VINICIUS: INÍCIOS
Vinicius de Moraes nasce no bairro do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em 1913. O nome de batismo tinha ares romanos: Marcus Vinitius da Cruz de Melo Moraes. Aos nove, abrasileira-se, registrando-se Vinicius de Moraes. E nisso os pais estavam certíssimos: apesar de suas andanças por muitos países, como diplomata, e idiomas, como poeta traduzido, seu destino — sua cruz — era mesmo ser brasileiro — e não passivamente: mais do que participar do Brasil, Vinicius se ocupou de inventar o Brasil — ou muitos Brasis.
Carreiras e carradas de Vinicius de Moraes
Vinicius trabalhou em muitas frentes: a diplomacia, o jornalismo e a arte. Na arte, foi um deflagrador de imaginários, nas mais variadas formas artísticas: na poesia, sem esquecer as lições modernistas, atualizou o soneto para uma nova sensibilidade amorosa, marcada pelo fervor e o trânsito livre do desejo; no teatro, escreveu Orfeu da Conceição, transladando o mito de Orfeu e Eurídice para o universo urbano e carnavalesco do Rio de Janeiro: a peça estreia em 1956 com cenários de Oscar Niemeyer e, adaptada para o cinema na França como Orfeu Negro, vence a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro.
A partir daí, Vinicius de Moraes, que compunha desde a adolescência, se aproxima cada vez mais da música: letrando as composições de Jobim e as harmonias e ritmos de João Gilberto, moderniza a lírica da canção popular brasileira, marcando-se como um dos pais da bossa nova, gênero e estado de espírito que cobre o Rio de Janeiro de uma aura da qual o estado até hoje se nutre; não satisfeito, lança os olhos à Bahia, à mitologia e aos ritmos do candomblé e, junto do violonista Baden Powell, compõe e grava um dos discos definidores da identidade musical brasileira: Afro-Sambas, de 1966.
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POemas de Vinicius de Moraes para crianças: A Arca de Noé
O currículo de imaginários de Vinicius não estaria completo sem uma visita ao universo infantil. Seguindo o exemplo do americano T. S. Eliot, que escrevia poemas sobre gatos para os sobrinhos — poemas que, muito depois da morte do poeta, virariam Cats, sucesso da Broadway —, Vinicius de Moraes escreveu uma série de poemas infantis sobre bichos e bichanos, reunidos em Arca de Noé, coletânea editada — em livro e disco —, primeiro, na Itália, em 1970. No Brasil, os poemas são publicados no mesmo ano, mas a adaptação musical sai apenas dez anos depois, já na década de 1980.
Nessas poesias para a infância, Vinicius de Moraes mescla várias tradições literárias: a herança bíblica, com o tema da Arca de Noé servindo de moldura para a reunião da fauna de poemas; o mundo das fábulas, com seus animais falantes, demasiadamente humanos; a lírica modernista brasileira, com sua coloquialidade e humor, remetendo, especialmente, a Oswald de Andrade e Manuel Bandeira; e, claro, a própria tradição da literatura infantil universal e brasileira.
O livro-álbum abre com o poema de mesmo título, “Arca de Noé”, já com um toque de mestre de Vinicius: o poeta, muito sabidamente, deixa de lado os conflitos do dilúvio, e nos oferece a cena de reinauguração do mundo. Os céus se abrem, o arco-íris se desenha no céu, e os bichos se atropelam para descer da Arca:
Grita uma arara, e se escuta
De dentro um miado e um zurro
Late um cachorro em disputa
Com um gato, escouceia um burro.
A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.
O desfile de animais é generoso e acolhedor: canta-se o leão, “rei da criação”, mas também a pulga:
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Um, dois, três
quatro, cinco, seis
com mais um pulinho
estou na perna do freguês.
No poema do leão, aliás, encontramos um traço característico de muitos clássicos da literatura infantil: o mundo, por mais lúdica que seja sua representação, não é purificado da violência:
Leão, leão, leão
rugindo como o trovão
deu um pulo, e era uma vez
o cabritinho montês
Os leitores de Peter Pan lembrarão que a eterna criança encarna tanto o lado maravilhoso — que se espanta com a maravilha do mundo — da infância quanto o lado endiabrado, zombeteiro, por vezes até cruel, traços presentes também numa das maiores figuras da literatura infantil do século XX: a boneca de pano Emília, criação magistral de Monteiro Lobato. Em Vinicius de Moraes, sentimos um pouquinho disso — suavizado, claro, pelo humor e o tom leve do texto — no leão que salta, no pleno exercício de sua liberdade, sobre o cabritinho montês, como também no porquinho que recita os prazeres da feijoada:
Sendo um porquinho informado
O meu destino bem sei
Depois de estar bem tostado
Fritinho ou assado
Eu partirei
Na Arca de Vinicius, ainda cabem poemas que fogem do zoológico, como os clássicos “O Relógio” e “A Casa”. Sobretudo neste último, Vinicius logra um um feito admirável: o poema abandona para sempre a residência do nome do autor e se perde no mundo, vira verso anônimo na boca e na lembrança dos falantes do idioma:
Era uma casa muito engraçada
não tinha teto, não tinha nada
ninguém podia entrar nela não
porque na casa não tinha chão
Mesclando nonsense à la Lewis Carrol, de Alice no País das Maravilhas, e coloquialismo modernista brasileiro, a “casa muito engraçada” de Vinicius está “na Rua dos Bobos, número zero” — e quem dirá, afinal, que não moramos todos na Rua dos Bobos?