Guerras, catástrofes ambientais, desigualdade social, racismo, machismo, misoginia… São temas difíceis e a lista de feridas sociais é longa. Em um primeiro momento, é natural que pais e cuidadores queiram manter as crianças afastadas desses temas, protegendo-as das dores do mundo. Mas, a longo prazo, é importante entender que o silêncio diante dessas questões também pode gerar impactos e consequências — tanto para as crianças quanto para o mundo ao seu redor.
“Cria-se um adulto em uma bolha, que só tem conhecimento daquilo que afeta ele mesmo, ou seja, ele cresce sem se importar com a dor do outro”, reflete Josiane Andreghetti, psicóloga infantojuvenil. Segundo ela, quando o indivíduo não desenvolve compaixão pelo próximo, corre o risco de perpetuar as feridas sociais que deveria combater. Sem ter sido ensinado, por exemplo, sobre o racismo, ele pode acabar reproduzindo padrões preconceituosos sem se questionar sobre seus atos — e sem perceber a gravidade do que faz.
Abordar esses assuntos com as crianças e conscientizá-las, claro, demanda tempo, cautela e entendimento. É preciso cuidado com a forma de falar para respeitar o nível de entendimento de cada fase do pequeno e da pequena. Ou seja, a conversa precisa acontecer, mas de maneira gradual, constante, aberta e compreendendo o tempo de cada criança.
Direto do Instagram: Existem assuntos que não podem ser tratados com crianças?
tudo ao seu tempo…
A psicóloga infantojuvenil Josiane explica que temas como preconceito, machismo e desigualdade social já podem ser introduzidos na realidade das crianças a partir dos três anos de idade. Essas questões podem ser apresentadas por meio de conversas leves, que muitas vezes podem surgir naturalmente a partir da leitura de um livro. Depois da introdução do assunto, é fundamental que os pais estejam atentos às perguntas dos filhos e respondam com honestidade às dúvidas que surgirem.
Outro ponto de atenção é saber até onde ir para não ultrapassar o nível de entendimento indicado à idade da criança. A especialista cita, por exemplo, como abordar o tema do racismo. Para crianças menores, os adultos podem falar sobre como as pessoas são diferentes entre si e sobre a importância de respeitar a diversidade. Não é necessário, porém, expor os pequenos a notícias chocantes, como casos de morte motivados por preconceito racial. Já com crianças mais velhas, o assunto pode ganhar novas camadas, pois elas têm maior capacidade de se distanciar emocionalmente do tema, mesmo se importando com ele. Nesse caso, é possível alertar, por exemplo, que o racismo mata.
O mesmo cuidado vale para temas como guerras e catástrofes ambientais. Andreghetti orienta que esses assuntos sejam tratados, de forma mais direta, a partir dos sete anos. “Crianças menores ainda fantasiam muito sobre algumas temáticas. Ao falar sobre conflitos, elas podem achar que isso vai acontecer com elas a qualquer momento”, pontua. Esse efeito é ainda mais forte nos três primeiros anos de vida, período em que o bebê está se reconhecendo como indivíduo e ainda assimila o que acontece ao seu redor como algo diretamente relacionado à sua própria existência.
o diálogo sobre temas difíceis precisa existir… mas quando?
Embora diversos especialistas indiquem esperar iniciar a abordagem de uma temática social mais complexa apenas quando a dúvida surgir e a criança questionar, nem sempre os pais precisam esperar.
Isso porque, a vivência da criança, principalmente nos primeiros anos de vida, pode não ser o suficiente para gerar dúvidas nela e, consequentemente, ela fazer perguntas sobre assuntos sociais importantes. Ainda assim, a psicóloga infantojuvenil reforça que é preciso trazer tais assuntos para a realidade da criança para que, desde cedo, ela comece a criar consciência sobre a diversidade do mundo em que está inserida.
Por exemplo, se uma criança branca só convive com outras crianças brancas, é provável que ela nem entenda que há pares seus negros, amarelos, indígenas… É nesse cenário que cabe aos pais procurar recursos para apresentar a pluralidade racial aos filhos, por meio da literatura infantil, através das manifestações artísticas, brinquedos diversificados e, claro, convivendo com mais diversidade de raças e culturas em sua rotina.
“Ainda assim, os livros e os vídeos são complementares à conversa com os pais. O diálogo com o adulto é o que vai deixar a criança mais informada e amparada”, reforça Andreghetti.
Já quando as crianças são mais velhas, dificilmente elas não conviverão com indivíduos diferentes dela. O que fica mais fácil de elucidar as questões sociais, mas, ao mesmo tempo, as perguntas tendem a ficar mais complexas.
É fundamental que os pais lembrem aos filhos que dentro de casa é um espaço seguro e de constante aprendizado. Portanto, não há pergunta certa ou errada. Toda dúvida é válida. Claro que falas problemáticas devem ser corrigidas pelos adultos, mas a criança não deve ter medo de refletir sobre elas em casa para, então, aprender por que algo não deve ser dito.
Vale ter em mente também que os pais não precisam ter todas as respostas na ponta da língua. Ser honesto com a criança, de que você precisa de um tempo para pensar e respondê-la melhor, também humaniza o processo e mostra ao pequeno que todos estão em processo de aprendizado.
A pesquisa realizada pelos adultos também ajuda a oferecer diferentes pontos de vista para a criança, fortalecendo a ideia de uma infância plural. Além disso, pais e cuidadores devem ter em mente que, mais do que qualquer diálogo, é essencial observar como eles próprios lidam com essas temáticas no cotidiano da família. Sim, a máxima de que as crianças também aprendem pelo exemplo é real.
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O que não fazer ao falar sobre assuntos difíceis?
Andreghetti orienta que os pais não deixem as crianças consumirem programas televisivos sem acompanhamento. Isso porque algumas notícias ou imagens podem ser traumáticas para os pequenos, que ainda não têm repertório para compreender o que está acontecendo.
Uma imagem ou mesmo uma informação pode causar impacto ou até um trauma, justamente por estar além do que a criança é capaz de assimilar, o que pode prejudicá-la emocionalmente. Caso o que foi falado ultrapasse o que o pequeno consegue entender, ele pode se recusar a retomar o assunto e até apresentar sintomas físicos de angústia, como o choro.
Também é importante evitar categorizar qualquer tema como “não é coisa de criança” ou “você ainda é muito pequeno para isso”. A proibição tende a aumentar a curiosidade e pode levá-lo a buscar respostas em fontes inadequadas, como pesquisas na internet sem supervisão.
A especialista ainda recomenda que assuntos delicados não sejam abordados em qualquer ambiente ou momento. O ideal é que essas conversas ocorram em casa, em um momento tranquilo, propício para tratar do tema com a devida sensibilidade. Isso ajuda a criar um ambiente seguro, onde a criança se sinta confortável para falar o que quiser, sem a interferência de terceiros que possam não estar alinhados com o que a família acredita e acabar gerando ruídos na conversa.
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Frases para ajudar nesse processo
- “Filho(a), a mamãe precisa conversar com você”: essa frase pode ajudar a iniciar o diálogo. Ela mostra para a criança que o assunto é diferente e sério, retendo a atenção dela;
- “Você já ouviu falar sobre isso?”: incentivar o pequeno a mostrar o que ele já sabe sobre o assunto é fundamental para solucionar suas dúvidas;
- “Como você se sente sobre isso?”: nomear as emoções diante de conversas difíceis também é necessário para que o público infantil crie consciência sobre si a partir do seu entorno;
- “Você já viu algum amiguinho passando por isso?”: essa é mais uma forma de entender quanto a criança já presenciou ou viveu o que está sendo conversado;
- “Você pode falar o que quiser aqui! É um ambiente seguro”: lembrar à criança de que ela não vai ser julgada ao tirar suas dúvidas abre ainda mais espaço para ela dialogar sobre as feridas sociais que a ronda;
- “A gente pode parar por aqui, se você quiser”: a vida não é uma corrida contra o tempo em que a criança precisa falar sobre todos os assuntos sociais de uma só vez. É importante os pais sentirem o momento e respeitares os limites dos filhos também. A conversa pode ser retomada em outro momento propício, não é mesmo?
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