade? E as crianças nessa história toda?

A influência das marcas no consumo infantil e o que isso significa

Crianças e marcas: consumo, logo existo? Sobre o ter e o ser a partir de coisas.
Adolescente escolhendo roupas em loja.

Em uma pesquisa recente da KidsCorp, empresa de tecnologia especializada em insights e dados com foco em crianças, adolescentes e famílias da América Latina, houve um mapeamento dos gostos e preferências das crianças brasileiras. Os números suscitam muitas questões que valem a pena botar na roda para que todos nós, pais, mães e educadores, possamos debater e refletir.

A pesquisa aponta que crianças e adolescentes estão cada vez mais vinculados com marcas desde pequenos. O primeiro número que chama atenção é que 100% das crianças entrevistadas têm uma marca preferida. 79% delas viram seu anúncio preferido em formato online. 5 de cada 10 pedem aos pais que comprem o produto que viram em um anúncio recente. Impossível não linkarmos com a informação da pesquisa que acabou de sair, da TIC Kids Online Brasil 2023: cada vez mais crianças brasileiras se conectam à internet antes dos 6 anos.

Segundo o levantamento, 24% dos entrevistados relataram ter começado a se conectar à rede na primeira infância. Na edição de 2015, a proporção era de 11%. Chocante, não? Vamos lembrar que não é recomendável acesso a tela para crianças abaixo de dois anos, orientação da Organização Mundial de Saúde! Entre 2 e 5 anos, permanência máxima de uma hora por dia. Entre 6 e 10 anos, o tempo deve ser de até duas horas. Gosto de trabalhar com números, para não ficarmos falando apenas de achismos ou impressões.

Temos, hoje, 95% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos usando a internet no Brasil. Estamos falando de aproximadamente 25 milhões de menores de idade conectados. Com um smartphone na mão, as crianças estão construindo laços de confiança, como veremos mais à frente, predominantemente com marcas internacionais. É dominação cultural, é distanciamento da brasilidade, é a manutenção de um pensamento colonial.

É uma conversa difícil de encarar, eu sei. Trabalho com Edutainment, articulação entre Educação e Entretenimento. Atuo como consultora pedagógica em canais de televisão para crianças, estúdios que produzem desenhos animados e filmes e em marcas de jogos e brinquedos. Todo dia (TO-DO DI-A!) eu discuto os mesmos pontos: como podemos qualificar o que é produzido para as crianças? Se elas já estão nas telas, se os números mostram pra gente que o acesso está (lamentavelmente) sem freio, a batalha vai ser lá na qualidade do que eles consomem. Abrir mão dessa luta é deixar a imaginação da nova geração livre para a lógica do consumo que, como estamos vendo, não é saudável nem sustentável para o planeta. Isso vai ficar claro quando conhecermos as marcas preferidas das crianças, segundo a KidsCorp:

Crianças de 3-5 anos

  1. Marvel
  2. Disney
  3. Adidas
  4. Americanas
  5. McDonald’s
  6. Hot Wheels
  7. Youtube
  8. Danoninho
  9. Lego
  10. Coca-cola

Crianças de 6-12 anos

  1. Adidas
  2. Nike
  3. McDonald’s
  4. Youtube
  5. PlayStation
  6. Marvel
  7. Disney
  8. Coca-cola
  9. Minecraft
  10. Roblox

Especialistas em consumo infantil afirmam que crianças frequentemente compram produtos não pelo que eles fazem e, sim, pelo que significam. Olhando para esse quadro, vemos que o assunto é sério e exige cautela, muita reflexão e muita pesquisa. Mesmo antes de saberem ler, as crianças já são capazes de reconhecer as embalagens e as marcas. Tive a chance de participar de laboratórios de pesquisas qualitativas com crianças realizadas por plataformas de streaming e constatamos que crianças de 3 a 6 anos conseguem reconhecer dezenas de marcas, logotipos, mascotes. Nessa mesma pesquisa, a KidsCorp apontou que o que as crianças mais valorizam nas marcas que consomem é a capacidade de fazê-las felizes (30%) e de se divertirem (30%).

Crianças e marcas: consumo, logo existo? Sobre o ter e o ser a partir de coisas.
Bolsa, relógio e roupas da moda.

Vamos mais a fundo nessa questão: estamos vendo no top dez marcas de ultraprocessados, marcas esportivas, franquias de desenhos animados (em especial, os super-heróis) e jogos/games. Estamos diante de uma “infância do consumo”. Inúmeros estudos mostram os impactos desse tipo de consumo no processo de formação do pensamento infantil e o brincar industrializado. O que faremos diante desse cenário?

É preciso criar RESISTÊNCIA

Evidentemente não estou falando que a solução é acabar com tudo isso. Seria ingênuo e bem sabemos que existem, ali, momentos alegres. Mas não podemos permitir que essa lógica domine o pensamento das crianças. Esse é o meu ponto máximo de discussão: o imaginário das crianças. Se todo o seu repertório for povoado por essas histórias de super-heróis em mundos distópicos, o herói salvador que vai exterminar os perigos, um culto ao individualismo competitivo, com uma concepção de mundo da barbárie e desesperançoso, onde vamos chegar?

