De tamanhos, formatos e materiais diferentes, o universo de variedade dos livros é infinito. Prova disso é o livro-objeto, em que as características materiais do objeto deixam de ser transparentes para, então, ocuparem um espaço de destaque na leitura.
Um exemplo de livro-objeto é o Era uma vez outra vez, de Edith Chacon e Priscilla Ballarin, já enviado pelo Clube Quindim e publicado pela Edições Barbatana. Para entender um pouco mais sobre esse tipo de livro, batemos um papo com o editor Paulo Verano e a designer Angela Mendes, que, juntos, pensam os livros da Edições Barbatana. Confira a conversa a seguir:
Clube Quindim: O que é um livro-objeto?
Editores Paulo Verano e Angela Mendes: Achamos que o livro, em si, já é um objeto mais que perfeito, por isso nos agrada pensar tanto sobre a sua materialidade. Assim, acreditamos que é possível cada vez mais fazer associações melhores entre forma e conteúdo e, com muita pesquisa editorial e gráfica e vontade de criar sem amarras, chegar a outras soluções que empurrem o livro para fora do padrão que lhe foi determinado.
Pensar a forma do livro, o papel, os acabamentos, estruturas, tudo que faça mais sentido para a própria narrativa do texto e da imagem e que ao mesmo tempo caiba dentro dos limites técnicos, gráficos e financeiros que temos. A gente acha que isso é pensar o livro como objeto. A estrutura escolhida pode reforçar a narrativa, isto é, pode dialogar com ela.
O livro-objeto é, portanto, para nós o livro que se torna importante por sua materialidade. Que faz sentido como objeto, pegando na mão; em que a leitura se amplia a partir daí. Pode ser um livro em formato sanfona, como os dois que temos, pode ser um livro com encadernação manual (também temos), pode ser um livro que contenha um sistema de outros elementos gráficos vinculados a ele (como uma sobrecapa-pôster ou uma gravura encartada, como, por exemplo, noutra coleção nossa). Há muitos livros-objetos feitos por artistas, que brincam com essa narrativa. Acho que o aprendizado vem um pouco daí. Misturar literatura e objeto-livro, ficar num híbrido entre edição convencional e não convencional.
C.Q.: Têm surgido cada vez mais projetos de artistas visuais de livros-objetos para adultos. Porém, ele é bem comum entre aquelas obras que muitos chamam de livros infantis. Como esse tipo de livro dialoga com diferentes idades?
E.: A gente criou a Edições Barbatana pensando em publicar apenas livros que a gente gostasse, fazendo-os do jeito que a gente gostasse. Até brincamos que é esse o nosso “slogan”. Está dentro dos nossos critérios conceber o livro sempre como uma soma de ideias, de modo a pensá-lo diferente e sempre refletindo nossos anseios por liberdade de criação. Isso inclui entender que o livro para crianças também pode ser para adultos e que o livro para adultos também pode se servir da ludicidade. Talvez por isso não publiquemos somente livros para crianças e busquemos, sempre que é pertinente, relativizar algumas concepções, como essa da faixa etária.
Temos uma edição de O corvo que tem ilustrações de Édouard Manet, papéis especiais e encadernação artesanal e vem dentro de um envelope de papel vegetal que nós mesmos fazemos à mão. É um livro ilustrado, embora para jovens e adultos por sua temática. Achamos que hoje, em meio a tanta virtualidade e uma certa indistinção do livro para crianças, que meio que pode sair publicado por qualquer editora, é preciso voltar, dentro do possível, ao artesanal, a uma relação muito direta entre o autor/ilustrador e a gente que edita e publica, de modo a garantir a criação antes da comercialização etc., e não pautada por esta. Porque o artesanal permite esse pensamento um a um, sem uso de soluções prontas. Achamos que as pessoas podem estar em busca disso, dessa proximidade que o livro pensado como objeto proporciona. A gente está.
C.Q.: Como o livro-objeto pode transformar uma narrativa?
E.: O livro-objeto constrói narrativas novas e também reinventa o planejado, permitindo nuances novas. Veja o caso do Memórias de uma girafa, por exemplo. Ele foi criado pela Clarice [Ferreira Verano, filha de Paulo] quando tinha sete anos. Ela fez um vídeo em que explicava como a girafa ficava com o pescoço comprido ao mesmo tempo em que Brasil e África se separavam, fazendo referência livre à Pangeia. Quando pensamos no vídeo como livro ilustrado, imediatamente pensamos nele como um livro-sanfona. Porque daí o movimento de páginas iria fazendo com que o pescoço da girafa crescesse à medida que a história fosse sendo contada. O fato de o livro ser sanfonado soma-se à narrativa, junto com o texto, e a ilustração do Kevelyn Oliveira dá força a essas narrativas verbal e visual. Foi o primeiro livro da Barbatana e meio que nos deu um norte sobre onde queríamos navegar.
No caso do Era uma vez outra vez, de Edith Chacon e Priscilla Ballarin [enviado pelo Clube Quindim em janeiro de 2019], o fato de serem sanfonas soltas dentro de uma caixinha permite que a história seja contada e recontada cada vez de um jeito diferente; a ordem não importa. E, portanto, essa leitura possibilitada pelo livro-objeto permite combinações infinitas. A ideia do livro já veio assim delas; o que fez diferença foi que pensávamos exatamente do mesmo jeito e por isso acreditamos e pudemos somar tanto ao livro, que é um sucesso.
C.Q.: De que forma a leitura de um livro-objeto pode contribuir para o desenvolvimento de uma criança?
E.: Achamos que o livro-objeto permite que a criança (e não só, o adulto também) se reexamine. Percebendo, assim, que os padrões não são tão necessários assim e podem ser subvertidos. Essa formatação começa de pequenininho.
Quando vamos dar oficinas ou falar sobre o Memórias de uma girafa, por exemplo, gostamos de perguntar às crianças se os livros são sempre iguais, sempre com folhas sequenciais coladas umas às outras. Todas têm certeza que sim. Mas quando soltamos o livro, e ele fica comprido, a resposta seguinte delas muda: o livro pode ser redondo, triangular, pode ser do jeito que eles quiserem. E o livro é isso, né? Nos permite imaginar sermos o que quisermos. Portanto, ele também pode ser como quisermos criá-lo.
C.Q.: A Edições Barbatana tem destinado um bom espaço de seu catálogo para obras que subvertem o uso tradicional do livro. Pode nos indicar autores e obras referência nesse estilo?
E.: A Barbatana, na verdade, surgiu com essa intenção. Por isso, mesmo quando não são completamente livros-objeto, buscamos algo que os torne atrativos também como objetos, além das preocupações editoriais. Nossa Alice tem duas cores de capa, uma azul e outra rosa. O Milhões de gatos [na programação do Clube Quindim em dezembro de 2018] saiu com um papel especial. Afinal, queríamos que o papel, de algum modo, compusesse com a narrativa tão extraordinária de Wanda Gág e fizesse o papel de “cor” nas ilustrações, que são em preto. O nosso livro Punk, de Antonio Bivar, que não é para crianças, tem três sobrecapas diferentes, impressas em risografia [um sistema de impressão diferente], e quatro gravuras diferentes que vão sendo encartadas aleatoriamente.
A gente gosta de brincar também, e está dentro da função da Barbatana permitir que nos divirtamos. Os nossos próximos dois livros para crianças, por exemplo, serão dois livros sanfonados com propostas e soluções diferentes das que encontramos para os outros dois primeiros livros sanfonados que lançamos. O nosso próximo juvenil foi escrito e será publicado em portunhol, extrapolando algumas regras, por exemplo de que línguas não podem ser inventadas ou reinventadas. Olhamos para muita coisa, o tempo todo. Afinal, tudo nos serve como referência quando criamos os nossos livros. A música é referência, as artes plásticas, o cinema, o teatro, a história do livro nos é referência para pensar nos nossos livros. Tem muita gente incrível fazendo livros incríveis ao longo dos tempos.
Por exemplo, para ficarmos em dois nomes que publicamos e que os assinantes do Quindim já receberam: Wanda Gág (1893-1946) e Beatrix Potter (1866-1943), autora de A história de Pedro Coelho [na programação do Clube Quindim em novembro de 2018]. Duas mulheres incríveis, escritoras e ilustradoras, que pensavam o livro nos mínimos detalhes, como um objeto de design perfeito. Essa tradição só foi se reinventando ao longo dos anos e chegando a lugares inacreditáveis, como o próprio lugar diferente a que chegaram as criadoras do nosso livro Era uma vez outra vez. Há muita coisa acontecendo e muita gente reinventando o livro. Falar um nome sempre será esquecer de outro.
*Foto da capa: “Páginas” do livro Era uma vez outra vez, da Edições Barbatana