Setembro é um mês que nos conecta, de diversas maneiras, à natureza. Ao longo desses 30 dias, celebramos o Dia do Biólogo (2/9), o Dia da Amazônia (5/9), o Dia da Árvore (22/9) e o Dia Mundial dos Rios (29/9). Diante de tantas datas relevantes, especialmente no contexto atual de mudanças climáticas, surge uma importante reflexão: nossas crianças têm contato suficiente com livros infantis que retratam a flora e a fauna brasileiras? E como o contato com a biodiversidade do Brasil, por meio das histórias, pode impactar os pequenos leitores?

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Para Ana Carol Thomé, pedagoga, especialista em educação e natureza, idealizadora do programa Ser Criança É Natural, o grande volume de livros traduzidos, mostrando os animais e a vegetação de outros países, conduz as crianças a formar um repertório baseado em espécies de outros locais.

Isso pode levá-las a não reconhecer os recursos naturais do próprio país. “É essencial termos um acervo de livros cada vez mais brasileiro, que haja apoio para uma literatura não só de fauna e flora brasileiras, mas também de funga (termo usado para a diversidade de comunidades fúngicas). É preciso pensar em como dar visibilidade para todas essas espécies, para as paisagens e os nossos biomas. Isso também é a geração de processos de reconhecimento, de pertencimento e identidade”, explica.

A especialista relembra sua própria experiência de infância neste contexto. “Eu moro em São Bernardo do Campo (cidade da região metropolitana de São Paulo). Nasci na Serra do Mar e o quanto ouvi histórias de sobre a Mata Atlântica também refere sobre o ser natureza que eu sou”. O programa Ser Criança é Natural, idealizado e coordenado por ela, nasceu em 2013, a partir de suas pesquisas e vivências, atuando em duas frentes: família e educação, promovendo experiências para as crianças e formação para os adultos, como encontros e oficinas para brincar com a natureza juntos.

O repertório oferecido por materiais estrangeiros, como livros, animações e filmes que os pequenos consomem, muitas vezes faz com que crianças brasileiras desenhem uma macieira em vez de uma jabuticabeira, ou um urso em vez de uma onça-pintada. Quantas delas pensariam em desenhar uma vitória-régia no lugar de uma rosa?

“Muitas vezes, o leão, o pinguim ou o urso entram naquele lugar do imaginário, de algo que não é tangível para criança. Diferentemente de um tucano. Por exemplo: eu moro perto de um parque onde existem muitos tucanos. Ao ler uma história com este animal, cria-se uma relação, pois encontro o tucano por perto. Esse é um processo muito importante, de ir se conectando com o entorno, ir criando outros saberes e outras relações imaginárias de mim mesma com o mundo. É algo palpável, que está ao meu lado, uma natureza que pulsa em mim também”, diz Ana Carol.

Veja também: Biodiversidade: por que a flora e fauna brasileira deveriam estar mais presentes no livro infantil?

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Imagem do livro “Boniteza Silvestre” de Lalau e Laurabeatriz (editora Peirópolis). Crédito: Clube Quindim.

Mas o que fazer com a quantidade considerável de livros que apresentam espécies de fora do Brasil? “Logicamente, é importante que as crianças saibam que em outras partes do mundo existem animais e plantas que não temos aqui, e que a preservação destes deva também ser buscada. No entanto, me parece mais oportuno ocupar as crianças, na fase mais prematura, com os animais ou plantas que efetivamente existem ao seu redor. Isso me parece atender melhor o objetivo central de se escrever livros infantis, ou seja, de criar em cada criança o amor por estes seres, entendendo porque nos são úteis e de que forma podemos nos beneficiar se soubermos como protegê-los”, afirma Gilberto José de Moraes, professor colaborador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (ESALQ/USP), um dos autores de  “A árvore e seus amigos”, disponível para download gratuito.

Diante da biodiversidade brasileira, não faltam motivos para que nossos animais, vegetais e fungos ganhem mais evidência na literatura infantil frente aos materiais que retratam a natureza e as paisagens de outros países.

Vale lembrar que o Brasil tem*:

  • Mais de 116.000 espécies animais conhecidas;
  • Mais de 46.000 espécies vegetais conhecidas;
  • 6 biomas terrestres (Floresta Amazônica, Pantanal, Cerrado, Caatinga, Pampa e Mata Atlântica);
  • Costa marinha de 3,5 milhões km² (inclui ecossistemas como recifes de corais, dunas, manguezais, lagoas, estuários e pântanos);
  • 20% do total de espécies do mundo, encontradas em terra e água.

