“A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas.”

(ALMEIDA, Silvio, 2020, p. 52)

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Terminei a coluna anterior, sobre ações efetivas para a construção de uma escola antirracista, anunciando uma reflexão sobre a urgência de as escolas enegrecerem o RH (contratar professores, coordenadores e diretores negros e negras) como uma das ações possíveis para a construção da escola antirracista. Para explicar a importância deste enegrecimento, considero fundamental abordar o conceito de branquitude, pois a escola antirracista deve necessariamente dimensionar e questionar sua branquitude.

Quando falamos sobre os caminhos da construção de uma escola antirracista, estamos, em grande medida, falando com pessoas brancas. Pois sabemos que, apesar de termos professoras e professores negros, as diretrizes educacionais, os currículos, a produção e a aquisição de material didático e paradidático se dão por pessoas brancas. Soma-se a isso o fato de a gestão escolar também estar, na maioria das vezes, sob o comando de pessoas brancas, especialmente na rede privada de ensino.

Então, como pensar na atuação de pessoas brancas na construção de uma escola antirracista? Um primeiro passo importante é ter sempre em pauta a dinâmica que envolve a branquitude.

Entenda o que é a branquitude e seus privilégios

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Branquitude é sobre identidade branca. Os estudos sobre questões raciais que deslocam o tema de pesquisa do negro para o branco já vêm desde a década de 1960, mas apenas recentemente o conceito está ganhando mais espaço. Trata-se de um conceito central para pensarmos a escola antirracista, pois diz respeito ao papel do branco na dinâmica do racismo.

Vou deixar aqui sugestões de leitura sobre o termo (que é complexo e multifacetado), mas por ora é suficiente destacar que branquitude é sobre como a sociedade concede privilégios às pessoas que são identificadas como brancas, independentemente de sua classe social ou cultural. Isso não quer dizer que pessoas brancas não têm problemas, traumas, dificuldades financeiras ou emocionais, mas sim que pessoas identificadas como brancas não enfrentam dificuldade por causa de sua racialidade, ao contrário, em uma sociedade racista como a nossa ser branco traz vantagens.

Cida Bento (pioneira no tema) dá um exemplo perfeito: quando um homem branco e um homem preto, que moram na mesma favela, vão procurar emprego, o homem branco sabe que está em situação de vantagem na busca por uma colocação laboral. Ele não pensa sobre isso, pois é algo dado. Inclusive, ele não encara isso como um privilégio, apenas considera natural que tenha mais chances de conseguir o trabalho.

A branquitude se beneficia de privilégios e vantagens advindos da cor da pele e de outros traços fenotípicos identificados como de pessoas brancas, como se fossem direitos. É importante entender a diferença entre direito e privilégio. O direito é público e está garantido a todos, pois visa beneficiar a comunidade como um todo, de modo igualitário. Privilégio é a vantagem que uma pessoa ou um grupo tem em relação aos outros. No caso da branquitude, não é que houve uma reunião entre lideranças brancas que decidiram em assembleia e registraram em ata que eles e seus iguais deveriam ter regalias.

A construção da branquitude é silenciosa, antiga e permanente. Começa na colonização com a escravidão e atravessa os séculos com toda a maquinaria social (leis, instituições estatais e privadas, aparelhos culturais, produção do conhecimento, meios de comunicação etc.) reafirmando a imagem da pessoa negra de modo inferior, negativo. Nesse jogo sórdido nem um detalhe é dispensado, tudo enaltece os brancos e reafirma sua superioridade. Tanto que quando uma pessoa negra ascende, economicamente, culturalmente, socialmente, ela passa a ser vista como branca – nosso exemplo mais conhecido é Machado de Assis. E ser preto e pardo e ascender no Brasil significa fazer muito mais e muito melhor que um branco.

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Crédito:  (Machado De Assis Real/Reprodução). Comumente, Machado de Assis foi representado de modo que parecesse um intelectual branco.

O exemplo acima é um privilégio material, ou seja, são vantagens que uma pessoa identificada como branca tem no mercado de trabalho. Mas há também o privilégio simbólico. Um exemplo é o fato de a pessoa branca ser vista como indivíduo enquanto a pessoa negra é vista como grupo: ou seja, quando uma pessoa negra erra, a sociedade atribui esse erro a todos os negros. Outro tipo de privilégio é o subjetivo, relacionado com a percepção da beleza e demais atributos imateriais, que atravessa todas as nossas relações na sociedade.

Pessoas brancas são consideradas mais bonitas, mais inteligentes, mais comprometidas, mais honestas e confiáveis que as pessoas pretas e pardas, dizem diversas pesquisas empíricas, como esta desenvolvida pela Universidade de Harvard, que envolveu 150 mil pessoas e confirma que rostos negros são associados a palavras negativas.

