“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

É bem provável que você já tenha lido a frase acima, mas não saiba o contexto envolvido e a importância que ela trouxe para a infância no Brasil. Trata-se do artigo 227 da Constituição Federal, de 1988, que foi regulamentado, posteriormente, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. É um marco não só como legislação, mas por representar um novo olhar para as crianças e adolescentes: como sujeitos de direitos, em especial condição de formação e desenvolvimento.

E não foi sempre assim? Na verdade, não. Historicamente, a maneira como as crianças foram encaradas pela sociedade mudou muito e, ao longo do tempo, diferentes conceitos de infância foram construídos. Aqui, vamos fazer uma pequena viagem pela história para compreender como ocorreu essa evolução no Ocidente, inclusive no Brasil, e por que sempre houve “infâncias” — assim mesmo, no plural!

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Adultos em miniatura

O ponto de partida da nossa jornada pela história da infância é a Idade Média. Foi a partir desse período que se concentraram os estudos do historiador francês Philippe Ariès (1914-1984), um dos pioneiros e principais pesquisadores sobre o surgimento e consolidação do sentimento de infância, autor de História Social da Criança e da Família, publicado em 1960.

Segundo o pesquisador francês, por muito tempo a criança não foi vista como um ser em desenvolvimento, com características e necessidades próprias, mas, sim, como um adulto em miniatura. Para o autor, isso ficava evidente pela forma como os pequenos eram representados na arte medieval, até meados do século XII: “Numa escala mais reduzida que os adultos, sem nenhuma diferença de expressão ou de traços”, afirma Ariès em sua obra.

O historiador destaca que, na Idade Média, a duração da infância era reduzida ao seu período mais frágil, “enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança, então, mal adquiria algum desembaraço físico era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude”.

Os pequenos, portanto, não eram reconhecidos enquanto crianças e não recebiam uma atenção especial como a que começam a receber séculos mais tarde — e muito menos como a que vemos hoje. Na verdade, logo conviviam com os adultos e com a comunidade, afastando-se dos pais e tendo uma socialização fora da família, que, segundo Ariès, não tinha a função afetiva como a que conhecemos. “A família era uma realidade moral e social, mais do que sentimental”, afirma o historiador.

Ainda de acordo com Ariès, a infância era uma fase de transição, cuja lembrança era logo perdida. Ainda mais em razão das altas taxas de mortalidade infantil daquele período, o que fazia com que os adultos lidassem com a perda de maneira bem diferente do luto que sentimos hoje. “As pessoas não se podiam apegar muito a algo que era considerado uma perda eventual. […] Essa indiferença era uma consequência direta e inevitável da demografia da época”, diz o francês.

Com o passar do tempo, isso começa a mudar. Por volta do século XVI, surge o desejo de retratar, na arte, os pequenos que perdiam a vida tão cedo — o que demonstrava uma mudança nos sentimentos em relação à infância. “O gosto novo pelo retrato indicava que as crianças começavam a sair do anonimato em que sua pouca possibilidade de sobreviver as mantinha. […] O retrato da criança morta, particularmente, prova que essa criança não era mais tão geralmente considerada como uma perda inevitável”, ressalta.

Antes de avançarmos um pouco na linha do tempo, mostrando como a infância começa a ser vista a partir do Renascimento, vale destacar mais um importante trecho da obra de Ariès, que bem resume o que ocorria na sociedade medieval: “O sentimento da infância não existia — o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas, abandonadas ou desprezadas. O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças. Corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa consciência não existia”.

“Paparicação” e o sentimento de infância na sociedade moderna

Agora, sim, próxima parada: século XVII. É nessa época que a sociedade começa a separar o mundo das crianças e dos adultos, inclusive adotando trajes específicos para os pequenos — ao menos entre os meninos e nas famílias de classes sociais mais elevadas. E, de acordo com o historiador francês, é quando surge um novo sentimento da infância, que ele denominou de “paparicação”: “Em que a criança, por sua ingenuidade, gentileza e graça, se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto”.

Em contraposição a esse sentimento, havia a ideia de que a criança era um ser puro, inocente e frágil, mas era necessário moldá-la, através da disciplina, para que se tornasse um adulto honrado. “É entre os moralistas e os educadores do século XVII que vemos formar-se esse outro sentimento da infância […], tanto na cidade como no campo, na burguesia como no povo”, analisa o historiador. Segundo ele, o apego à infância e à sua particularidade não se manifestava mais através da distração e da brincadeira, mas, sim, por meio do interesse psicológico e da preocupação moral.

