Saiba quem é o maior e mais prestigiado intelectual brasileiro, cujas ideias inspiram práticas pedagógicas e trabalhos acadêmicos do mundo inteiro, e por que ele é considerado desde 2012 o Patrono da Educação em nosso país.
Um educador nordestino
1921, 19 de setembro. No Recife, nasce Paulo Freire, filho de um capitão da polícia militar, Joaquim Temístoles Freire, e de Edeltrudes Neves Freire. O pai morre quando Paulo era ainda um menino de 13 anos, deixando a família sem posses, o que obriga sua mãe a procurar emprego para si e para os filhos maiores. Os anos tranquilos da infância acabam ali.
Paulo trabalhou como bedel para seguir estudando no Colégio Oswaldo Cruz, onde posteriormente atuou como professor de língua portuguesa. Cursou Direito na Faculdade do Recife, mas, depois de formado, preferiu a docência.
A vida como servidor público iniciou em 1947, ao ser nomeado diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social do Estado de Pernambuco. Em 1955, fundou o Instituto Capibaribe, uma escola modelo, que segue funcionando ainda hoje. Dez anos depois de sua inauguração, o Instituto foi reconhecido como bem de utilidade pública do Recife pela Assembleia Legislativa do Estado.
Suas atenções se voltam para o altíssimo nível de analfabetismo em sua região em particular, e no Brasil como um todo. O analfabetismo colocava o sujeito em um limbo civil: na época, o analfabeto não votava. Além disso, os grupos que disputavam hegemonia política na região usavam essa gente excluída como base eleitoreira, falsificando documentos e trocando votos por comida, emprego, pequenos favores de toda ordem.
Registros publicados pelo Instituto Paulo Freire dão conta de que a experiência de Angicos nasceu dessa preocupação, e do interesse de Calazans Fernandes, então secretário da Educação do Rio Grande do Norte. Para a aplicação do método, houve liberação de verbas provenientes dos Estados Unidos, para a erradicação do analfabetismo na América Latina, além de verbas locais. A Universidade do Recife sediou um processo seletivo para formação de professores que atuariam no projeto, e que foram instruídos pelo próprio Paulo Freire.
Angicos colocou o nome do educador no New York Times, na Associated Press e no Le Monde.
A experiência da abordagem freireana
No ano que antecedeu a instauração da ditadura militar, Paulo Freire implementou um movimento de alfabetização de adultos na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. Naquele momento, o índice de alfabetização no estado era de aproximadamente 20% da totalidade da população, e a renda per capita era de cerca de cem mil cruzeiros anuais, considerada abaixo da linha da miséria. O Serviço de Extensão Cultural da Universidade Federal do Recife selecionou estudantes, que receberam aulas do próprio Paulo Freire, sobre os objetivos que o projeto se dispunha a alcançar, e sobre a metodologia a ser utilizada.
A experiência de Angicos reescreveu o papel social das universidades, propondo que esses espaços de geração de saber devessem estar conectados às necessidades e às imanências de seu povo, de modo a estender às periferias do país as oportunidades de criação de conhecimento. Em seu discurso, no encerramento do Curso de Alfabetização de Adultos, Paulo afirmou:
Este trabalho – desenvolvido em Angicos, desenvolvido em Natal, feito em João Pessoa, feito no Recife – é um trabalho que traz, a esse sertão do Rio Grande do Norte, a Universidade do Recife. A Universidade do Recife, consciente da sua tarefa a cumprir, renuncia ao saber exotérico e alienado que caracteriza ainda as Universidades brasileiras e volta-se para o povo, que é a fonte realmente, onde temos de beber a autenticidade de nossa sabedoria universitária.
A experiência de Angicos utilizou uma metodologia de aprendizado inovadora, no sentido em que era construída a partir de cada grupo de estudantes, considerando suas especificidades. Partindo de seu vocabulário, que foi levantado pelos pesquisadores antes da implementação do projeto, partindo do diálogo, a abordagem freireana propunha que a alfabetização se desse a partir de palavras usadas no cotidiano, depois para as sílabas, para então chegar às letras. Do material e conhecido, para o abstrato. O resultado obtido impressiona pesquisadores até a atualidade: foram mais de 300 trabalhadores dos canaviais de Angicos alfabetizados em 45 dias de aula. Aulas que eram ministradas à noite, para estudantes que vinham de um dia duro de trabalho nos canaviais.
O crime de educar para a cidadania
O processo de alfabetização, entretanto, provocou um efeito colateral que chamou a atenção da ala conservadora da política local de pronto, e a médio prazo, também da polícia política do regime militar ditatorial que se inaugurou no ano seguinte. Esses 300 trabalhadores tornaram-se eleitores, e já não se prestariam à farsa dos currais eleitorais. O que Paulo Freire realizou no sertão do Rio Grande do Norte, com o aporte da Secretaria de Educação deste mesmo estado, da Universidade do Recife e do governo federal de João Goulart, foi educar como prática da liberdade, literalmente.