*Fonte: Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Conhecer (e reconhecer) a natureza leva ao desejo de preservação

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Imagem do livro “A perigosa vida dos passarinhos pequenosde Míriam Leitão e Rubens Matuck (editora Rocco). Crédito: Clube Quindim.

Os benefícios são diversos quando o pequeno leitor tem contato com as espécies brasileiras durante seu processo de construção, como despertar o olhar, desde cedo, para a preservação do meio ambiente – algo tão urgente no cenário atual do Brasil e do planeta. “Não se pode gostar daquilo que não se conhece. Por isso, penso que, para que as crianças possam desenvolver o interesse pela preservação, necessitam primeiro ter algumas informações básicas que as levem a se interessar pela natureza. Precisam ter alguma informação sobre o que são as plantas, como é a vida delas, quais os animais que com elas vivem, qual o papel de cada um, como se aproveitam das árvores, o que seria deles sem as árvores e o que seria das árvores sem eles”, defende o professor Gilberto.

Conhecer e reconhecer o seu entorno por meio da literatura infantil também colabora para que as crianças se apropriem da realidade em que vivem. “Garantir a diversidade do acervo [de livros] proporciona que elas tenham acesso a muitas histórias e a diferentes tipos de personagem. Isso assegura que, através da literatura, consigam ampliar seus conhecimentos, sua visão de mundo, tornando-se pessoas também cada vez mais críticas. Aqui na Vaga Lume, entendemos também a importância de que essas histórias sejam dos próprios territórios, o que fortalece as identidades da cultura e a noção de pertencimento, levando a um maior interesse em preservar e cuidar daquilo que também é das crianças, com toda a biodiversidade presente”, pontua Lohana Gomes, coordenadora de Educação da Vaga Lume, ONG focada em incentivo à leitura e que atua na implementação de bibliotecas em comunidades nos estados da Amazônia Legal.

É preciso criar uma relação com a natureza brasileira para que o desejo de cuidar dos nossos ambientes seja despertado. “Boas relações geradas na infância vão gerar bons momentos, bons vínculos de pertencimento, boas memórias. Para além do ‘saber sobre’ existe ‘o brincar com’ para criar afeto e memórias. E é isso que vai garantir que as crianças pensem sobre preservação hoje, e não no futuro, querendo garantir o espaço para que elas vivam essas experiências agora”, explica Ana Carol Thomé.

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o que é transtorno de déficit de natureza?

Conhecer animais, plantas e fungos do Brasil por meio de livros ainda leva a outra construção para as crianças e suas famílias: o incentivo do contato com a natureza e o desejo de brincar nesses ambientes.

Ana Carol Thomé destaca que precisamos partir do princípio de que somos natureza. Assim, brincar na natureza é a melhor condição para o nosso desenvolvimento integral. “Brincar é a atividade primordial da criança para pesquisar o mundo e se desenvolver. Temos que abrir possibilidades para que esse brincar aconteça da melhor forma possível. Quando se está em um ambiente de muita biodiversidade, com oportunidade de investigação, existem mais chances de experimentação com o nosso corpo. A natureza oferece a melhor condição para o nosso desenvolvimento integral: emocional, cognitivo, criativo, motor, de comunicação“, diz.

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Imagem do livro “O jabuti, a baleia e a anta” de Stela Barbieri e Fernando Vilela (editora Jujuba). Crédito: Clube Quindim.

A especialista, no entanto, ressalta que, mesmo destacando todos os benefícios do contato com a natureza na infância, o que acaba chamando mais a atenção são as consequências de quando isso não ocorre. Ela pontua que pesquisas já alertam sobre o nosso adoecimento quando essa relação não acontece. Aqui, Ana Carol se refere ao transtorno de déficit de natureza, termo trazido no livro “A última criança na natureza”, do norte-americano Richard Louv, jornalista, especialista em advocacy pela infância e cofundador do Children & Nature Network.

Para ele, diversos problemas atuais enfrentados pelos pequenos, como dificuldade de concentração, hiperatividade e obesidade, estão conectados à falta de contato com os ambientes naturais. Em entrevista à revista Época, Louv afirmou que “a pesquisa, a experiência e o bom senso sugerem que nossa atração e necessidade de ambientes naturais e envolvimento com outras espécies são fundamentais para nossa saúde, nossa sobrevivência e nosso espírito. Essa conexão é parte de nossa humanidade”.

Na mesma entrevista, o pesquisador explicou que o transtorno de déficit de natureza não é um diagnóstico médico, mas que “podemos considerá-lo como uma doença da sociedade“. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em relatório publicado em 2021, também defende a importância das áreas verdes urbanas para o desenvolvimento das crianças e adolescentes. De acordo com o órgão, cada criança, não importa onde ela viva na cidade, deve estar a uma distância caminhável de um espaço verde público seguro e acolhedor.

como colocar as Crianças mais em contato com natureza?

