Ao longo da história, tornou-se senso comum a ideia de que a Amazônia preservada é uma floresta virgem, que existe graças à ação da natureza. Mas estudos paleobotânicos e arqueológicos trazem evidências de que isso não é verdade. 

Há milhares de anos, povos indígenas cultivaram boa parte da flora amazônica. Eles plantaram e realizaram o manejo de muitas espécies, contribuindo de maneira basilar para a exuberância e a riqueza de biodiversidade que caracterizam a floresta. Os animais, é claro, também tiveram papel importante no plantio da vegetação. Lançado em 2022, o livro “Sob os tempos do equinócio: Oito mil anos de história na Amazônia central”, de Eduardo Góes Neves, aborda esse fenômeno – explicando descobertas científicas com linguagem acessível.

Aqui no Clube Quindim, nossos assinantes também tiveram a oportunidade de entrar em contato com o assunto, através do livro “Kaaliawiri – A Árvore da Vida”. Essa fascinante obra nos apresenta um mito do povo Piapoco, que tem como pano de fundo uma região da Amazônia colombiana. O mito foi relatado pelo líder indígena Freddy Rojas ao escritor Francisco Ortiz, que publicou o livro.

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Imagem do livro “Kaaliawiri – A Árvore da Vida”, de Francisco Ortiz e Ciça Fittipaldi. Crédito: Rodrigo Frazão

Na narrativa, humanos e animais vivem como iguais e falam a mesma língua. Em um período de escassez de alimentos, os habitantes da região do rio Orinoco descobrem uma enorme árvore que faz brotar diversos frutos diferentes, capazes de acabar com a fome da população. Com isso, os personagens se unem para cultivar esses frutos, dando origem a um sistema de agricultura. Tal história tem diversas versões no território amazônico, variando um pouco o conteúdo de acordo com a localidade — algo comum em narrativas orais.

Uma das pioneiras na abordagem da cultura indígena em livros infantis brasileiros, a ilustradora, escritora e artista gráfica Ciça Fittipaldi é responsável pelas ilustrações presentes em “Kaaliawiri – A Árvore da Vida”. Conversamos com ela sobre esse trabalho e sua temática, e também ouvimos os escritores Daniel Mundukuru — curador do Clube Quindim e autor de obras como “Redondeza” e “Vozes Ancestrais: Dez contos indígenas” — e Elias Yaguakãg, autor do livro “Aventuras do Menino Kawã”, todas obras já entregues aos nossos assinantes.

Direto do Instagram: Entenda a importância de valorizar a história e a cultura dos povos indígenas desde a infância

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seres do passado, presente e futuro

Aos 72 anos, Ciça mergulha em lembranças para falar sobre o quanto a visão da sociedade a respeito dos indígenas mudou ao longo das décadas. “Eu frequentei a escola primária nos anos 1950 do século passado. Não havia a mesma oferta de imagens como há hoje na internet”, aponta. Ela relata que, naquela época, os indígenas eram apresentados às crianças como seres do passado e suas vivências nunca eram contextualizadas no momento em vigência

Com o tempo, ela passou a se inteirar sobre a realidade então contemporânea dos indígenas no Brasil e seu encantamento cresceu cada vez mais. Na Universidade Federal de Brasília, teve contato com antropólogos que pesquisavam o tema e, por causa do interesse e de seu trabalho artístico, foi convidada a viver por meses com o povo Nambikwara – na fronteira entre Brasil e Bolívia e do Mato Grosso com Rondônia. 

Ciça relata que aquela era outra época, em plena ditadura militar, na qual o Brasil como um todo estava começando a reconhecer de maneira mais ampla a existência dos povos indígenas. Era um tempo em que aliados da causa, como ela, tinham papel de mais destaque. Ela conta, por exemplo, que se envolveu na criação da União das Nações Indígenas, ao lado de Ailton Krenak, Álvaro Tukano e Biraci Brasil Yawanawá – como apoiadora e ilustradora de uma cartilha de direitos. Hoje, Ciça frisa que é fundamental que as pessoas busquem ouvir as vozes dos indígenas em primeira pessoa, dando a eles o justo protagonismo na causa.

Elias Yaguakãg também destaca essa importância. “Nós não somos a história de livros que há muito tempo é contada, nós existimos e estamos aqui”, frisa o autor.

“Estamos lutando tanto pra sermos vistos. A literatura informa, mas a verdadeira literatura a nosso respeito é a gente contando sobre nós”. 

Elias Yaguakãg

O poder das narrativas dos povos originários

Embora menos envolvida na causa indígena atualmente, Ciça abraçou o trabalho de ilustração de “Kaaliawiri – A Árvore da Vida”, buscando contribuir para o acesso das crianças a esse universo. Afinal, a noção de que a Amazônia foi plantada ainda é bem pouco difundida no imaginário popular.

Ela defende que as histórias indígenas devem ser apresentadas às crianças não como algo excêntrico, mas como parte da ampla valorização da diversidade. “O diferente pode ser belo, o diferente pode ser inteligente, pode nos trazer ideias incríveis sobre o mundo e novas filosofias de vida. Então, eu acho que os temas indígenas deviam entrar na escola com esse ensejo e não com o rótulo do exótico”. 

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Imagem do livro “Kaaliawiri – A Árvore da Vida”, de Francisco Ortiz e Ciça Fittipaldi. Crédito: Rodrigo Frazão

Daniel Munduruku, autor e curador do Clube Quindim, também defende a importância da literatura para a valorização dos saberes indígenas. “As histórias formam o ethos do pertencimento do indivíduo ao povo ao qual pertence. Por isso, elas não podem e não devem ser tratadas de forma minimalista, como se as pessoas – independente da idade –  não tivessem condições de mergulhar nos símbolos que elas representam”, aponta o autor.

“As histórias permitem não nos esquecermos de onde viemos e para onde caminhamos”

Daniel Munduruku

O autor destaca que os pequenos leitores têm um papel imprescindível para que a sociedade possa entender melhor a realidade de pessoas diversas. “As crianças são as que melhor ‘compreendem’ o que elas [as histórias] realmente significam, porque ainda estão envoltas no mistério da existência”.

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Para envolver as crianças através da literatura, o trabalho de ilustração também é fundamental. Ciça conta que, a fim de elaborar os desenhos, viajou à região onde se passa o mito de “Kaaliawiri – A Árvore da Vida” – na divisa entre Colômbia, Brasil e Venezuela.

Primeiramente, visitou a pedra pintada de Chiribiquete, que tem uma enorme concentração de pinturas rupestres. Impactada pela arte presente ali, ela quis prestar uma homenagem. “Descobri que eu podia pintar em cima de areia, então foi assim que eu fiz. Depois, consegui uma forma de aplicar aquarela sobre isso”, relata, dizendo que nenhum desenho foi feito digitalmente. O resultado é surpreendente e apresenta uma textura muito interessante, que remete às pedras pintadas há milhares de anos.

A importância da valorização dos saberes indígenas

Para além do valor artístico, a região retratada no livro tem outras características bem especiais. Em meados do século 20, ela foi listada pelo biólogo russo Nikolai Vavilov como uma das mais importantes do planeta para a segurança alimentar da humanidade. Isso é descrito no prefácio do livro Kaaliawiri e Ciça frisa que tal reconhecimento reforça a importância dos saberes indígenas para a sobrevivência dos seres humanos. 

Em uma sociedade marcada pela destruição da natureza em nome de um suposto progresso, é urgente a busca por alternativas sustentáveis. Nesse movimento, a escuta das vozes indígenas deveria ser central. Mas estamos fazendo isso de fato? Infelizmente, não.

“Nossas terras estão sendo invadidas por garimpo ilegal, que traz toda sorte de malefícios. Para onde fugir, se o direito é negado? Para onde correr se nosso grito não é atendido, é sufocado? Apesar de crescermos bastante com alguns no poder, ainda é pouco para o problema resolver”, alerta Elias Yaguakãg. 

Mais do que nunca, devemos olhar para as histórias e conhecimentos indígenas não como exóticos e distantes, mas como algo incrivelmente precioso e vital para a manutenção da vida humana. Junto dessa valorização da sabedoria ancestral dos povos originários, também é dever de todos respeitar os indivíduos que detêm tais saberes, defendendo o direito dos indígenas à vida, ao bem-estar, à cultura, às crenças e à terra.

Estante Quindim

Conheça três livros infantis já enviados pelo Clube Quindim aos seus assinantes que apresentam a contribuição dos povos indígenas para a biodiversidade da Amazônia.

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Kaaliawiri – A Árvore da Vida, de Francisco Ortiz e Ciça Fittipaldi
Menina mandioca (escritora Rita Carelli, ilustradora Luci Sacoleira, editora Pallas Mini)
Menina Mandioca, de Rita Carelli e Luci Sacoleira
O cão e o curumim (escritor Cristino Wapichana, ilustradora Taisa Borges, editora Melhoramentos)
O cão e o curumim, de Cristino Wapichana e Taisa Borges