Cabe aqui acentuar que branquitude e negritude não são antônimos. Negritude é afirmação política de pessoas negras por sua identidade negra. Branquitude é construída no silêncio, pois as pessoas brancas não se veem como racializadas: o europeu branco e seus descendentes se veem como universais, apenas os outros têm raças. Daí podermos falar, seguindo Lourenço Cardoso, em branquitude acrítica e branquitude crítica. Ambas têm privilégios, mas a segunda está consciente disso e repudia tal situação e adere à causa antirracista.

Veja também: Palavras racistas: veja quais são e entenda por que precisamos rever nosso vocabulário.

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Uma escola antirracista deve ter consciência de sua branquitude. Antes de tudo, é bom mapear a configuração racial da escola, de forma que todos da comunidade percebam seu pertencimento a um grupo que é, de uma forma ou de outra, identificado a partir da ideia de racialidade. As escolas com pouquíssima ou nenhuma diversidade racial precisam inclusive se repensar com urgência. Quais as implicações de uma escola com essa característica? Qual formação essa escola dá aos seus alunos? Como mudar esse quadro?

Depois dessa autoavaliação racial, seria interessante avaliar como o ambiente está organizado de modo a atender, referenciar, priorizar as pessoas brancas, suas histórias, saberes e culturas. Nesse momento, é importante observar as possíveis vantagens atribuídas a alunos, professores e funcionários brancos. Por exemplo, perceber se as ocorrências de advertência por atraso, por falta de material escolar ou por ausência de uniforme são mais frequentes com as pessoas negras. Se a identidade negra está representada (inclusive enquanto autoria) nos materiais didáticos e paradidáticos, incluindo livros literários e brinquedos. Se os alunos e as alunas negras estão recebendo a mesma motivação e oportunidade de protagonismo que os alunos e as alunas brancas.

Várias pesquisas comprovam que crianças brancas recebem mais atenção dos professores, são mais reconhecidas como talentosas pela escola, ocupam os lugares de destaque. O que, obviamente, afeta todo o percurso acadêmico e profissional.

Ao fim desses exercícios, é provável que seja explicitado um território de branquitude. Assumir a branquitude crítica e atuar contra privilégios e favorecimentos raciais são caminhos para a mudança efetiva.

Veja também: A importância da autoestima da criança negra.

A construção de uma escola antirracista começa pelos profissionais

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E neste momento chegamos ao segundo ponto na construção do RH de uma escola antirracista: o departamento de recursos humanos deve ser enegrecido com a admissão de educadores, bibliotecários, gestores negros e negras e, uma vez garantida a presença, que se garanta também a convivência com os afro-valores de vestimenta, de religiosidade, de saberes, de princípios, de currículos, de formações. Não é possível continuarem contratando pessoas negras esperando (exigindo) que elas se embranqueçam para “se adequar à escola”, proibindo uso de turbantes, não reconhecendo intelectuais e autores negros e negras nas bibliografias e nos materiais didáticos, permitindo vocabulário racista, piadinhas infames, entre outras tantas atitudes.

De modo análogo, algumas escolas contratam profissionais negros esperando que eles sejam uma espécie de representante oficial da cultura afro e ocupem lugares pré-determinados. Remeto ao depoimento de um professor negro de educação física sobre o quanto a direção da escola ficou desapontada quando soube que ele não jogava capoeira. Na contratação não perguntaram nada sobre isso, apenas deduziram…

É como se os papéis ainda estivessem determinados a partir da perspectiva branca, que insiste em direcionar, controlar a presença negra. Lembro aqui a suposta justificativa dos escravocratas para o uso de máscaras na boca dos africanos escravizados a fim de evitar que comessem a colheita, conforme aponta Grada Kilomba:

“Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanos/as escravizados/as comessem cana-de-açúcar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar tanto de mudez quanto de tortura. Neste sentido, a máscara representa o colonialismo como um todo. Ela simboliza políticas sádicas de conquista e dominação e seus regimes brutais de silenciamento dos(as) chamados(as) ‘Outros(as)’:Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?”

(KILOMBA, Grada, 2019, p. 172)

Tal cerceamento da expressão das pessoas negras se dá de múltiplas formas. No campo literário, ele vem com força quando reduz a obra de autores negros e negras às abordagens temáticas, histórias de denúncias de racismo e reivindicações raciais, deixando invisibilizada a poeticidade dessas obras enquanto linguagem literária e artística. Sem mencionar o fato de que autoria negra pode abarcar o tema e a perspectiva que bem entender – como todos e todas as artistas. Mas esse é assunto para outra coluna.

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Para saber mais:

  • ALMEIDA, Silvio Luiz de. Rascismo Estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
  • BENTO, Maria Aparecida da Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida da Silva (Orgs.) Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002.
  • CARDOSO, Lourenço. A branquitude acrítica revisitada e a branquidade. Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S. l.], v. 6, n. 13, p. 88–106, 2014.
  • CARDOSO, Cintia. Branquitude na educação infantil. Curitiba: Appris, 2021.
  • CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
  • KILOMBA, Grada. A máscara. In: KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jessica Oliveira de Jesus. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
  • SCHUCMAN, Lia. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Veneta, 2020.