Todos os anos, em 8 de setembro, celebra-se o Dia Mundial da Alfabetização. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), em parceria com a Unesco (Organização da ONU para a Educação, a Ciência e a Cultura), em 1966, para promover o debate sobre o assunto.
Quem convive com pequenos entre 6 e 8 anos não precisa esperar pela data para se lembrar do tema – a alfabetização das crianças já está presente no dia a dia. Essa é a faixa de idade em que o aprender a ler e escrever costuma ocorrer dentro das escolas. Pais e mães que passaram ou estão passando por esse processo já devem ter se questionado: será que meu filho está indo bem na alfabetização? Estaria ele atrasado? Existe uma idade certa para isso?
Para Michele Aparecida Cerqueira Rodrigues, neuropsicopedagoga, psicanalista infantil e diretora de ensino em saúde na Logos University International, a resposta é não. Ela explica: “Não há uma idade que possa ser considerada universal para o início e a conclusão do processo de alfabetização, já que o desenvolvimento cognitivo e social das crianças varia bastante entre culturas, indivíduos e sistemas educacionais. No entanto, muitas políticas educacionais ao redor do mundo estabelecem idades comuns para a alfabetização, geralmente entre 6 e 8 anos, com base em teorias do desenvolvimento infantil”.
Entre essas teorias estão as do suíço Jean Piaget e do bielo-russo Lev Vygotsky. No artigo “Qual a idade certa para alfabetizar?”, Michele Rodrigues pontua: “Jean Piaget, por exemplo, sugere que a alfabetização é mais eficaz quando a criança atinge a fase operatória concreta, por volta dos 6 ou 7 anos, quando habilidades como a compreensão da lógica e a manipulação de símbolos estão mais desenvolvidas”. Tanto para Piaget quanto para Vygotsky, é por volta dessa idade que as crianças possuem habilidades cognitivas e emocionais adequadas para aprender a ler e escrever. Esse é o modelo seguido em nosso país.
“Atualmente, a alfabetização das crianças no Brasil ocorre entre os 6 e os 8 anos devido a uma combinação de fatores científicos, pedagógicos e estruturais que têm como base a compreensão do desenvolvimento cognitivo e neurológico da criança. De acordo com a ciência cognitiva da leitura [campo de estudo que apresenta um conjunto de evidências sobre como as pessoas aprendem a ler e a escrever e indica os caminhos mais eficazes para o ensino da leitura e da escrita], a alfabetização envolve o domínio do código alfabético, que consiste na associação entre fonemas (sons) e grafemas (letras). Esse processo exige que o cérebro infantil atinja um nível de maturação necessário para formar conexões entre áreas visuais, auditivas e motoras“, afirma a neuropsicopedagoga.
A especialista traz um exemplo do que ocorre aos 6 anos: nessa fase, a maioria das crianças já possui o desenvolvimento cerebral, a capacidade de concentração e a memória de curto prazo adequadas para compreender e aplicar o princípio alfabético – assim, o sistema educacional brasileiro opta por iniciar o processo de alfabetização no 1º ano do Ensino Fundamental (EF).
No entanto, é recomendado que haja uma fase preparatória no período anterior aos 6 anos. “Antes dessa idade, é possível e desejável que atividades que estimulam a leitura e a escrita (como leitura compartilhada, desenvolvimento de vocabulário e reconhecimento de letras) sejam realizadas, preparando a criança para a alfabetização formal. Assim, esses fatores se somam ao objetivo de garantir que todas as crianças, independentemente de seu nível socioeconômico, possam ser alfabetizadas dentro do período considerado ideal para maximizar o aprendizado e o desenvolvimento cognitivo, promovendo, assim, uma educação mais equitativa e eficaz”, defende Michele.
O que é uma criança alfabetizada?
- Lê palavras, frases e pequenos textos;
- Localiza informações na superfície textual (aquilo que os nossos sentidos são capazes de captar: as palavras, expressões e frases que enxergamos);
- Produz inferências básicas a partir da articulação entre texto verbal e não verbal, como em tirinhas e histórias em quadrinhos;
- Escreve ortograficamente palavras com regularidades diretas entre fonemas e letras;
- Escreve textos que circulam na vida cotidiana, ainda que com desvios ortográficos ou de segmentação.
