Os seres mágicos acompanham a humanidade muito antes da escrita. Mas, para a infância, eles ganharam mais relevância no formato que chamamos de contos de fadas ou contos maravilhosos. Os contos de fadas possuem raízes históricas e são narrativas estruturadas como um sonho: uma linguagem condensada e carregada de simbolismos. Nem todo conto de fada tem a presença da fada, mas todos têm um ser ou elemento mágico. Portanto, é importante que o adulto compreenda que personagens como bruxas, duendes, fadas, unicórnios e sereias representam muito mais que uma leitura simplista ou um olhar ligado à figura estereotipada e difundida no popular.
A psicanalista e escritora Ninfa Parreiras em seu livro Confusão de línguas na Literatura: o que o adulto escreve, a criança lê (editora RHJ), traz diversos exemplos:
“A casa de doces da bruxa da história de João e Maria, dos irmãos Grimm, pode representar o mundo novo, a voracidade, a fome, a saciação da fome. Pode ser ainda o encantamento, a falsidade, a beleza, a sedução, a aparência, a oralidade da criança, a ganâcia, o excesso.”
Ou seja, João e Maria é uma história que aborda temas fundamentais para o desenvolvimento infantil e humano, tanto na época em que foi escrita como nos dias de hoje.
Os contos de fadas e os seres que nele habitam sobreviveram ao longo dos séculos porque estão ligados à essência do ser humano. Trazem sentimentos que pertencem às crianças desde os seus primeiros dias de vida, como amor, ciúme, medo, abandono, perda. A força do conto de fadas está nesse encontro entre o real e o imaginário.
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Contos de fadas seriam histórias muito assustadoras para crianças?
O adulto se equivoca ao evitar que a criança tenha contato com histórias de bruxas e monstros para que ela não vivencie o medo. Para o psiquiatra e escritor Celso Gutfreind, “o medo tem uma função importante nos contos, representando uma emoção fundamental para toda a vida do ser humano e constituindo-se em um fator de proteção durante a infância. Aprender a lidar com ele é um desafio para a criança. Entretanto, as possibilidades de representação de situações assustadoras parecem ser um dos atrativos em um conto infantil” (Contos e desenvolvimento psíquico, Editora Viver, Mente & Cérebro).
A presença de “seres mágicos” pode despertar uma porção de sentimentos, tornando-se tanto um modelo de coragem como de medo. Ao contrário do que acontece em muitas (más) adaptações, um personagem pode representar coisas boas e ruins ao mesmo tempo, não precisando seguir o caminho dos maniqueísmos, do bem contra o mal.
Um ser mágico pode fazer maldades para proporcionar o crescimento pessoal do herói, dando-lhe a possibilidade de reflexão e superação, como no conto “A Bela e a Fera”, em que uma fada malvada condenou o príncipe a viver sob forma animal até que a moça tivesse coragem e consentisse em se casar com ele, redimindo-o do feitiço. Um outro exemplo é na própria história de João e Maria em que o encontro com a bruxa contribui para evidenciar a esperteza e a inteligência dos personagens.
Encontramos na literatura infantil e juvenil histórias com seres mágicos escritas por importantes autores do mundo e do Brasil. Autores que se dedicaram e se preocuparam com o desenvolvimento da criança e da construção do seu imaginário. Provavelmente a atual geração de pais, tios e avós ouviram ou leram histórias com bruxas, duendes, fadas, ogros, centauros desses escritores. Então, antes de descartar dar acesso a esses livros pergunte a sua memória afetiva o quanto você se divertiu e o quão foi importante conhecer algumas dessas histórias.
No livro A psicanálise dos contos de fadas (Editora Paz e Terra), o psicólogo Brunno Bettelheim afirma que “dentro da literatura infantil, nada pode ser tão enriquecedor e satisfatório, tanto para crianças como para adultos, do que os contos de fadas folclóricos. Eles ensinam pouco sobre condições específicas da vida contemporânea, mas através deles pode-se aprender muito sobre os problemas interiores dos seres humanos.”
10 livros infantis para entender a importância dos contos de fadas
A seguir, o Clube de Leitura Quindim selecionou 10 contos de fadas que já foram entregues aos nossos assinantes e ajudam a entender a importância desses seres mágicos para a infância.
1. Doze reis e a moça no labirinto do vento
Esta obra traz uma antologia de contos de uma das maiores autoras contemporâneas de literatura infantil e juvenil: Marina Colasanti. E mais, uma escritora brasileira que traz, por meio do simbólico dos contos de fadas, questões humanas extremamente profundas.
Como a própria Marina diz, os contos de fadas são uma preparação para a criança entrar no mundo dos sonhos, ou seja, o mundo interior. Seus símbolos substituem uma ideia, uma forma de sentir. Nem sempre a criança capta as camadas de leitura mais profundas. Mas a literatura deixa suas pistas, e se num momento inicial a criança lê apenas o aspecto concreto da história, obras como as de Marina Colasanti começam a abrir caminho para a compreensão de novas camadas mais adiante.
