Cada criança é única, assim como cada adulto é único. Ninguém discorda. Por isso, ao indicar livros para crianças, em vez de utilizar divisões por faixas etárias, muitos especialistas preferem classificá-los de acordo com os já instaurados “perfis de competência leitora”, que indicam níveis de competência leitora que não estariam associados à idade do leitor. Esses critérios estão tão disseminados que é raro encontrar alguém da bolha da área da leitura que nunca tenha ouvido falar nas classificações pré-leitor, leitor iniciante, leitor autônomo, leitor fluente, leitor crítico e afins.

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Mas… de onde vieram essas classificações?

Há muitos tipos de classificações, a maior parte delas dividindo os temas, gêneros e formatos “adequados” a cada idade, baseados em linhas da psicologia do desenvolvimento bastante lineares e até mesmo consideradas ultrapassadas. Neste post, vamos nos focar naquelas que utilizam as nomenclaturas de pré-leitor a leitor fluente, que foram objeto de estudo na Fundação Nacional do Livro Infantil nos anos 1960 e 1970 e se estabeleceram a partir dos parâmetros propostos pela Profa. Nelly Novaes Coelho, no conhecido livro Literatura infantil: teoria, análise, didática, de 1981. Segundo Coelho, trata-se de uma classificação baseada na relação entre “idade cronológica, nível de amadurecimento biopsíquico-afetivo-intelectual e grau ou nível de conhecimento/domínio do mecanismo da leitura” (COELHO, 2000:32).

Tal classificação, por sua vez, foi derivada da obra do sociólogo francês Marc Soriano, do clássico Guide de Littérature pour la Jeunesse, de 1970. Soriano é sociólogo e, assim como Coelho, baseia-se na Psicologia Experimental, que defende que “embora a evolução biopsíquica das crianças, pré-adolescentes e adolescentes divirja de uns para outros […], a natureza e a sequência de cada estágio são iguais para todos” (COELHO, 2000:32).

Uma visão da infância pela Psicologia Experimental

A Psicologia Experimental, que gerou as classificações tão utilizadas de pré-leitor, leitor iniciante etc., institui conceitos que demarcam e seguem à risca estágios de desenvolvimento, segmentando-os, classificando-os e ordenando-os. Na voz de uma de nossas curadoras, Eliane Debus, a Psicologia Experimental “introduz uma ideia de homogeneidade e linearidade, ou seja, a criança é vista como sujeito a-histórico. Dessa forma, não vislumbra a criança em relação com seu contexto social e cultural, no seu tempo presente, como sujeito que modifica e é modificado, que tece as tramas do tecido-vida e é por ele tecido”. (DEBUS, s/d)

De fato, quando analisamos a obra de Soriano hoje, no século XXI, é natural confirmar a presença de algumas perspectivas da década de 1970 bastante questionáveis sobre a infância. Como quando defende que o tempo de vida de uma pessoa seria um limitador da sua percepção do real, estabelecendo uma hierarquia limitante entre infância e fase adulta:

A literatura infantil é uma comunicação histórica (localizada no tempo e no espaço) entre um locutor e um escritor-adulto (emissor) e um destinatário-criança (receptor) que, por definição, ao longo do período considerado, não dispõe senão de modo parcial da experiência do real e das estruturas linguísticas, intelectuais, afetivas e outras que caracterizam a idade adulta (SORIANO, 1975, grifo nosso – e só para ficar claro: discordamos dele).

Ou seja, a ideia disseminada de que as categorias de competência leitora como pré-leitor, leitor iniciante, leitor autônomo, experiente, fluente etc. não estão baseadas em divisões hierárquicas e por faixa etária está um tanto equivocada.

Então classificar por competência leitora não faz sentido? 

É inegável que essas classificações estão associadas a estágios de desenvolvimento, que por sua vez estão relacionados a faixas etárias. Mas é também inegável que ao fugirem dos números, das idades, elas amenizam uma classificação rígida e direta e ampliam a possibilidade de essas obras entrarem em contato com leitores de diferentes idades, auxiliando de certo modo aqueles que estudam e trabalham com literatura infantil e leitura.

Porém, tão importante quanto desvincular competência leitora de faixa etária é compreender que ela não está associada apenas às competências linguísticas: leitura não é decodificar o alfabeto. É decodificar o mundo. E muitos leitores das mais variadas idades e sem experiência na fruição de um texto escrito são grandes ouvintes, observadores e intérpretes das muitas linguagens em nosso entorno.

É preciso sair da bolha

Mas será o caso de impor essa classificação ou essa reflexão entre quem não está nesse mundo? Classificar os títulos de uma biblioteca aberta ao público por competência leitora? De uma livraria? De um clube de livros? Se o objetivo do projeto for a democratização da leitura, por que precisaríamos exigir que os não iniciados no tema entendam sobre essas reflexões para ter acesso a livros para seus filhos? Não estaríamos aí criando mais uma barreira, mais um muro?

Lembrando que a responsabilidade pela educação no Brasil é delegada em grande parte à mulher, que sofre dupla, tripla jornada de trabalho. Exigir dessa mulher pré-conhecimentos técnicos sobre leitura para acessar livros infantis não seria criar mais um obstáculo para fazer da leitura uma presença em sua casa?

Se a proposta é acolher, oferecer auxílio, espalhar e democratizar a leitura de uma literatura infantil de qualidade, é preciso sair da bolha. É preciso romper com pré-requisitos que transmitem autoridade no assunto na mesma medida que afastam com muros.

Mas como responder ao mundo dividido por faixas etárias e ciclos de ensino?