*Definição do estudante alfabetizado, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
quais as principais dificuldades na alfabetização das crianças?
Dados divulgados pelo Ministério da Educação (MEC) em maio de 2024, no “1º Relatório de Resultados do Indicador Criança Alfabetizada”, mostraram que, em 2023, 56% das crianças brasileiras das redes públicas alcançaram o patamar de alfabetização para o 2º ano do EF, definido pelo Inep.
O número indica que o Brasil recuperou o desempenho de alfabetização (em crianças ao fim do 2º ano do EF) que tinha antes da pandemia de covid-19: em 2019, a taxa era de 55%; no entanto, caiu para 36% em 2021, em meio ao cenário de isolamento social e escolas fechadas para ensino presencial. No entanto, mesmo com a melhora no desempenho apresentada pelo MEC, uma parcela significativa dos estudantes não alcançou a alfabetização no período recomendado em 2023.
A gama de fatores que levam a dificuldades no processo de alfabetização é grande. A neuropsicopedagoga Michele conta que “um aspecto importante é a desconexão entre o novo conhecimento e as experiências prévias dos alunos, o que compromete a ancoragem das novas informações e resulta em aprendizados fragmentados”.
Em entrevista ao Clube Quindim, a especialista trouxe como referência a psicopedagoga argentina Sara Paín, que considera aspectos orgânicos, específicos, ambientais e psicógenos diante dessa situação. Juntos, “eles constituem um quadro compreensivo das dificuldades enfrentadas por crianças durante o processo de alfabetização”, aponta Michele.
Fatores orgânicos: referem-se a condições biológicas, como deficiências auditivas ou visuais, transtornos neurológicos e problemas de saúde, que impactam o desenvolvimento cognitivo e dificultam a assimilação de habilidades fundamentais, como leitura e escrita.
Fatores específicos: incluem dislexia, discalculia e disortografia. Afetam diretamente a capacidade de aprendizagem, resultando em dificuldades na decodificação de palavras, na compreensão de conceitos numéricos e na ortografia.
Fatores ambientais: abrangem o contexto familiar, social e escolar, onde a falta de suporte adequado e recursos limitados podem comprometer a motivação e autoestima dos alunos.
Fatores psicógenos: envolvem questões emocionais, como ansiedade e medo do fracasso, que inibem a participação ativa nas atividades escolares.
A alfabetização chamada de tardia, aquela que ocorre após o período considerado ideal para o desenvolvimento da leitura e escrita, pode acarretar diversas consequências. “Crianças alfabetizadas tardiamente costumam enfrentar dificuldades significativas em seu desempenho escolar. A defasagem na aquisição de habilidades de leitura e escrita pode levar a um entendimento limitado dos conteúdos curriculares, prejudicando a capacidade de acompanhar os colegas e resultando em baixo desempenho em avaliações. Essa situação pode resultar em um ciclo vicioso de frustração e desmotivação, que, por sua vez, pode impactar negativamente o desenvolvimento de outras competências acadêmicas, como a matemática, que depende de habilidades de leitura“, elenca Michele.
Tudo isso ainda pode conduzir a problemas de interação social: a criança que tem dificuldade para ler e escrever, em alguns casos, acaba vivenciando experiências de exclusão ou bullying, o que leva à baixa autoestima e a uma percepção negativa da própria capacidade intelectual. “Ela pode se sentir isolada ou menos competente em ambientes sociais e educacionais, prejudicando o desenvolvimento de habilidades sociais importantes”, continua a especialista.
“A experiência de ser alfabetizado tardiamente pode gerar sentimentos de ansiedade, insegurança e inadequação. As crianças podem desenvolver medo do fracasso e aversão ao aprendizado, o que compromete seu engajamento em atividades escolares. A falta de sucesso nas tarefas relacionadas à leitura e à escrita pode contribuir para transtornos emocionais, como depressão e baixa autoestima”, diz.