É a partir daí que começa a ocorrer um processo de escolarização dos pequenos. “A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação. Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente através do contato com eles”, afirma o pesquisador francês. Ele ainda diz, em seu livro, que isso ocorreu como parte de um movimento de moralização dos homens, estimulado pelos reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja, às leis ou ao Estado — no Brasil, os primeiros responsáveis por isso são os jesuítas, como veremos mais adiante.

Paralelamente a essa escolarização, a família também passa a desempenhar um novo papel. Se na Idade Média ela não tinha uma função afetiva, agora a relação estabelecida entre pais e filhos é mais próxima. “A família tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos, algo que ela não era antes”, ressalta Ariès. Segundo ele, por se interessar pelos estudos dos filhos, “a família começa a se organizar em torno da criança e a lhe dar uma tal importância, que a criança saiu de seu antigo anonimato, que se tornou impossível perdê-la ou substituí-la sem uma enorme dor”.

Na Europa, esse processo ganha ainda mais força nos séculos seguintes, XVIII e XIX, quando a criança assume um lugar central na dinâmica familiar e as famílias começam a se estruturar de outra maneira: há uma redução voluntária da natalidade e um “recolhimento da família longe da vida coletiva, numa casa melhor preparada, por sua nova concepção arquitetônica, para a intimidade e a privatização”, como avalia a historiadora brasileira Lana Lage da Gama Lima, em análise sobre a obra de Philippe Ariès.

Nesse contexto da Revolução Francesa (1789 – 1799) e da Revolução Industrial, quando avança a urbanização no século XIX, a função do Estado é modificada e há maior preocupação e responsabilidade com as crianças, especialmente no que diz respeito à sua saúde, como apontam os autores do artigo “A compreensão da infância como construção sócio-histórica”, publicado na revista científica CES Psicología, da universidade colombiana CES (Corporación en Estudios de la Salud). Segundo eles, é a partir daí que a criança começa a ser vista como um indivíduo social, cujos direitos irão realmente progredir durante o século XX, como veremos abaixo.

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As “infâncias” no Brasil

Se Philippe Ariès é um dos principais autores para explicar as transformações da infância na Europa, por aqui esse nome é a historiadora brasileira Mary Del Priore, pós-doutorada na Ecole Des Hautes Etudes En Sciencies Sociales, de Paris, na França. Na obra História das Crianças no Brasil (1991), organizada por ela, as infâncias são retratadas em diferentes momentos da história do nosso país.

E aqui dizemos “infâncias” não só pela evolução do protagonismo que as crianças ganham dentro das famílias com o passar do tempo — assim como aconteceu na Europa, mesmo que de forma mais tardia —, mas porque aqui, além das crianças da elite e daquelas mais pobres, tivemos também as negras escravizadas e as indígenas (ou curumins). Mesmo vivendo numa mesma época, a realidade da infância de cada uma delas era bem diferente!

Em entrevista exclusiva ao Clube Quindim, Mary Del Priore ressalta que o conceito de infância é culturalmente construído e nos leva por uma viagem pelo Brasil Colônia, Império e início da República, relatando como era ser criança nessas épocas. “Durante séculos, a criança se limitava a ser alguma coisa que nascia e que tão logo ficava de pé começava a trabalhar”, diz a historiadora.

Ela enfatiza que, até o século XX, o Brasil era majoritariamente agrícola, formado por um número enorme de famílias desfavorecidas que viviam da terra. “Portanto, a criança pequena, quer no campo, quer na cidade, ela tinha que ter uma função dentro da família — e essa função é o trabalho, é ajudar a família a sobreviver”, acrescenta.

No caso do campo, os pequenos já começavam a trabalhar por volta dos 3 ou 4 anos de idade, assim que conseguiam manejar uma enxada. “Eu não estou falando de escravizados. Estou falando de crianças pobres”, alerta Del Priore. Os filhos de escravizados, é claro, também eram conduzidos ao trabalho muito cedo. A diferença, segundo ela, é que até o século XIX, a criança escravizada, com cerca de 8 ou 9 anos, aprendia um ofício para sobreviver dentro da fazenda. “Ela vai ser o cocheiro, ela vai cuidar da criação, enfim, ela tem um ofício determinado”, diz.