Freire é preso durante 72 dias, ainda no ano do golpe, e como diversos intelectuais perseguidos pelo regime, exila-se. Primeiro na Bolívia, a seguir no Chile, países que também passavam por severas turbulências políticas. Lá, atuando junto à Unesco, no Instituto de Capacitação e Investigação da Reforma Agrária, Freire concebeu o que é hoje considerada sua obra pivotal: Pedagogia do oprimido. Ali estão os conceitos que, construídos no decorrer de sua carreira e aplicados em Angicos, levaram-no a ser considerado o mais importante intelectual da academia brasileira, um pensador da Educação Crítica, autor de 25 livros considerados bibliografia básica em cursos de Pedagogia oferecidos pelas mais importantes universidades do mundo. O exílio só fez projetar sua relevância.
Socialismo cristão
Em 1970, atuou em Harvard como Professor Visitante e, dali, por escolha pessoal, preferiu atuar nos Conselhos de Educação Popular do Conselho Mundial de Igrejas na Suíça, o que lhe permitiu prosseguir com pesquisa e prática de metodologia de ensino e aprendizagem. Essa aproximação com a Igreja, em detrimento da carreira acadêmica dentro de uma das universidades mais importantes do Ocidente, é coerente com o perfil político do educador, que abertamente se declarava um socialista cristão. Foi em Genebra, também, que fundou o Instituto de Ação Cultural, cuja finalidade era fomentar a criação de centros de alfabetização para adultos, em países do sul global, privilegiando áreas de risco social com altos índices de analfabetismo.
Aproximou-se do movimento cristão da Teologia da Libertação, bem como do Partido dos Trabalhadores, mesmo antes do retorno ao Brasil, que aconteceu em 1980, assim que o estado de exceção foi suspenso e iniciado o processo de anistia.
O retorno de Paulo Freire ao Brasil
Voltando ao Brasil no ano de 1980, Freire prosseguiu com as pesquisas, com a criação de núcleos para alfabetização de adultos, e foi esse trabalho que o levou a ser nomeado Secretário de Educação na cidade de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina como prefeita. Em 1986, foi agraciado com o Prêmio Educação para a Paz, da Unesco. Quando o tema é educação, uma pesquisa da London School of Economics aponta que sua obra é a terceira mais citada, mundialmente falando.
Embora sua reputação tenha sido vilipendiada nos últimos anos, esse fenômeno não ultrapassou as fronteiras de nosso país. Paulo Freire é o intelectual brasileiro que mais recebeu a titulação de doutor honoris causa de nossa história. Foram 35 títulos concedidos ao longo de sua carreira, entre universidades brasileiras, como a Unicamp, onde atuou como Professor, e europeias, como a Universidade de Genebra, a Complutense de Madri e a Universidade de Lisboa. Por ocasião do centenário de seu nascimento, a Universidade de Columbia, que faz parte do seleto grupo conhecido como Ivy League, nos Estados Unidos, dedicou à sua obra uma série de eventos acadêmicos, e a liberação de verbas em linhas de pesquisa relacionadas ao escopo de seu trabalho.
Paulo Freire e a Arte Educação
A abordagem freireana para a Educação Popular tem na Arte Educação brasileira um lugar de destaque: a pesquisa e as realizações de Ana Mae Barbosa.
Ana Mae conheceu Paulo Freire ainda em Pernambuco e contou que não era sua intenção ser professora: isso mudou depois de ter conhecido o educador. Quando se preparava para prestar um concurso, Paulo foi seu Professor de Português. Ana Mae Barbosa conta que esse encontro mudou os rumos de sua vida:
Paulo me convenceu que a educação era uma forma de libertação. Ele me levou para a escolinha de arte que havia em Recife – a Escolinha de Arte do Brasil, criada na década de 1950, pelo artista pernambucano Augusto Rodrigues – e fui me envolvendo cada vez mais com a área. Paulo foi um grande mentor e amigo.
Anos depois, foi ela a primeira mulher brasileira a tornar-se doutora em Arte Educação, e a paixão pela educação popular, inflamada por Paulo Freire e sua prática, jamais a abandonou.
À frente do Museu de Arte Contemporânea da USP, Ana Mae deu fundamentação a um movimento que abriu ao povo as portas dos espaços de exposição artística. Atravessados por essa pesquisa estão todos os departamentos educativos de museus e centros culturais ao redor do país, bem como de mostras da magnitude da Bienal de Arte de São Paulo.
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A boniteza que transcende o tempo
Minha formação docente foi atravessada pela boniteza da prática de Paulo Freire desde o início. Foi o contato com a obra do educador, ainda durante a ditadura militar, que me colocou no caminho para o exercício da docência. A experiência de Angicos, no Rio Grande do Norte, aconteceu em 1963, ano em que nasci. Portanto, gosto de pensar que vim ao mundo sob a influência desse homem brilhante e humanista.
Paulo nos fala de um vir a ser. Paulo esperança, do verbo esperançar, e assim como a matéria mesma da Educação, que habita o processo de transformação humana pela via do conhecimento e do acesso à cultura, Paulo se localiza no futuro. Um futuro em que a cultura do silêncio terá sido finalmente rompida, e toda criança de fato exercerá o seu direito fundamental de ter acesso aos bens de cultura, ao conhecimento e, através desses, à felicidade.
2023, e Paulo Freire muito mais que vive.
Paulo Freire viverá.
Estante Quindim
Conheça 3 livros que abordam momentos históricos para apresentar às crianças: