Pense com a gente: faz sentido oferecer um livro sobre pais separados para uma criança cujo pai e mãe permanecem casados? Ou uma narrativa que fale da relação entre irmãos para um pequeno que é filho único? Quem sabe, então, uma história sobre a infância de refugiados de guerra ou o cotidiano de quem vive no interior da Amazônia para quem está bem distante desses cenários? Em resumo, se uma história não estabelece uma conexão imediata com o cotidiano da criança, será que vale a pena ler o livro assim mesmo?

Talvez seja uma surpresa para você, mas a resposta é: sim! “A gente fala muito sobre os livros nos levarem para outros mundos, a literatura nos permitir viver outros mundos. Então, por que a gente só quer entregar o mesmo mundo para as crianças?” questiona Renata Nakano, diretora-geral e idealizadora do Clube Quindim.

A literatura tem o poder de nos transportar para realidades diversas, oferecendo experiências que, muitas vezes, vão além do que conhecemos. Então, como lidar com a estranheza e o desconforto que podem surgir quando os livros não retratam diretamente o que a (sua) criança vive?

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Literatura infantil pode ser, sim, coisa de outro mundo

Para Edimilson de Almeida Pereira, curador do Clube Quindim, poeta, ensaísta, autor de literatura infantil e juvenil, e professor na pós-graduação de Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, a literatura é um espaço onde a imaginação encontra possibilidades infinitas.

“O contato com a realidade diária é uma experiência comum a todos nós, que vivemos em sociedade. Porém, desde sempre, a imaginação tem nos permitido criar outros mundos usando, para isso, os materiais de nossos sonhos e desejos. Esses mundos extraordinários enriquecem nosso pensamento e nossa capacidade de sentir os acontecimentos à nossa volta. Amamos as lendas e seus bichos falantes. Viajamos com os contos de fadas para terras mágicas e distantes. As crianças, mais do que ninguém, sabem habitar esses mundos, experimentando neles a liberdade e conhecendo novas formas de vida e de sentimento”, afirma Edimilson.

“É importante que elas tenham acesso às obras literárias que despertem sua sensibilidade para histórias, lugares e personagens que vão reencantar as suas experiências do dia a dia”.

Edimilson de Almeida Pereira

Esses “outros mundos” têm um valor inestimável, pois permitem que as crianças se conectem com diferentes perspectivas de vida, ampliando sua compreensão do que acontece ao seu redor. E por realidades diferentes não estamos nos referindo, necessariamente, a lugares ou culturas distantes, mas sim formas diversas de ser e de viver.

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Foto: Canva

A importância da bibliodiversidade na formação de uma visão de mundo ampla

A bibliodiversidade, que inclui a variedade de temas, culturas, contextos e personagens nas obras literárias, além da própria diversidade entre os profissionais do livro, é essencial para formar leitores mais sensíveis e preparados para lidar com um mundo plural. Ao ter contato com livros que trazem perspectivas distintas das suas, as crianças se dão conta de que as pessoas são diferentes entre si, e têm, com isso, muito mais possibilidades de aprender a respeitá-las e reconhecer a riqueza das experiências humanas.

“Numa de minhas viagens ao interior de Minas Gerais, conheci um mestre de cantigas que me disse: ‘O mundo é feito de muitas sabedorias’. Essas pessoas atentas às coisas ao seu redor, compartilham a ideia de que nos tornamos seres humanos mais compreensíveis quando sabemos que além de nossas vidas existem outras no mundo. Cada vida e cada lugar tem seus mistérios e significados. Aprender um pouco de cada um deles amplia nosso modo de pensar a nossa própria vida e o nosso próprio lugar. Por isso, é interessante lermos os livros que tratam de assuntos diversificados, além daqueles de que gostamos”, pondera o escritor.

infâncias
Foto: Canva

Apresentar aos pequenos histórias de outros contextos, sejam eles sobre crianças refugiadas, indígenas, ou de diferentes situações sociais, é um passo importante para que eles compreendam que a realidade de cada pessoa é única e cheia de nuances. E isso vai além da simples curiosidade sobre o outro: trata-se de construir uma base sólida de respeito e empatia pelas diversas experiências humanas.

Assim, quando uma criança tem acesso a histórias que retratam outras culturas e cotidianos, ela começa a entender que a sua realidade não é a única maneira possível de viver, passa a se colocar no lugar do outro e a perceber que o sofrimento, a alegria e os desafios que ela enfrenta podem ser semelhantes aos de muitas outras crianças. Essa é uma lição de humanidade que molda a forma como nossas crianças vão se relacionar com outras pessoas no futuro.