Estamos em um momento que é preciso parar e redefinir como nos vemos e como vemos nossas relações com o outro e com a vida nesse planeta. Será que essas referências de consumo contribuem para a mudança que precisamos fazer, do modo de viver na Terra?

Precisamos de novas formas de ser, pensar, viver, agir. Necessitamos de uma imaginação com qualidade e novas intenções para criarmos outros futuros para a humanidade. Se permanecermos consumindo mais do mesmo, com essa visão datada de mundo que o consumo acrítico propõe, estaremos apenas aceitando a padronização de comportamentos e ideias conforme o mercado e a indústria cultural desejam. Iremos abandonar o que nos faz humanos: pensar por nós mesmos, criar e recriar, inventar, sonhar. É o que queremos para as crianças? Que elas tenham pensamentos padronizados e uniformizados? De novo: Em um mundo assim regulado, temos o desafio de indicar possíveis caminhos de resistência.

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Veja também: Consumo consciente para crianças: ensine seu filho a ser um consumidor consciente.

Projetos de futuro: o desemparedamento da infância e reflorestamento do imaginário

E vim fazer um manifesto, um convite para nos juntarmos e pensarmos alternativas na formação do pensamento infantil crítico, criativo e inventivo. Uma educação regenerativa! Humberto Maturana, saudoso professor chileno, biólogo, dizia que “o mundo só será diferente se vivermos diferente”. A pergunta que faço é “qual o seu projeto de futuro?”. O sociólogo e escritor Francesco Morace explica que projetar significa lançar alguma coisa em um tempo futuro. O que se lança? A nossa imaginação. Morace reforça no seu Future Lab que a qualidade do nosso futuro depende muito da qualidade de nossas intenções e de nossa imaginação.

Outro dia li um trecho da filósofa e educadora norte-americana Maxine Greene que dizia que o envolvimento das crianças com arte é o melhor antídoto contra o “congelamento do pensamento imaginativo”. Concordo plenamente e aí temos uma pista sobre qual caminho seguir. Imaginar é construir possibilidades. Pensar, sonhar, fantasiar, fabular, fazem parte do processo de cura de um mundo adoecido. Nos salvaremos pela imaginação, pela nossa capacidade de pensar novas histórias, sonhar novos mundos, expandir nosso conhecimento sensível. Quanto de bens criativos nossas crianças estão tendo acesso? Qual a qualidade das experiências estéticas que elas estão experimentando?

Além da arte, minha outra rota para fugir da massificação do pensamento é a natureza. Maria Fernanda Espinosa, ex-presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, disse que “nós estamos em uma encruzilhada. Talvez a única válida. Somos a última geração que tem o privilégio de escolher seu caminho, de escolher e de ter a audácia de agir para resolver a crise climática”.

Greta Thunberg, a jovem ativista ambiental sueca, já havia exigido em um manifesto que seu futuro não seja roubado. Falamos de reflorestamento do imaginário, de tornar verde o pensamento, porque não teremos futuro algum se não olharmos para a natureza. O planeta poderá seguir tranquilamente sem a gente. Estamos chegando a passos largos à autodestruição. Para isso não acontecer, precisamos desesperadamente desemparedar as crianças, como nos convoca a educadora Léa Tiriba. Retirá-las do confinamento do espaço fechado das quatro paredes e buscar espaços abertos para o seu corpo expandir. Foi esquecendo o corpo que nos distanciamos da natureza.

Veja também: Desemparedamento da infância: tempo de natureza é receita de saúde e alegria.

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Você está até agora lendo esse texto, sinal de que o tema é algo importante pra você, certo? Provavelmente tem o compromisso de cuidar de alguma criança. Eu não tenho filhos, mas tenho o pensamento de legado, desejo ser um bom ancestral. Roman Krznaric nos alerta para a necessidade de uma transformação radical: precisamos nos libertar da tirania do agora e aprender a pensar a longo prazo, muito além da nossa geração. Por amor à humanidade! E é preciso agir agora, com as crianças. Precisamos ajudá-las na sua religação com a natureza. Mantê-las em contato com o universo natural de que são parte. Não é possível fazer isso pelo abstrato. Conhecer é sentir. Como amar o que não conhecemos? Como proteger o que não faz sentido, não faz sentir? O reflorestamento do imaginário acontece no corpo inteiro. Estar na natureza é entender-se natureza. E isso é felicidade.

O ativista e pensador Daniel Christian Wahl lançou essas perguntas e quero compartilhar com vocês: “Temos que investigar: Como pertencemos? Onde estamos? Quem somos nós? O que estamos aqui para fazer? Ao nos aprofundarmos em tais perguntas, viveríamos a resposta para a pergunta: por que vale a pena sustentar a humanidade?” Encontrar essas respostas pode ajudar a recontextualizar nossa existência e dar sentido à nossa relação com o outro e com o planeta. Só viveremos diferente se imaginarmos e agirmos diferente. Vamos juntos?