2. Instruções: tudo que você precisa saber durante a sua jornada
Nesta obra, o escritor Neil Gaiman criou um manual de instruções para os leitores de todas as idades que querem se aventurar no mundo do imaginário com segurança. Assim como o “era uma vez”, aqui ele usa a expressão “por favor” como a chave mágica para entrar nessas aventuras.
Esse personagem passa por todas as etapas da jornada do herói, um conceito de jornada cíclica presente em mitos, estudado pelo antropólogo Joseph Campbell. Nessa trajetória, desde a sua partida até o seu retorno para casa, existem diferentes ritos e dificuldades que o herói precisará entender e enfrentar. Campbell afirma que mitos clássicos de muitas culturas seguem esse padrão básico. Ele está dividido em três momentos: partida, iniciação e retorno. E todos encontraremos esse formato nas mais diversas narrativas, de clássicos a filmes hollywoodianos. A obra nos ajuda a ter consciência sobre essa estrutura.
3. Filó e Marieta
Eva Furnari é a mestre das bruxas dos álbuns ilustrados brasileiros. Criou para nós muitas delas, amadas por gerações, como a Bruxa Zuzu e a Filó e Marieta, sempre com seu bom humor característico. Seu trabalho é hoje muito reconhecido e rendeu ao longo da carreira diversos prêmios.
Nesta obra, surgem muitas confusões do encontro entre essas duas bruxas simpáticas, criando página a página uma história sobre amizade e bom humor, e tudo com muita simplicidade. Já dizia Clarice Lispector: “Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho”.
Trata-se de um livro de imagem, ou seja, um livro que não possui texto além daqueles que entram na capa, orelha, biografia etc. Este tem apenas uma pequena introdução com palavras. O resto funciona como uma arte sequencial, usada para se comunicar desde as primeiras pinturas nas cavernas.
A criança não está tão acostumada a ler imagens e por vezes ela pode se focar mais na história de um personagem secundário, como o cão, do que na dos principais. Isso tudo faz parte do aprendizado, o importante é brincar, explorar e deixá-la livre para se divertir com o livro. Já os adultos estão mais acostumados a ler imagens em sequência, e muitas vezes nem percebem que há uma lacuna de ação entre uma imagem e outra. Essa lacuna precisa ser preenchida pela imaginação do leitor.
4. OLHE PELA JANELA
Nesta obra, o recorte de uma janela apresenta aos leitores alguns personagens. À primeira vista, o lobo parece assustador e a vovozinha, uma senhora simpática. Mas, não se engane! A obra de Katerina Gorelik brinca com pontos de vista, expectativa e medo. A cada virar de páginas, a história quebra as expectativas do leitor e podemos perceber que nossa primeira impressão sobre os personagens pode estar um tanto equivocada.
Pode ser que este livro cause um pouco de medo num primeiro momento. Mas, ao mesmo tempo que promove um suspense, essa obra desconstrói o medo e é uma importante ferramenta para acolher esse sentimento. Afinal, ele faz parte de nossas vidas e é uma proteção natural que existe em todos nós! E a melhor forma de as crianças entenderem como lidar com esse sentimento é no conforto e na segurança do lar.
5. Sonho de uma noite de verão
Em uma noite de lua crescente, o duende Puck faz mil trapalhadas no bosque. Erra os encantamentos. Bota a cabeça de um asno em um rapaz e faz a rainha das fadas, Titânia, se apaixonar por aquele ser horroroso. Dois namorados estão fugindo, mas Puck faz que, ao acordar, o rapaz se apaixone por outra. O bosque vira uma confusão. E nessa história aqui contada em prosa e de forma teatral, o grande William Shakespeare fala dos mitos gregos e celtas em forma de uma comédia que faz todo mundo rir.
Escrita na década de 1590, essa peça de teatro é revisitada até hoje, em suas mais diferentes traduções e adaptações. Trata de um tema irresistível, o amor, e apesar dos momentos densos, é uma comédia escrita com personagens e elementos da mitologia greco-romana e da literatura clássica. Um clássico que todo leitor em formação deve conhecer.
6. A Bela Adormecida
A história de A Bela Adormecida sempre foi vista como um ritual de passagem da adolescente para mulher. No 15º aniversário, a princesa cai no sono profundo esperando o seu príncipe para despertá-la.
Esse ritual, europeu, perdura em nossa sociedade. Ainda hoje encontramos os bailes de debutantes ou as festas de 15 anos para as meninas. Mas reduzir essa história colocando a mulher numa versão passiva é um erro. São as personagens femininas conduzem a história. A rainha toma várias decisões importantes sobre a sua filha, as fadas ofertam as características da princesa que inclui não só beleza, mas sabedoria e poder de decisão. Vários príncipes tentam passar pela floresta de espinhos e não conseguem. Essa barreira só se abre para um príncipe mostrando que a escolha não é do personagem masculino e sim do feminino.