No Clube Quindim, junto de nossos curadores, optamos por categorizar as seleções por faixas etárias, que relacionamos a perfis leitores. Assim, em vez de impormos um pré-conhecimento aos pais que procuram auxílio e estão imersos em um mundo dividido por idades, buscamos nos aproximar deles. Mas, não, isso não significa que aquele livro se restringe àquela idade, e sim que pede uma determinada fluência leitora (lembrando que essa fluência não está necessariamente relacionada ao texto escrito).

Livro bom é para todas as idades?

E, já que estamos falando sobre o tema das faixas etárias, impossível não discorrer sobre esta afirmativa genérica: “livro bom é para todas as idades”. De fato, alguns livros considerados infantis possuem características que conversam com leitores de todas as idades, sejam crianças ou adultos. Eles trazem muitas camadas de leitura, figuras de linguagem, sensibilizam de diferentes modos leitores de diferentes idades e repertórios, sem apresentar barreiras que tornariam a leitura obscura a leitores menos experientes.

É um fenômeno que em inglês é chamado de dual audience, característico da contemporaneidade e muito presente em especial nos álbuns ilustrados contemporâneos. Mas será que todo livro infantil de qualidade literária conversa com todas as idades? Não acreditamos que haja uma resposta simplista a essa pergunta. Preferimos rememorar a sabedoria de Perry Nodelman, no artigo “Reading across the border”, quando diz:

“[…] apesar de muitos especialistas conhecerem e estarem entediados com as mesmas velhas histórias, para o público de crianças a quem os livros são comprados, ou ao menos como é compreendido por aqueles que realizam as compras, essas histórias são sempre novidade […].” (2004:240, tradução nossa)

Olhar de descoberta

Ou seja, há muitos livros que entediariam um determinado adulto (as mesmas velhas histórias), entretanto, são novidades para os leitores em formação e fundamentais até mesmo por fazer parte do repertório cultural daquela sociedade. É como alguns livros que trazem a “velha” jornada do herói e demais estruturas que os especialistas estão cansados de conhecer, mas que encantam os leitores que entram em contato pela primeira vez com aquela estrutura. (Mais um motivo para se apresentar às crianças não apenas as novidades contemporâneas mas também os clássicos e as consideradas formas simples – lengalengas, adivinhas etc.)

Da mesma maneira que certas obras infantis podem não despertar interesse em alguns leitores mais experientes, títulos que são à primeira vista considerados infantis pelo seu formato podem ser obscuros a leitores menos experientes, exigindo um repertório de vocabulário, de fluência linguística ou mesmo uma abstração que o considerado pré-leitor não alcança. Num extremo absurdo, mas para se fazer compreender, é como achar que Proust, se tivesse pouco texto, fosse ilustrado e tivesse um formato quadrado como o de muitos livros infantis, acessaria leitores inexperientes e os encantaria simplesmente por ser uma literatura incrível.

Acolher em vez de afastar

Nessa busca pela aproximação, o caminho no Quindim tem sido não apenas dar acesso a literatura infantil de qualidade mas também oferecer material de apoio ao adulto, com informações sobre a leitura compartilhada, competência leitora e o universo da leitura em geral.

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A ideia é auxiliar mães e pais a ultrapassarem esse obstáculo inicial, oferecendo acesso a livros infantis com potência para os sensibilizarem, para que esses adultos possam, com gosto, aos poucos e conforme suas possibilidades, ler com seus filhos, fazer disso um prazer rotineiro, e então conhecê-los melhor em diversos aspectos, como na competência linguística. E só assim entender melhor as obras com maior potencial para encantar aquela criança.

Na prática, não importa se você chama de 0 a 2 anos, 0 a 6 ou se chama de pré-leitor. Se não tiver contato com a criança, se não conhecê-la a fundo, nunca será totalmente certeiro nas indicações de obras. Por outro lado, quem é totalmente certeiro, se estamos adultos e crianças em constante transformação? O que se pode fazer enquanto projeto é oferecer uma biblioteca diversificada, com temas e gêneros diversos, autores de diferentes origens, pensando em diferentes perfis de competência leitora, para que a criança experimente mundos que ultrapassem a barreira do conhecido, do “gosto” e “não gosto”, ampliando seu repertório de leitura. Seu repertório de mundo. E, sim, isso já é muito.

Acompanhando nossos leitores

Por isso, adoramos e incentivamos que os pais, conforme se aproximam desse momento e ele se torna parte da rotina da casa, nos deem um retorno sobre aquela experiência, para juntos alinharmos os perfis de obras enviadas à criança conforme as características observadas pelos pais no cotidiano.

Essa é a proposta: acolher e auxiliar nessa experiência, conversar caso a caso. Afinal, cada criança é única! Cada família é única! Mas todos têm Direito à Literatura.

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Bibliografia 

BECKETT, Sandra L. (org.). Transcending boundaries: writing for a dual audience of children and adults. Nova York: Garland Publishing, 1999.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. Edição revista e ampliada. São Paulo: Moderna, 2000.

DEBUS, Eliane. “O que se dá a ler a quem dizem que não lê: as concepções de leitura/leitor e os critérios na escolha de livros para as crianças de 0 a 6 anos”. Anais do 15o. Congresso de Literatura Infantil. Disponível em: <http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais15/alfabetica/DebusElianeSantanaDias2.htm>. Acesso em: 11 fev. 2020.

NODELMAN, Perry. “Reading across the border”, The horn book magazine, v. LXXX, n. 3, maio-jun. 2004.

SORIANO, Marc. Guide de Littérature pour la Jeunesse: courants, problèmes, choix d’auteurs. Paris: Flammarion, 1970.

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