A cada dois anos, os brasileiros têm um compromisso em outubro: comparecer às urnas e votar nas eleições gerais ou municipais. Embora o direito ao voto venha aos 16 anos, tornando-se obrigatório aos 18, este não é um tema que deve ser mantido longe das crianças. Queiram ou não os pais ou responsáveis, no contexto atual, com informações acessíveis mesmo sem serem procuradas, os jovens terão contato com conteúdos (verdadeiros ou falsos) sobre o processo eleitoral.
Para Januária Cristina Alves, mestre em comunicação social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora e escritora (autora, por exemplo, de #XôFakeNews – Uma história de verdades e mentiras), o passo inicial é olhar para a situação. “Acredito que a primeira coisa é não jogar para debaixo do tapete, fazer com que os meninos e meninas entendam que a política faz parte da nossa vida”, pontua.
Afinal, política não se resume a eleições. “Existem escolhas políticas que fazemos todos os dias, quando reciclamos lixo, pesquisamos preço, nos engajamos na causa da Amazônia. Tudo isso faz parte da política”, explica Januária.
Segundo a especialista, nesta reflexão, também é preciso pensar sobre a aversão que se criou em relação ao tema “no sentido de que política é só uma coisa ruim, corrupta, fazendo as pessoas perderem um pouco da associação com o dia a dia. (…) Educação política é olhar a melhor maneira de conviver em sociedade. E conviver em sociedade implica em aceitar o diferente, em aceitar, principalmente, aquele que tem opiniões completamente opostas à minha e praticar o diálogo, a escuta ativa”.
Januária crê na importância de conversar sobre o tema nas escolas e fazer um pacto com as famílias dos estudantes nesse sentido, pois “não há maneira de falar sobre política sem falar sobre ética, sobre moral. São temas delicados, mas enfiar para debaixo do tapete só vai piorando as coisas”.
como falar sobre política com as crianças?
Já que o caminho é trabalhar por uma educação política desde a infância, pais, responsáveis e educadores podem e devem recorrer a materiais apropriados para a faixa etária e que ajudam a apresentar o tema para as crianças. Um deles é o “Manual das Eleições do Joca”, digital e gratuito, produzido pela equipe do jornal Joca, periódico dedicado a levar notícias para os jovens brasileiros.
Produzido em anos eleitorais desde 2018, o manual usa linguagem simples e direta para explicar o que são as eleições, o que é democracia e como tudo isso funciona no Brasil e no mundo. Em 2024, o material chega em uma edição com páginas dedicadas a explorar como serão as primeiras eleições brasileiras com a existência da inteligência artificial – outro tema cercado de polêmicas e que precisa ser conversado com as crianças e adolescentes.
A aposta na educação política dos jovens também é uma das recomendações do estudo Juventudes e Democracia na América Latina, realizado pela fundação Luminate e as pesquisadoras Esther Solano (professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP) e Camila Rocha (cientista política e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP). Publicada em janeiro de 2022, a pesquisa teve como objetivo investigar mais a fundo a opinião dos jovens latino-americanos (entre 16 e 24 anos, na Argentina, Brasil, Colômbia e México) sobre temas que envolvem política, eleições e democracia.
Entre outros pontos, o estudo também recomenda: investir em canais de informação específicos para a juventude que apostem na escuta desta faixa etária; trabalhar a educação informacional e os critérios de identificação e desconstrução de fake news.
A educação midiática se faz fundamental nesse sentido. Januária Alves ressalta que faz parte desse processo “explicar [aos jovens] que nem tudo que está na mídia [atualmente, incluídas as redes sociais] é verdade, inclusive sobre os candidatos, e que há que se pesquisar muito mais”. Ela acredita que o jornalismo local é um dos caminhos para reativar a confiança das pessoas na imprensa e na busca por informações confiáveis durante o período eleitoral.
“A educação política também começa olhando o seu entorno, a sua praça, a biblioteca do bairro, coisas que podemos fazer pelo coletivo. Com isso, as pessoas vão se mobilizando para tentar resolver esses problemas e, então, compreendendo um pouco das questões macro. A escola também tem esse papel de criar, na comunidade escolar, a consciência de que a política pode melhorar a vida em sociedade. A consciência política pode fazer com que tenhamos uma vida melhor e que todos nós possamos fazer melhores escolhas”, conclui.