Nesse contexto, além das questões envolvendo classe social, havia também as distinções por gênero. “As meninas vão para a cozinha, vão aprender a ser costureiras dentro dessa coisa extremamente moderna que é uma fazenda de café, de açúcar ou de gado”, conta Del Priore. “Crianças têm funções, sejam elas livres ou escravizadas”, complementa.

Nas regiões urbanas, a situação infantil não era diferente. Del Priore lembra que, até o final do século XIX, os pequenos tinham um trabalho regular e integravam o grande contingente que ajudava a formar o operariado brasileiro. “Crianças eram trabalhadoras fabris, sobretudo em São Paulo, onde a indústria têxtil e as pequenas indústrias caseiras necessitavam dessa mão de obra”, conta. “Elas podiam trabalhar até 10, 12 horas, não tinham nenhum momento de recreação, eram mal alimentadas, mas tinham um salário. Num país pobre, o salário da criança operária vinha engordar o salário da família”, recorda.

O trabalho infantil no Brasil perdurou até tempos bem recentes, quando a legislação finalmente garantiu direitos aos pequenos — isso já no século XX, como explicaremos ao fim da reportagem. De acordo com a historiadora, até os anos 1980 e início dos 90, as crianças na época da colheita deixavam de ir para a escola para ajudar a família. “Os pais diziam que era uma forma dos filhos aprenderem como é que eles sobreviveriam se eles, pais, faltassem. Então, tanto o castigo físico quanto o trabalho, que são duas coisas hoje proibidas na nossa sociedade, eram considerados formadores do caráter da criança”, afirma.

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Adulto em gestação

Por falar em caráter, é essencial abordar o papel da Igreja e, mais especificamente, dos jesuítas na educação das crianças, desde o período do Brasil Colônia, ainda no século XVI. Assim como na Europa, aqui também havia a ideia de que os pequenos precisavam ser moldados para se tornarem adultos aptos e honrados. No livro História das Crianças no Brasil, Del Priore aponta que a infância era vista como o momento ideal para a catequese, para a transmissão de princípios e valores que seriam seguidos na vida adulta.

Em entrevista ao Clube Quindim, a historiadora conta: “Os jesuítas sempre foram muito envolvidos com a questão da educação como instrumento de formação, da cristandade. Tanto é que as primeiras escolas jesuítas fundadas no Brasil, em Salvador e, depois, em São Paulo de Piratininga, são escolas para crianças indígenas”. Ela conta que os jesuítas traziam para o Brasil Colônia crianças abandonadas nos portos portugueses para ajudarem na formação dos curumins, para que eles fossem alfabetizados, aprendessem a rezar e pudessem acompanhar a missa.

“É importante dizer que muitos senhores de escravos faziam questão de ter escola para escravizados”, relata. Segundo ela, essas crianças eram alfabetizadas, sobretudo entre os anos de 1840 e 1860/70. “Até escola para meninas escravizadas era comum. Mas eram escolas profissionais, onde elas aprenderiam costura, bordado, tecelagem, tinturaria, cozinha…”, lembra. Isso demonstra que havia uma preocupação com o preparo da criança para a sua vida como adulto. “Educar era preparar para o futuro”, pontua.

Del Priore costuma dizer que a criança, portanto, era vista como um adulto em gestação. Esse pensamento também se faz presente a partir da proclamação da República, em 1889, quando a sociedade começa a se atentar para outra “categoria de criança”: aquelas abandonadas, órfãs ou provenientes de “famílias desestruturadas”.

“Difundia-se a ideia de que era preciso educar e ‘moldar’ aquela criança para que não viesse a se tornar um delinquente. Para isso, foram criadas políticas públicas sociais designadas para este perfil de criança”, apontam os autores do artigo “Infância ou infâncias”, publicado na revista científica Linhas, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E isso começa a acontecer no início do século XX, nossa última parada nessa viagem pela história.

Avanços voltados para as infâncias no Brasil e no mundo

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No começo do século XX, o Brasil vivia uma urbanização e uma modernização ainda muito incipientes. A abolição da escravidão havia acontecido há pouco tempo, em 1888, e as desigualdades sociais se manifestavam nas mais diversas áreas da sociedade, afetando, é claro, a infância.

É nesse contexto — em que havia todo um debate sobre o quanto crianças e adolescentes tinham discernimento sobre seus atos ou não, e que ganhava força a ideia de uma intervenção do Estado para lidar com os pequenos em situação de vulnerabilidade (ou que tivessem cometido algum delito) — que é promulgado o primeiro Código de Menores do país, em 1927. Ele estabeleceu, entre outras coisas, a maioridade penal para 18 anos e consolidou as leis de assistência e proteção a menores vigentes na época.

“O que vai acontecer nessa virada do século é justamente isso: junto com outros países em que se começa a pensar as especificidades da justiça juvenil, também se começa a pensar numa legislação específica para essas crianças [que passam a ser vistas como perigosas, que poderiam ir para a violência precoce se estivessem abandonadas e, então, eram institucionalizadas]”, aponta Marcos César Alvarez, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), pesquisador sobre a questão da menoridade no Brasil e autor da tese “A emergência do Código de Menores de 1927: uma análise do discurso jurídico e institucional da assistência e proteção aos menores”.

Em entrevista ao Clube Quindim, Alvarez lembra que um grande problema envolvendo essa legislação é como a justiça juvenil acabava tendo um viés de classe, raça e gênero, tratando as crianças de forma desigual. “Ainda hoje, se você reclamar para um policial na rua e falar que um menor te assaltou, ele vai fazer uma imagem na cabeça, como todo mundo faz”, diz o professor da USP. É como também avaliam os autores do artigo “Infância ou infâncias”: “A criança negra e pobre, que antes era escravizada, se torna menor, e a criança branca, das classes média e alta, permanece sendo criança”.

Vale mencionar que outro Código de Menores foi promulgado em 1979, mas que ambos foram revogados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. É sobre o papel dele que vamos nos debruçar agora.

“O grande movimento que aconteceu no Brasil pelo ECA foi para que a gente tivesse uma legislação que considerasse todas as crianças e adolescentes e trouxesse a dimensão dos direitos, porque a gente tinha muito só a dimensão mais punitiva e centralizadora, em instituições fechadas”, analisa Ana Claudia Cifali, advogada, coordenadora jurídica do Instituto Alana e mestre em Cultura de Paz, Conflitos, Educação e Direitos Humanos pela Universidad de Granada, na Espanha.

Como toda legislação, no entanto, o ECA não surgiu de uma hora para outra — só foi aprovado quase no fim do século XX — e foi influenciado por debates a respeito da infância que aconteciam no Brasil e no mundo, desde a Primeira Guerra Mundial. É com o fim dela, por sinal, que foi criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, e que ocorreram as primeiras convenções discutindo os direitos dos trabalhadores, especialmente de mulheres e crianças.

“A gente tem a proibição do trabalho noturno para menores de 18 anos, a proteção da maternidade, idade mínima de 14 anos para a indústria e um tempo máximo de jornada. É claro que está muito longe dos nossos parâmetros [atuais], mas é a primeira proteção”, conta Ana Claudia.

Além disso, ao longo do século, ocorre uma série de avanços que vão pavimentar o caminho para a criança ganhar visibilidade na Constituição de 1988 e, depois, para a criação do ECA. Os principais são:

  • a Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, de 1924. “É o primeiro documento de caráter mais amplo com relação à criança e à proteção da infância. Ela não não tinha um caráter vinculativo e as crianças ainda eram objetos de proteção e não sujeitos de direito”, diz Ana Claudia;
  • a criação do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), em 1946, para atender, primeiramente, às necessidades emergenciais das crianças após a Segunda Guerra Mundial;
  • a Declaração Internacional dos Direitos da Criança, em 1959, reconhecendo que a criança compartilha dos direitos humanos previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. “Pela primeira vez, a criança aparece como ‘sujeito de direitos’ no Direito Internacional”, destaca a coordenadora jurídica do Instituto Alana;
  • o Ano Internacional da Criança, declarado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1979, em comemoração aos 20 anos da Declaração dos Direitos da Criança.