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O imaginário infantil e o encontro com outras realidades

O contato com livros que apresentam diferentes realidades também tem um impacto significativo no imaginário da criança, que é a maneira como construímos nossa visão interna do mundo, nossas ideias, desejos e até mesmo nossos medos. Edimilson explica que “existe em todos nós, seres humanos, uma condição compartilhada que diz respeito à formação do nosso imaginário. Quer dizer, a capacidade de nos desdobrarmos em realidades diferentes é inerente a todos nós. Essa capacidade se chama imaginário coletivo”, explica.

A formação do imaginário constitui um processo fundamental para a construção da criatividade e do pensamento crítico, que acontece justamente por meio do contato com diferentes histórias e experiências. Mas como isso funciona na prática?

Quando uma criança lê um livro que retrata uma realidade diferente da sua, ela tem a oportunidade de expandir seus próprios horizontes. Mesmo que não viva em uma comunidade indígena, por exemplo, ao ler um livro sobre essa cultura, poderá imaginar e se conectar com aqueles personagens e suas experiências.

8 livros infantis com representatividade indígena que as crianças precisam conhecer. Livro redondeza
Imagem do livro “Redondeza“, de Daniel Munduruku e Roberta Asse. Crédito: Rodrigo Frazão

“Ao mesmo tempo, de acordo com nossas heranças culturais, podemos desenvolver imaginários particulares, permeados por experiências que não se repetem em outras comunidades. Por isso, no encontro entre o imaginário coletivo e o imaginário particular é possível que uma história baseada no imaginário de uma comunidade seja compreendida por crianças leitoras de várias partes do mundo. Nós, escritores e escritoras, buscamos essas conexões entre leitores de todas as partes, mesmo através de histórias que falam de coisas do nosso próprio lugar”, diz Edimilson.

E é assim que a literatura ajuda a criança a entender que, embora o mundo seja cheio de diferenças, há algo em comum entre todos nós: as emoções, os sonhos, e a capacidade de imaginar outras formas de ser. E isso é essencial para o desenvolvimento de uma sociedade mais inclusiva e empática.

Como lidar com temas difíceis em livros infantis

No complexo mundo em que vivemos, é preciso conversar com as crianças sobre todo tipo de assunto, com abordagens que elas compreendam. Os livros infantis, naturalmente, refletem temas desafiadores como abuso sexual, racismo, trabalho infantil e outros dilemas sociais.

“Em diferentes momentos da história da humanidade, adultos e crianças estão expostos a todos esses acontecimentos. São fatos dolorosos e terríveis, que ameaçam a vida de todos nós. A literatura, sendo a arte da palavra que narra e pensa nossas experiências, não poderia se esquivar de falar desses assuntos” explica Edimilson.

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A questão é a maneira como esses temas são abordados. “As crianças, atualmente, estão expostas a esses dilemas, sabem deles através das redes sociais. O importante é que eles sejam tratados com sensibilidade adequada para cada etapa de nossa vida de leitores. E que os mediadores de leitura – escritores e escritoras, familiares, educadores – também tenham sensibilidade para criar um entendimento sobre temas difíceis e, todavia, incontornáveis no nosso tempo”, diz o professor. Isso significa que, ao conversar com as crianças sobre assuntos delicados, é preciso ter empatia e tratar as questões com a sutileza e o respeito que elas merecem, sem omitir ou banalizar a gravidade dos temas.

Para os adultos que se sentem inseguros, Edimilson propõe uma reflexão: “É estimulante saber que sempre podemos aprender algo novo e, desse modo, enriquecermos nossas vidas. Quando juntamos a vida e o hábito de leitura estamos falando de experiências fascinantes, que é preciso alimentar com alegria e espírito aberto. Diante desses temas difíceis nós, adultos, precisamos nos sentir chamados a aprender. Assim como aprendemos a ler sobre histórias encantadas, podemos aprender sobre histórias tantas vezes dilacerantes. Nossa sensibilidade é flexível e profunda. Se soubermos usá-la nessas situações, nos tornaremos melhores amigos de nossos jovens leitores”.

Ao fazer isso, não só estaremos ajudando nossos filhos a entender o mundo, mas teremos, também, uma oportunidade valiosa de nos colocarmos ao lado deles, e não liderando o caminho. Essa cumplicidade, proveniente do aprendizado conjunto, é capaz de fortalecer ainda mais os vínculos entre vocês. Que tal experimentar?

Estante Quindim

Redondeza (escritor Daniel Munduruku, ilustradora Roberta Asse, editora Criadeira Livros)
Redondeza, de Daniel Munduruku e Roberta Asse.
EuDeviaEstarNaEscola CapaTransparente e1748459272656
Eu devia estar na escola, de crianças moradoras de favelas da Maré.
diversidade de infâncias
Diário das águas, de Gabriela Romeu e Kammal João