O que fazer para evitar a alfabetização tardia?
“É imperativo implementar uma formação continuada de professores que priorize a prática pedagógica e a contextualização dos conteúdos, para que estes possam utilizar a criatividade e dinâmica dos materiais didáticos fornecidos, integrar diretores e coordenadores pedagógicos no processo formativo e estimular a troca de experiências entre os profissionais”, defende Michele.
“Ademais, é necessário assegurar a continuidade da política educacional, independentemente de alterações no governo, e que esta considere as especificidades culturais e sociais de cada comunidade escolar. A formação deve enfatizar a diversidade nas abordagens pedagógicas e a avaliação contínua da aprendizagem, a fim de atender às necessidades individuais dos alunos e, consequentemente, melhorar os índices de alfabetização de forma sustentável”, conta.
Uma das políticas do MEC é o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, lançado em junho de 2023, com a finalidade de garantir o direito à alfabetização das crianças até o fim do 2º ano do EF, assim como atender à recuperação das aprendizagens dos estudantes do 3º, 4º e 5º ano afetados pela pandemia de covid-19. De acordo com o ministério, até setembro de 2024, todos os estados e 99,8% dos municípios brasileiros tinham aderido ao programa, que conta com investimento de R$ 3 bilhões até 2026, e pode beneficiar 15,8 milhões de crianças entre 4 e 10 anos, em mais de 270 mil escolas públicas.
Um dos princípios do CNCA é estabelecer a promoção da equidade educacional, considerando aspectos regionais, socioeconômicos, étnico-raciais e de gênero. “É importante alertarmos que, no Brasil, temos muitas infâncias”, afirmou Kátia Schweickardt, secretária de Educação Básica do MEC, em publicação do ministério para marcar o Dia Mundial da Alfabetização em 2024. “Temos consciência da riqueza dessas múltiplas infâncias e seguimos atentos à nossa responsabilidade em relação a processos que promovam a equidade entre estudantes pretos, pardos, indígenas e brancos, de todas as regiões e configurações familiares. Toda criança tem direito às condições plenas de alfabetização”, seguiu ela.
Meta nacional de alfabetização para a rede pública brasileira
(Alfabetização ao fim do 2º ano do EF)
2024 – 60%
2025 – 64%
2026 – 67%
2027- 71%
2028 – 74%
2029 – 77%
2030 – >80%
Fonte: *Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Veja também: 11 atividades de alfabetização e letramento para os pequenos
Como está a Alfabetização no Brasil?
- A taxa de alfabetização no Brasil era de 93%. Ou seja, o analfabetismo atingia 7% da população.
- Os dados apontam melhora em relação ao Censo de 2010: 90,4% (alfabetização) e 9,6% (analfabetismo).
- Em 2022, as taxas de analfabetismo de pretos (10,1%) e pardos (8,8%) eram mais do dobro da taxa dos brancos (4,3%). Para cor ou raça indígena, 16,1%.
- A taxa de alfabetização por região:
Nordeste: 85,8%
Norte: 91,8%
Centro-Oeste: 94,9%
Sudeste: 96,1%
Sul: 96,6%
Fonte: *Dados de 2022 do Censo Demográfico do IBGE (que considera pessoas de 15 anos ou mais).
O papel dos livros infantis
Eles estão entre as grandes estrelas durante o processo de alfabetização das crianças, junto a outras opções de leitura, como as histórias em quadrinhos. “A leitura de livros infantojuvenis promove a imaginação e a criatividade, incentivando as crianças a relacionar suas próprias experiências com as histórias apresentadas, o que aumenta o interesse pela leitura, ajudando na construção de um entendimento sobre o mundo e a diversidade de perspectivas”, explica Michele.
Quando os pequenos ainda estão no processo, ou mesmo antes disso, os pais e outros adultos de convivência têm papel fundamental por meio dos livros. “Os responsáveis, quando leem em voz alta para uma criança, as expõem à entonação, ritmo e fluência da linguagem oral, o que facilita a compreensão e a internalização das normas da escrita. Esse tipo de interação literária pode incentivar o desejo de leitura autônoma, fazendo com que as crianças busquem explorar livros por conta própria”, complementa a especialista.