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Imagem do livro “Palmas para o bicho que ele merece!” de Lalau e Laurabeatriz (editora Companhia das Letrinhas). Crédito: Clube Quindim.

O material “Parques naturalizados – Como criar e cuidar de paisagens naturais para o brincar”, uma iniciativa do Instituto Alana, aponta benefícios da natureza para o desenvolvimento de bebês, crianças e adolescentes:

  • A natureza é importante para o desenvolvimento das crianças em todas as dimensões – intelectual, emocional, social, cultural, espiritual e física;
  • Estudos com crianças em espaços naturalizados revelaram que elas se envolvem em brincadeiras mais criativas, cooperativas e que incluem a resolução de problemas;
  • A proximidade e a exposição diária a cenários naturais aumenta a capacidade de concentração das crianças e desenvolve suas capacidades investigativas e cognitivas;
  • Crianças que brincam em ambientes naturais diversos são mais ativas fisicamente e têm coordenação motora e equilíbrio mais desenvolvidos;
  • As crianças que cultivam os seus próprios alimentos são mais propensas a comer frutas e vegetais e a mostrar níveis mais elevados de conhecimento sobre nutrição – além de estarem mais propensas a manter hábitos alimentares saudáveis pela vida;
  • Passar mais tempo ao ar livre pode reduzir as taxas de miopia em crianças e adolescentes;
  • As crianças que têm oportunidades regulares de brincar livremente ao ar livre – criando, investigando e construindo com quem elas escolhem estar – desenvolvem melhores habilidades sociais;
  • O acesso a espaços verdes traz paz, calma e autocontrole para as crianças, particularmente para as que vivem em grandes cidades.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) diz que o contato com a natureza propicia relaxamento, estimula a curiosidade, a criatividade e a autonomia das crianças durante sua fase de crescimento e desenvolvimento corporal, cerebral e emocional – e tudo isso trará reflexos positivos durante a vida.

Para auxiliar a todos, a SBP lançou, em 2019, um manual de orientação sobre o tema, chamado “Benefícios da natureza no desenvolvimento de crianças e adolescentes”. Algumas das principais recomendações do documento são:

  • Acesso diário a, no mínimo, uma hora de atividades em contato com a natureza, seja para brincar, aprender ou conviver com o meio ambiente;
  • Escolas e instituições de cuidados devem organizar suas rotinas e práticas de forma a equilibrar o tempo destinado às atividades curriculares com o tempo livre (recreio), a fim de permitir que as crianças e os adolescentes tenham amplas oportunidades de estar ao ar livre;
  • O poder público deve garantir que todas as crianças e adolescentes tenham acesso a áreas naturais, seguras e bem mantidas, a uma distância inferior a 2 km de suas residências;
  • Os adultos devem compartilhar seu apreço pela natureza e pelas atividades de lazer ao ar livre pautadas pelas relações, pelos encontros, movimento, contemplação e momentos de relaxamento;
  • As crianças e adolescentes devem ser orientados a buscar o equilíbrio no qual tanto o uso da tecnologia como a conexão com o mundo natural prosperem de forma benéfica.

Mas o que as famílias podem fazer? O programa Ser Criança é Natural oferece uma série de materiais de apoio que ajudam a ter ideias. Além disso, Ana Carol Thomé traz algumas dicas:

  • Incluir a ideia na rotina com pílulas diárias de natureza;
  • Coletar materiais mais orgânicos para as brincadeiras, como gravetos e pedras;
  • Criar oportunidades para que as crianças possam andar descalças na grama, na terra, na areia, com acesso a superfícies irregulares para criar experiências;
  • Caminhar pelo bairro, visitar parques e praças – esses passeios podem ser feitos em grupo, com os amigos das crianças e suas famílias.
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Estante Quindim

Conheça 3 livros infantis já enviados pelo Clube Quindim que retratam a fauna e flora do Brasil:

Palmas para o bicho que ele merece (autores Lalau e Laurabeatriz, editora Companhia das Letrinhas)
Palmas para o bicho que ele merece, de Lalau e Laurabeatriz
Cadê os bichos? (autora Cris Eich, editora Bamboozinho)
Cadê os bichos?, de Cris Eich
A perigosa vida dos passarinhos pequenos (escritora Míriam Leitão, ilustrações Rubens Matuck, editora Rocco)
A perigosa vida dos passarinhos pequenos, de Míriam Leitão e Rubens Matuck