Trata-se de um conto de fadas da cultura europeia, que atravessou fronteiras. Os contos de fadas não precisam necessariamente ter fadas, eles apresentam outros seres míticos, como dragões, unicórnios, duendes etc. Cada cultura tem os seus. Ter acesso a diferentes contos de fadas revela muito dos costumes e da cultura de um povo.
7. A inacreditável história de 2 crianças perdidas
Este álbum ilustrado contemporâneo conta a história de Gilda e Godofredo, duas crianças que querem se salvar de seres horríveis que as aprisionam. O texto traz a história contada pela perspectiva dos personagens crianças, Gilda, que vivia em uma cabana de madeira com “um ogro bem malvado”, que “não a deixava sair de lá nunca”; e Godofredo, que “era prisioneiro de uma bruxa horrorosa”. Conforme avançamos a história, vamos descobrindo nas imagens que o ogro bem malvado e a bruxa horrorosa não eram tão ruins assim. E que são as crianças na verdade que parecem ser bem folgadas.
Essa informação só encontramos na imagem, o que gera uma contradição entre o que está dito no texto e o que está dito na imagem. Tal contradição cria uma divertida ironia, que propõe uma bela reflexão sobre diferentes pontos de vista e sobre relacionamentos, em especial relacionamentos entre pais e filhos. Uma obra bem característica da literatura infantil contemporânea que toda criança merece ler!
8. Contos de Fadas
Este livro traz uma bela antologia de versões originais de grandes contos de fadas que marcaram gerações. Hoje, a grande maioria de nós conhece apenas versões recentes adaptadas, por vezes censuradas por uma preocupação em amenizar as histórias e proteger seus leitores. Assim muitos contos perdem a força e se tornam histórias açucaradas e didáticas. Em sua origem, porém, eles em geral faziam parte da tradição oral, sendo contados e modificados a cada reconto. Essas diferentes versões se multiplicam. Considera-se, portanto, versão original quando essas histórias foram pela primeira vez fixadas por escrito.
Esta antologia que reúne ainda grandes escritores e ilustradores do gênero, como Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, Wilhelm Grimm, Charles Perrault, Jacob Grimm, Joseph Jacobs, Hans Christian Andersen, Gustave Doré, Walter Crane e muitos outros. Esses ilustradores criaram uma espécie de “estética dos contos de fadas”, cujos traços e estilos influenciaram toda a estética do cinema de fantasia, que por fim influenciou a da multibilionária indústria dos videogames.
9. Cacoete
Cacoete era uma cidade muito organizada. Talvez a mais organizada do mundo. Seus habitantes seguiam certas regras especiais. Quem era alto sentava em cadeira alta, quem era baixo sentava em cadeira baixa, anões de jardim ficavam no guarda-roupa para não tomar chuva e no dia dos professores só se podia dar de presente maçã.
Todos viviam bem seguindo ipsis literis todas as regras, até que um dia, porém, algo inesperado aconteceu. Frido, um menino da cidade, foi comprar uma maçã para presentear sua professora, e coisas estranhas começaram a acontecer… coisas que mudariam a cidade para sempre. E é claro que, com a maravilhosa Eva Furnari, tem bruxa nesta história.
É por meio da relação com o mágico que a transformação acontece, a ordem perfeita se perde e com as muitas imperfeições causadas pela bagunça novidades surgem, uma transformação que acontece tanto no texto quanto nas imagens e no projeto gráfico. Logo, os moradores da cidade se adaptaram, e “passaram a se vestir cada um de um jeito e sentar na cadeira que bem entendessem. Presente de dia dos professores não precisava mais ser maçã”.
Uma obra maravilhosa que questiona, com o humor e perspicácia característicos de Eva Furnari, padrões e regras rígidos.
10. Minimaginário de Andersen
Hans Christian Andersen é considerado o primeiro escritor moderno de contos de fadas. A partir da tradição dos contos populares, criou textos inéditos que são apreciados até hoje e conhecidos no mundo todo. Nesta antologia de contos de Andersen, que foi enviada pelo Clube Quindim em comemoração ao Dia Internacional do Livro Infantil em 2018, foram selecionados contos sobre pessoas humildes, pequenas, frágeis, como os diferentes e marginalizados com quem Andersen se identificava.
Os contos populares, ou contos tradicionais, são narrativas em geral curtas, criadas para entreter ou educar o ouvinte. Através deles, transmite-se saber, cultura, valores e crenças. H.C. Andersen trabalhou com o formato do conto popular para criar histórias próprias, que se tornaram conhecidas por séculos.
Esta edição traz ainda ilustrações de Salmo Dansa, um artista brasileiro que já recebeu diferentes prêmios por seu trabalho. Uma característica recorrente na obra de Salmo é trabalhar a técnica do processo de ilustração como poética. Assim, ele usa penas de cisne para ilustrar O patinho feio. Trabalha com latas de sardinha para ilustrar A pequena sereia. E metal para O soldadinho de chumbo.