Um caso prático na escola
Algumas vezes, é até mesmo dentro da sala de aula que surge a necessidade de conversar sobre política e eleições. Foi o que aconteceu na Escola Estadual José Ferreira Maia, na cidade de Timóteo, em Minas Gerais. Em 2019, a professora Karina Letícia Júlio Pinto se viu diante de alguns problemas com sua turma de 5º ano.
“Mesmo as crianças ainda não votando, os conflitos familiares sobre os políticos que se apresentavam na época se refletiam dentro da sala de aula. A visão política dos pais, muitas vezes, transparecia para a visão política dos filhos. Os alunos também viam isso pelos meios de comunicação e muitos colocavam apelidos uns nos outros usando nomes dos políticos. Isso criou muitos conflitos. Para resolver essas questões, comecei a colocar os estudantes para refletir sobre o que é a política e o que é ser político”, relembra Karina, que começou a trabalhar com os alunos temas como os três poderes e a diferença entre a política do dia a dia e a política partidária.
Em busca de apoio para essas conversas em sala de aula, a professora recorreu a materiais do projeto Plenarinho – um programa de educação para a democracia da Câmara dos Deputados voltado a crianças e adolescentes de 7 a 14 anos, pais e professores-, como histórias em quadrinhos e jogos que tratam de assuntos que, muitas vezes, até adultos não entendem muito bem, como o orçamento público.
“Houve, por exemplo, o trabalho com um jogo de orçamento, em que as crianças tinham que tomar decisões sobre como investir determinada quantidade de dinheiro na escola e como fazer essas escolhas (…). Foi interessante porque os alunos aprenderam também sobre negociação e argumentação, que não é preciso só discordar do outro e brigar por isso, que também é possível articular e convencer o outro das minhas ideias sem ter que ser intolerante com ele“, conta ela.
Diante dessas ações, a escola firmou uma parceria com a Câmara Municipal de Timóteo e levou os alunos até lá para simular a aprovação de uma lei que eles mesmos criaram. “Eles ocuparam o lugar dos vereadores no plenário e fizemos essa simulação. Ainda visitamos os gabinetes e eles puderam ver, de perto, uma parte do Poder Legislativo. Depois, a culminação do trabalho foi irmos para Brasília”, explica Karina.
Foi por meio do Plenarinho que a professora encontrou essa oportunidade. Naquele momento, o projeto tinha um concurso de redação sobre como trabalhar a tolerância com os alunos. A redação feita por Karina ficou entre as dez selecionadas. E um novo trabalho começou: conseguir dinheiro para, como reconhecimento, levar a turma até a capital federal.
“Minha escola é pública, em uma comunidade carente. Nós tínhamos que trabalhar com todos para todos para arcar com os gastos de uma viagem como essa. Uma ex-cantineira nos ajudou e fizemos um feijão tropeiro para vender, conseguindo arrecadar um bom valor. Contamos também com o apoio da prefeitura, que custeou o deslocamento de ida e volta, além de doações de outros políticos e do sindicato dos professores. Deu tudo certo e levamos a turma”, diz Karina.
No Congresso Nacional, os alunos de Timóteo puderam participar da ação Câmara Mirim, uma iniciativa do Plenarinho em que jovens apresentam e votam projetos de lei de sua autoria, simulando uma sessão legislativa na Câmara dos Deputados. A oportunidade da vez foi avaliar uma proposta de lei sobre a obrigatoriedade de vacinas.
Ali, os estudantes tiveram que opinar se concordavam ou não com a proposta, assim como fazem os deputados. “Foi uma experiência grandiosa. Às vezes, julgamos muito as crianças, dizemos que elas não sabem sobre política. Eu fui criticada quando pensei nesse projeto. Mas sempre estive certa de que é necessário levar o assunto para a turma. Quando eles tiverem idade para votar, vão fazer melhores escolhas. Ao menos, foram orientados para isso”, conclui Karina.
