Daqui somos transportados a um mundo dentro de outro mundo — a uma infância que viveu duplamente a realidade e os lances imaginativos em disputas de território, entre as ruas de um bairro da cidade de Budapeste em 1889. Neste tempo, quando os meninos passam a se comportar como rapazes, a aventura começa a ser descrita num dia quente de março e o som de uma pianola vem invadir a aula de ciências naturais com uma saltitante canção húngara, alegre como uma marcha convocando os estudantes para a vida. Parte dos moleques deixa para trás o interesse no experimento de tornar verde a cintilante chama que oscila no bico de Bunsen... e o leitor, com os olhos e ouvidos deles, é convidado a observar ligeiramente os telhados e os quintais nas imediações do colégio, buscar o burburinho das lojas e dos ambulantes, o vendedor de doces, o movimento dos carros e dos bondes puxados a burro.
Enquanto rola a interminável aula com o professor de espírito empalhado, os rapazes de 14 anos usam mensagens amassadas em bolinhas de papel e o chão de tábua como meio mais eficaz para se comunicarem. Às três da tarde, assembleia geral: eleição do presidente no grund — o terreno baldio frequentado pelos meninos para jogar pela. Liderados, então, pelo calmo János Boka, eles estarão às voltas contra os camisas-vermelhas para defender o lugar e, numa riqueza de emoções, todos os personagens revelam como são intensos seus universos íntimos. Senso de justiça, afeição e honra orientam as relações de organização em papéis administrativos da sociedade da Rua Paulo e também a hierarquia de funções militares em épocas especiais de guerra. Vamos convivendo com o elegante Csele, o robusto Csórnakos, Geréb, Weiss, e o pequeno destemido Nemecsek, sentindo como as injunções do Império Austro-Húngaro reverberam potentes no jogo do cotidiano dos meninos.
A obra de Ferenc Molnár possui uma textualidade exigente, com recursos de humor, mundo comentado, ironia, reflexões sobre a vida que na literatura se tece, chegando aos leitores brasileiros em 1952, na tradução de Paulo Rónai e a revisão de Aurélio Buarque de Holanda, na Coleção Saraiva. Na década de 1980, o texto passou à Coleção Elefante da Ediouro e, em 2005, foi a vez da Cosac Naify relançar o romance, com a mesma tradução, até chegar à Companhia das Letras, em 2017, numa edição semelhante a diversos livros para adultos. Ainda que as casas editoriais fechem suas portas e janelas, o clássico juvenil sobrevive ao tempo pois conta uma história remota e atual, distante, mas sensivelmente comum a muitos leitores em qualquer lugar do mundo.