De acordo com Ana Claudia Cifali, a comunidade brasileira já conhecia um pouco das discussões que estavam acontecendo no âmbito da ONU para a proteção de crianças e adolescentes e já conhecia o que viria a ser a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989. Ela é considerada o instrumento de direitos humanos mais aceito na história, ratificado por 196 países, inclusive o Brasil. “Então, houve um esforço de buscar introduzir já na Constituição de 1988 esses conceitos fundamentais de proteção integral, da responsabilidade compartilhada, da prioridade absoluta nos direitos da criança e do adolescente. Foi um compromisso que decidimos assumir enquanto sociedade de colocá-los em primeiro lugar”, ressalta.

Em 1990, então, o ECA faz com que os pequenos, finalmente, sejam vistos como sujeitos de direito. “Até então, eles eram vistos como propriedades das suas famílias. A gente sempre ouviu que em briga de homem e mulher ninguém mete a colher e era a mesma coisa em relação às crianças e aos adolescentes”, destaca Ana Claudia. “E, a partir da nossa Constituição e do ECA, a gente tem a responsabilidade compartilhada, um conceito fundamental de que Estado, família e sociedade são todos responsáveis pela proteção e pela garantia dos direitos da criança e do adolescente”, acrescenta a advogada. Ela lembra, ainda, que isso está relacionado com aquele antigo ditado de que é preciso uma aldeia para educar uma criança.

Isso significa que a situação da infância brasileira foi resolvida? Claro que não. Mas, como legislação, é indiscutível que o ECA é um marco e representa um avanço na forma como a criança é encarada pela sociedade. “O ECA tentou tirar as crianças e os adolescentes do escopo da possível criminalidade, da punição, por um escopo de direitos, de sujeitos em formação”, pontua Marcos César Alvarez. Ele faz um paralelo com a Lei Maria da Penha: ela não conseguiu acabar com a violência doméstica, de gênero, contra a mulher, mas é inegável a sua importância em relação aos direitos femininos.

“BrasiS” e suas múltiplas infâncias

Diante de tudo o que vimos até aqui, de como a criança ganhou visibilidade no mundo ocidental com o passar do tempo e de como as realidades dos pequenos foram — e continuam sendo — muito distintas, é que falamos em “infâncias”.

“Aliás, tudo no Brasil deve ser conjugado sempre no plural. Primeiro, porque o Brasil é um ‘continente’. Segundo, porque ele se desenvolveu estruturalmente de forma muito diversa”, destaca Mary Del Priore. Segundo a historiadora, para se ter ideia, os ingleses no século XIX só chamavam o nosso país de “Brasis”, porque eles identificavam o Nordeste diferente do Sudeste, e o Sudeste diferente do Grande Norte, por exemplo.

“A gente costuma falar de múltiplas infâncias”, enfatiza Ana Claudia Cifali. Segundo ela, a infância vai depender de todos os recortes de gênero, etnia, classe social, região etc. e de como esses fatores influenciam no desenvolvimento da criança, do cuidado que ela recebe e de como ela pode viver esse período tão importante da vida. “Se a ela é permitido viver a infância e a adolescência ou se de alguma forma isso é violado por questões como o trabalho infantil, exploração sexual e outras violências que podem atravessá-la”, acrescenta.

Marcos César Alvarez lembra, por exemplo, que a infância num bairro de classe média alta em São Paulo é bem diferente da infância da periferia, da infância institucionalizada, daqueles que frequentam creches — e se elas são privadas ou não. “Então, me parece que algo forte nessa discussão é que a infância continua sendo um espaço fundamental de produção da desigualdade, sobretudo em sociedades como a brasileira”, analisa.

É por essa razão que é essencial olhar para as especificidades de cada criança, para as infâncias brasileiras. “A gente precisa trazer algumas lentes, especialmente nas políticas públicas, para priorizar quem realmente deve ser priorizado”, conclui a especialista do Alana.

Estante Quindim

Conheça 3 livros infantis para ler com as crianças e ampliar o olhar sobre as múltiplas infâncias brasileiras.

Redondeza (escritor Daniel Munduruku, ilustradora Roberta Asse, editora Criadeira Livros)
Redondeza, de Daniel Munduruku e Roberta Asse
Aqui e aqui (autor Caio Zero, editora Companhia das letrinhas)
Aqui e aqui, de Caio Zero
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Chupim, de Itamar Vieira Junior e Manuela Navas