O reconhecimento do trabalho da professora de Timóteo ainda se estendeu: ela foi uma das vencedoras do Prêmio Professor Transformador 2021, na categoria Ensino Fundamental 1. Karina segue em sua caminhada: “Neste ano, que é de eleições municipais, comecei a trabalhar com os alunos a partir do aniversário da cidade. O objetivo é entender como funciona o nosso município e a nossa sociedade“.
As crianças na política
Ações como as de Karina inspiram e colaboram para a formação da consciência cidadã das crianças que, em alguns anos, estarão escolhendo os governantes do país, em um dos atos mais democráticos e desafiadores da nossa sociedade.
Assim como a professora mineira, outros educadores e escolas podem contar com recursos oferecidos gratuitamente pelo projeto Plenarinho. Lançada em 2004, a ação hoje conta com um site em constante atualização. “Independentemente de haver ou não eleições no ano, o portal está sempre em produção com temas variados, como mulheres brasileiras inspiradoras, datas importantes, escravização de pessoas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), bullying nas escolas”, pontua Corina Castro, diretora da Coordenação de Educação para Democracia (Coede) da Câmara dos Deputados.
“Hoje, nosso objetivo é falar cada vez mais com as crianças por meio dos educadores. Sejam os educadores formais, sejam os pais, que também procuram muito o nosso portal como suporte para ajudar, por exemplo, na lição de casa”, completa.
Não faltam exemplos do impacto gerado, como no caso do programa Câmara Mirim. “[Após uma das últimas edições] um dos garotos que defendeu os projetos nos enviou um e-mail para contar sobre o quanto foi importante para ele. Ele disse querer vir de novo para dizer aos novos deputados e deputadas jovens, para as crianças que vierem participar, o quanto a experiência tinha sido significativa e contar sobre como está atuando, agora, em sua comunidade”, relata Mônica Montenegro, da equipe de conteúdo do Plenarinho. Em 2024, ao completar 20 anos, a iniciativa planeja o lançamento de novos conteúdos, como um jogo focado no ECA.
Outro caminho para impulsionar o desenvolvimento cidadão das crianças e adolescentes é incentivar a existência de grêmios estudantis, uma experiência que promove, entre outras questões, o exercício da democracia. Não é difícil entender porque: entre as principais funções de um grêmio estão representar os interesses dos alunos na escola; levar as demandas estudantis para professores, coordenação e direção; e participar de reuniões de representantes de classe e de conselho escolar, sendo parte do processo de decisão.
Para mapear o tema nas redes municipais e estaduais, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação lançou, em 2021, o Projeto Euetu – Grêmios e Coletivos Estudantis. “A ideia do Euetu surgiu da necessidade de um aprofundamento sobre a participação e a organização de estudantes na gestão escolar para a gestão democrática e educação inclusiva, considerando que já temos mais de 30 anos de aprovação da Lei 7.398/1985, que dispõe sobre a organização de entidades representativas dos estudantes da Educação Básica”, explica Tânia Dornellas, especialista em Ensino Interdisciplinar sobre Infância e Direitos Humanos, assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Tânia ressalta que ainda existe muito a fazer: “Um dos achados que tivemos na primeira etapa do projeto foi de que apenas 12,3% das escolas públicas do Brasil têm grêmio estudantil e que há significativa disparidade regional, com o Sudeste apresentando 22,9% e o Norte apenas 3,2%”.
A iniciativa desenvolveu o Guia Grêmios e Participação Estudantil na Escola para promover o aumento destes números pelo país. O material detalha como estudantes, educadores e toda a comunidade escolar podem criar grêmios. Segundo Tânia, a existência deles é fundamental não só porque incentiva vivências “que promovem cooperação, respeito, liderança, responsabilidade, coletividade, autonomia e senso crítico dos estudantes, mas também porque fortalece a gestão democrática e a própria democracia”.
Os livros também são aliados neste assunto. No Clube Quindim, selecionamos uma lista de obras para apresentar a política para as crianças. Confira, ainda, dicas sobre como conviver com as diferenças e títulos que ajudam a falar sobre a polaridade de opiniões.
Estante Quindim
Conheça 3 livros infantis que abordam questões políticas para ler com as crianças: