Talvez você ainda não tenha tido a oportunidade de assistir ao filme A Baleia, vencedor do Oscar 2023 nas categorias melhor maquiagem e penteado (para Annemarie Bradley-Sherron, Adrien Morot e Judy Chin), e melhor ator para Brendan Fraser, num retorno emocionante depois de vários anos afastado das telonas por questões de saúde mental em função de assédio.

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Mas, mesmo assim, arriscamos dizer que você já ouviu falar alguma coisa sobre a história de Charlie, um professor com obesidade severa, que leciona via internet dentro da sua própria casa, de onde nunca sai, enquanto busca se reconectar com a filha e processa vários outros acontecimentos dificílimos da sua vida diante dos nossos olhos.

É verdade que o filme em si está levantando questões importantes sobre a escolha do ator, o uso do chamado “fat suit” (um traje usado para simular peso e características corporais de uma pessoa obesa) e principalmente a maneira como o personagem Charlie foi retratado.

Mas há, também, o estímulo a uma discussão fundamental e que vem sendo adiada há muito tempo: a gordofobia, a pressão pela busca de padrões de beleza inatingíveis e os perigos dos estereótipos, inclusive – ou especialmente – na infância.

O que é gordofobia

A gordofobia é um preconceito entranhado na sociedade e que afeta gravemente pessoas gordas e magras também. É caracterizada pela aversão ao corpo gordo, pela busca da magreza a qualquer custo, colocando em risco a saúde física e mental do indivíduo, e pela associação do peso corporal de uma pessoa gorda à falta de disciplina e de autocuidado, ao desleixo e à preguiça.

Para o gordofóbico, a obesidade pode ser facilmente resolvida com força de vontade, e se a pessoa não muda é porque ela não quer. Além disso, pessoas gordas são definidas por uma série de outros termos pejorativos que em nada estão relacionados à sua forma física: são tidas como burras, sujas, incompetentes, chatas.

Um dos principais problemas da gordofobia é que ela está em toda parte: não se restringe aos comentários no ambiente de trabalho, na escola, na academia ou durante o almoço de domingo com a família. Consultórios médicos e clínicas de saúde, por exemplo, estão repletos de profissionais gordofóbicos que associam, sem sombra de dúvida, a gordura corporal por si só à falta de saúde e de autocuidado.

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Antes que atribuam essa frase à chamada “romantização da obesidade” (que vale um artigo só sobre o assunto), vamos ver um exemplo: imagine uma pessoa gorda que frequenta a academia três vezes por semana, se alimenta bem, tem vida social saudável e boas noites de sono. Um dia, ela utiliza um produto de limpeza novo em casa e desenvolve uma alergia na pele. Com coceira e ardor no local, procura um consultório médico e explica o que houve.

Sem sequer examinar o paciente, o médico diz: “você precisa emagrecer, boa parte dos seus problemas vão acabar se você perder peso”. Percebe como a gordofobia age? Não foi feito nenhum tipo de exame ou investigação clínica para determinar a causa da alergia e prescrever um tratamento adequado. Ela foi simplesmente atribuída ao peso corporal do paciente e fim.

Muitas vezes, inclusive, comentários gordofóbicos vem disfarçados de preocupação com a saúde. Assim, é comum ouvirmos coisas como “você é linda de rosto, mas precisa perder um pouco de peso” e o fatídico “estou falando para o seu bem, estou preocupado com a sua saúde”.

É importante pontuar que, sim, é possível que uma pessoa gorda sofra de problemas de saúde relacionados a seu peso, como dificuldade de mobilidade ou sobrecarga em suas articulações. No entanto, isso não é uma regra e, principalmente, é impossível avaliar esses pontos analisando a forma física de uma pessoa. Caso ela sofra de fato com alguma questão como essa, a pessoa já está ciente disso, ela vive essas dores. Não precisamos ser uma pessoa a mais fazendo pressão sobre ela. Um comentário pejorativo servirá para causar mais problemas de autoestima, que podem, inclusive, tornar mais difícil para uma pessoa que está com a saúde comprometida buscar ajuda.

Pessoas magras também podem sofrer com a gordofobia. Muitas, frequentemente, comprometem sua saúde e bem-estar com dietas extremas, absolutamente restritivas, e tratamentos estéticos agressivos cujo objetivo é permanecer magro, sem qualquer sinal de gordura corporal, justamente por saber como a sociedade trata pessoas gordas.

Pressão estética e bullying na infância

Provavelmente você já identificou em comerciais de televisão, filmes, séries e redes sociais os padrões de beleza a que todos nós somos expostos diariamente: pessoas magras, brancas, jovens, sem qualquer tipo de deficiência. Desde sempre e muito intensamente são esses os “modelos de ser humano” que somos ensinados a desejar ser, a buscar acima de qualquer coisa e a qualquer custo.

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É como se cada uma dessas características valesse um ponto. A cada ponto perdido, menor o valor daquela pessoa que é diferente. Isso, infelizmente, atinge nossas crianças da mesma maneira. Quem já não ouviu relatos de meninas com três ou quatro anos de idade sofrendo e chorando por não terem o cabelo liso e loiro?

É verdade, também, que os padrões de beleza afetam majoritariamente as mulheres. Como em todos os outros aspectos da existência humana, somos mais cobradas pela sociedade a sermos indefectíveis, o que, obviamente, é impossível.

A busca por esses padrões provoca sofrimento intenso. Sentimentos de inadequação e de desvalorização, entre outros, além de um sério comprometimento da autoestima. Não são raros os casos em que falas ouvidas na infância acompanham a pessoa por toda a vida.

No entanto, o que os especialistas alertam é que frequentemente esse tipo de comentário danoso não chega às crianças pela primeira vez na escola, vindo dos coleguinhas, mas sim dos próprios pais e de outros cuidadores primários.

Imagine um pai que diz para a filha de 8 anos: “você seria muito bonita se emagrecesse”. Além da violência da frase em si, que associa beleza a um número na balança, é preciso considerar que ela é dita pela primeira e mais importante figura masculina da vida dessa menina. As chances de ela levar isso consigo para a vida inteira são muito grandes, acreditando que não há como ser bonita se não for magra, e que nenhum indivíduo do sexo masculino vai gostar dela ou se importar com ela se for gorda.

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Vários outros comentários, como “se não emagrecer você vai ficar doente”, “você é preguiçoso, por isso é gordo”, “você deveria se esforçar como seu primo, veja como ele é atlético” não ajudam a criança em nada e podem até mesmo contribuir para o desenvolvimento de transtornos alimentares e de baixa autoestima.

Pseudobrincadeiras e piadinhas sobre o corpo da criança não devem ser feitas sob nenhuma circunstância. É o famoso “se não tem algo de bom a dizer, não diga nada”. É na infância que construímos uma parte fundamental da imagem que temos de nós mesmos, e esses comentários, frequentemente emitidos pelas pessoas mais próximas e mais importantes para a criança, vão influenciar como ela se vê e como se coloca no mundo, por achar que seu valor está associado à sua forma física.

Veja também: A importância da amizade de infância para o desenvolvimento infantil.

O perigo dos estereótipos na infância

Além dos estereótipos de gênero, que associam meninos à força, aventura e coragem, e meninas à delicadeza, fragilidade e inocência, muitos outros conceitos deturpados rondam a infância de nossas crianças desde a mais tenra idade. Assim como outros preconceitos, como racismo, homofobia e capacitismo, a gordofobia também atribui características e personalidade às crianças gordas que ultrapassam sua individualidade.

Com isso, uma criança gorda que está sempre ouvindo que é preguiçosa, burra, acomodada etc. vai se privar de viver experiências incríveis e enriquecedoras para a sua formação como ser humano por acreditar nessas inverdades. Pode deixar de praticar esportes, dançar, ir à praia e andar de bicicleta por crer, antes mesmo de tentar, que não tem capacidade e que não pertence àqueles ambientes.

Com isso, sua capacidade de estabelecer laços de amizade, relacionamento e convívio saudável com outras pessoas pode ficar comprometida. Não raro pessoas gordas são tidas como introvertidas, fechadas, que não gostam de sair etc. Esse comportamento pode ter se originado na ideia de que sua presença, além de inadequada, era indesejada, simplesmente por ela ser como é.

Sendo a infância uma fase da vida repleta de experimentações, descobertas e vivências, nós como cuidadores precisamos estar atentos às mensagens que passamos aos nossos filhos sobre corpo, autoestima e autoimagem, bem como sobre o poder de tentar e descobrir aquilo que nos faz felizes, independentemente do peso na balança.

Veja também: Você sabe como oferecer uma educação antirracista para o seu filho?

A literatura e a arte no combate à gordofobia

Como sempre, a literatura e a arte em geral podem nos ajudar muito a conversar sobre temas sensíveis e difíceis na infância e durante toda a vida. O Clube Quindim já enviou para seus assinantes um livro que ajuda bastante no debate sobre a gordofobia, chamado Andreia Baleia.

Na obra, o escritor Davide Cali, acompanhado pelas ilustrações de Sonja Bougaeva, fala de uma menina gorda que sofre bullying durante as aulas de natação. Ela provoca uma onda quando entra na piscina e se sente muito mal quando as outras meninas a chamam de baleia por causa disso. Esse sentimento só começa a mudar quando Andreia conversa com seu professor, que a ajuda a ver seu corpo de outra maneira.

Outro livro, “Dumplin”, que após adaptação se tornou um aclamado filme da Netflix, fala de uma menina gorda que acreditava que jamais teria espaço no mundo da moda por conta do seu peso. Além disso, a personagem mostra bem a tristeza que uma pessoa gorda carrega por acreditar que não é digna de amor, afeto e amizade.

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Existem muitas obras que contribuem para a representatividade de pessoas gordas no cinema e na literatura. A atriz Melissa McCarthy já provou ser capaz de muito mais do que filmes de comédia (ainda que seja brilhante e espetacular nesses papéis), bem como a brasileira Mariana Xavier.

Essas e outras pessoas gordas nos ajudam a vê-las como deveríamos fazer sempre com qualquer ser humano: indivíduos com capacidades, talentos, habilidades e potenciais diversos, que são muito mais do que as características de seus corpos.

O que não podemos esquecer é que as crianças se veem, primeiro, pelos nossos olhos. Assim, é urgente desempenharmos nosso papel na construção de uma infância física e mentalmente saudável, em que nossos pequenos compreendem que são muito mais do que aquilo que um simples espelho é capaz de mostrar.