Lygia Fagundes da Silva Telles nasceu em São Paulo no dia 19 de abril de 1918, mas passou a infância em Sertãozinho, no interior paulista. Filha de um promotor público e de uma pianista, voltou com a família para a capital, onde ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na Universidade de São Paulo — uma das seis mulheres numa classe com mais de cem homens! Antes, porém, já cursava a Escola Superior de Educação Física da Universidade de São Paulo, onde participava ativamente de debates literários, nos quais conheceu os poetas Mário de Andrade e Oswald de Andrade.
Ainda na adolescência, Lygia manifestou vocação pela literatura, graças ao incentivo de seus amigos Carlos Drummond de Andrade, Erico Veríssimo e Edgar Cavalheiro. Apesar de ter começado a escrever cedo, a autora rejeitou sua produção inicial, considerando-a “prematura”, sem justificativa para ser publicada. Ela considerava Ciranda de Pedra (1954) o marco inicial de sua obra, pois foi com esse romance que alcançou maturidade literária.
Mas só nas décadas de 1970 e 1980 Lygia Fagundes Telles se consagrou como escritora, com a publicação de alguns dos livros mais importantes de sua carreira:
- Antes do Baile Verde (1970) — o conto que dá título ao livro recebeu o Primeiro Prêmio no Concurso Internacional de Escritoras, na França.
- As Meninas (1973) — um de seus romances mais lidos, recebeu os prêmios Jabuti, Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras e “Ficção” da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
- Seminário dos Ratos (1977) — livro de contos premiado pelo PEN Clube do Brasil.
- A Disciplina do Amor (1980) — livro de contos no qual se misturam memória e ficção, recebeu o prêmio Jabuti e o prêmio APCA.
- As Horas Nuas (1989) — o romance recebeu o prêmio Pedro Nava de Melhor Livro do Ano.
Em 1998, Lygia foi condecorada pelo governo francês com a Ordem das Artes e das Letras, e a consagração definitiva veio com o prêmio Camões — o mais importante no âmbito da Literatura em Língua Portuguesa —, em 2005.
Talvez nem todos saibam que, além de escritora, Lygia também trabalhou como procuradora do Instituto de Previdência do Estado de São Paulo, exercendo o cargo até se aposentar. Presidiu, ainda, a Cinemateca Brasileira, fundada por Paulo Emílio Salles Gomes; foi membro da Academia Paulista de Letras e da Academia Brasileira de Letras e teve seus livros publicados em diversos países: Alemanha, Espanha, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, Portugal, República Tcheca, Suécia etc. com obras adaptadas para TV, teatro e cinema.
Em 2016, com 92 anos, foi a primeira mulher brasileira a ser indicada ao Prêmio Nobel de Literatura.
O estilo de Lygia
Se você já leu Clarice Lispector, vai perceber que sua amiga Lygia tem coisas parecidas com ela. As duas exploraram uma escrita que privilegiou fortes personagens femininas, antes colocadas à margem da figura masculina.
Além de abordar de maneira intensa os temas femininos, a escritora abriu espaço para falar da vida nas grandes cidades, dos problemas sociais, da relação entre as pessoas, do amor e da morte, temas tratados sempre de uma perspectiva moderna, que promovem a reflexão.
Suas personagens são inquietas, espontâneas e representam a sociedade de forma irônica. Mas as narrativas que chamam a atenção de um público leitor em formação são aquelas em que a escritora faz a fusão do fantástico com a realidade do espaço urbano.
Quando você lê contos como “Venha ver o pôr do sol” ou “As formigas”, encontra uma atmosfera tensa, típica dos contos góticos de Edgar Allan Poe, de quem Lygia dizia ter influência, assim como de Machado de Assis, especialmente pela ambiguidade do mestre brasileiro, com seu texto enxuto e de fina ironia.
Veja também: Escritoras brasileiras: 4 mulheres que transformaram a literatura.
Os temas
A obra de Lygia tem uma natureza bastante engajada, e ela gostava de dizer que, sendo uma escritora do “Terceiro Mundo”, era comprometida com a difícil condição do ser humano em um país de tão frágil educação. Por isso, em seus textos, procurou apresentar a realidade cercada pelo imaginário e pela fantasia. Seus romances não são ideais para a formação dos jovens leitores, pois são complexos e exigem maior maturidade; mas há contos que fazem parte de livros didáticos direcionados ao público a partir dos 11 anos, nos quais o choque do desconhecido com o cotidiano se destaca em determinadas narrativas, provocando dúvida, medo e ambiguidade — em geral lidando com o sobrenatural.
5 Contos misteriosos para a imaginação
Abaixo, escolhemos 5 contos lygianos que podem ser explorados pelo jovem leitor, todos eles envolvidos pelo delicioso jogo entre a realidade e o mistério.
1 – A Caçada
Esse conto faz parte do livro Antes do Baile Verde (1970). Nele, acompanhamos o cliente de um antiquário que se vê obcecado por uma velha tapeçaria. Por meio de uma narrativa tensa do início ao fim, o narrador do conto nos leva para dentro da mente dessa personagem perturbada com lembranças vivas que tenta desvendar. Com todos os elementos estruturais das narrativas fantásticas, não é possível chegar a uma conclusão.
A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou voo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.
— Bonita imagem — disse.
A velha tirou um grampo do coque e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo.
— É um São Francisco.
Ele então se voltou lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.
— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso. Pena que esteja nesse estado.
O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la. (p. 59)
2 – Natal na Barca
Presente também no livro Antes do Baile Verde, o conto apresenta um aspecto melancólico porque lida com tristezas humanas. Acompanhamos a travessia de uma barca em que estão a narradora e três pessoas — na noite de Natal. Confesso que durante muito tempo fiz uma interpretação diferente da que tenho hoje do desfecho do conto. Vale a pena conferir.
Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga. (p. 96)
3 – Venha ver o Pôr do Sol
Um dos contos mais analisados por possibilitar discussões no campo da crítica feminista, essa narrativa também está no livro Antes do Baile Verde. É considerado pela crítica como um conto de terror. Se você prestar atenção nos detalhes que constroem a história de Ricardo e Raquel, vai perceber a atmosfera gótica presente nos contos de Edgar Allan Poe. Aqui, o desfecho impressiona!
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinha um jeito jovial de estudante.
— Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos.
— Veja que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele riu entre malicioso e ingênuo.
— Jamais? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância. Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete léguas, lembra?
— Foi para me dizer isso que você me fez subir até aqui? —perguntou ela, guardando o lenço na bolsa. Tirou um cigarro. —Hein?!
— Ah, Raquel… — ele tomou-a pelo braço. — Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado. Juro que eu tinha que ver ainda uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então? Fiz mal?
— Podia ter escolhido um outro lugar, não? — Abrandara a voz. — E o que é isso aí? Um cemitério? (p. 111)
4 – As formigas
Conto que abre o livro Seminário dos Ratos (1977), impressiona pela tensão que vai se amplificando no decorrer da leitura. Logo de início, a descrição da fachada da pensão, onde duas estudantes passam algumas noites no quarto, antes alugado por um estudante de medicina, é digna de um filme de terror.
Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.
— É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
— Pelo menos não vi sinal de barata — disse minha prima. (p. 145)
5 – O Encontro
Publicado no livro Um Coração Ardente (2012), esse conto traz um dos principais temas da literatura fantástica: o duplo. A protagonista sai dos limites de um vale, onde costumava caminhar, e se vê em outra paisagem, nunca vista mas que lhe parece familiar. A partir desse ponto, todos os acontecimentos vão reconstituir cenas reconhecidas pela memória dessa personagem.
Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa, o verde era pálido e opaco. Contra o céu erguiam-se os negros penhascos tão retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta o sol espiava através de uma nuvem.
“Onde, meu Deus?!”, perguntava a mim mesma. “Onde vi esta mesma paisagem numa tarde assim igual?…”
Era a primeira vez que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanças pelas redondezas jamais fora além do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansaço, transpus a colina e cheguei ao campo. Que calma e que desolação. Tudo aquilo — disso estava bem certa — era completamente inédito para mim. Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, com uma imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória? Voltei-me para o bosque que se estendia à minha direita. Esse bosque eu também já conhecia com sua folhagem cor de brasa dentro de uma névoa dourada. “Já vi tudo isso, já vi… Mas onde? E quando?” (p. 593)
Lygia Fagundes Telles é uma referência e um dos maiores nomes da literatura brasileira. Sua obra é um patrimônio da cultura e da língua portuguesa. Sobre a importância da escrita literária, ela declarou:
“A criação literária? O escritor pode ser louco, mas não enlouquece o leitor, ao contrário, pode até desviá-lo da loucura. O escritor pode ser corrompido, mas não corrompe. Pode ser solitário e triste e ainda assim vai alimentar o sonho daquele que está na solidão”.
Lygia faleceu no dia 3 de abril de 2022, aos 103 anos. O clube de assinatura Quindim presta sua homenagem a essa artista que inestimavelmente contriubuiu à literatura brasileira.