Para quem tem filhos em fase de alfabetização, Michele traz algumas dicas:
- Os responsáveis são fundamentais no processo de alfabetização, pois a criança precisa desenvolver o prazer pela leitura. Assim, o exemplo é a melhor maneira de iniciar esse processo. A criança se espelha nos adultos ao redor. Por isso, quando veem os adultos próximos lendo, tendem a seguir os mesmos passos.
- Reserve um tempo diário para ler com seu filho. Além de criar um hábito, torna a leitura uma atividade prazerosa. Varie os tipos de materiais, incluindo livros, revistas e histórias em quadrinhos.
- Selecione livros que correspondam ao nível de leitura e aos interesses da criança. Histórias com ilustrações vibrantes e enredos cativantes podem aumentar o engajamento e a motivação para ler.
- Leia em voz alta. Isso permite que a criança ouça a entonação e a fluência da língua, desenvolvendo a compreensão auditiva e a internalização das estruturas da linguagem. Se possível, vá acompanhando as frases com o dedo para que a criança conecte a fala com a escrita.
- Após a leitura, incentive discussões sobre a história. Pergunte o que a criança achou, quais foram os personagens favoritos e o que ela teria feito de diferente. Isso estimula o pensamento crítico e a expressão oral.
SERÁ QUE TEM PROBLEMA ALFABETIZAR Cedo demais?
Você pode estar se perguntando: mas será que existe algum benefício em aprender a ler e escrever antes dos 6 anos? “Se olharmos pela ótica da neurociência, creio que não, pois a criança precisa estar desenvolvida em diversos âmbitos antes da alfabetização, principalmente no que tange a psicomotricidade (desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social). Além disso, temos a questão da formação biológica, principalmente nos ossos da mão”, aponta a neuropsicopedagoga.
Segundo Michele em seu artigo “Qual a idade certa para alfabetizar?”, estudos indicam que começar a alfabetização “antes dos 5 anos, sem a presença de habilidades cognitivas e emocionais adequadas, pode gerar frustrações e dificuldades futuras no processo de aprendizagem”.
Em entrevista ao Clube Quindim, a especialista ponderou: “Crianças expostas à leitura e à escrita em idades mais jovens frequentemente demonstram maior vocabulário e melhor compreensão de textos posteriormente. Mas isso não quer dizer que ela precise estar alfabetizada. Temos que, acima de tudo, respeitar o tempo e o desenvolvimento da criança”.
E compartilhou a própria experiência: “Eu aprendi a ler com 4 anos por ser neurodivergente, superdotada. Mas comecei a escrever com 5 anos. Segundo pesquisadores, crianças com AH/SD (Altas Habilidades/Superdotação) geralmente começam a ler cedo, demonstrando habilidades avançadas em decodificação e compreensão. Como isso não é uma regra, é importante termos a Educação Infantil como um propulsor das habilidades necessárias. A ânsia por adiantar a alfabetização das crianças pode atrapalhar o processo ao invés de ajudar“.
A seguir, outros pontos trazidos pela neuropsicopedagoga que precisam ser considerados:
- A imposição da alfabetização em idades muito precoces pode gerar estresse e pressão desnecessária sobre a criança, levando a aversão à leitura e à escrita. Especialmente se o ensino não estiver alinhado ao ritmo de desenvolvimento individual da criança.
- A ênfase excessiva na alfabetização pode desviar a atenção de outras áreas essenciais do desenvolvimento, como habilidades motoras finas e o desenvolvimento socioemocional, que são basais nesta fase.
- Crianças em contextos socioeconômicos desfavorecidos podem não ter as mesmas oportunidades de estímulo à alfabetização, o que pode acentuar disparidades educacionais.
Veja também: 10 livros ideais para a fase de alfabetização das crianças
Estante Quindim
Conheça 3 livros que podem ajudar no processo de alfabetização das crianças: