De quantas donzelas delicadas e homens corajosos a literatura é feita? Quantos livros infantis ainda ilustram estereótipos de meninas vestindo tons rosados e meninos com cores mais frias, como verde e azul? Há alguma razão científica para, por exemplo, a escolha dessas cores na representação dos gêneros masculino e feminino?
Para o Dr. Marco Del Giudice — professor do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Trieste, na Itália —, não há evidências científicas de que o rosa seja, naturalmente, uma cor feminina e vice-versa. Em seu estudo Rosa, azul e gênero: atualizações, de 2017, o pesquisador foi atrás de registros históricos que associassem essas duas cores a homens e mulheres e descobriu que, nos Estados Unidos, essa regra não era definitiva até pouco tempo. Ele encontrou, até a década de 1940, muitas publicações que estabeleciam até mesmo o contrário: o rosa como cor masculina e o azul, feminina.
O fato é que as cores não são as únicas a serem impostas injustamente a uns e outros. Há uma série de características e narrativas que são atribuídas a meninos e meninas por conta de seus gêneros e essa imposição está longe de representar a realidade.
Como todo educador sabe, em uma única sala de aula há crianças de todos os tipos: meninos e meninas estudiosas, inquietas, tímidas, extrovertidas, sensíveis e agressivas. Mas a repetição de um mesmo padrão de menino ou menina em livros e animações gera exclusão àquelas crianças que não se identificam com as personagens da história. Uma garota corajosa e aventureira, por exemplo, ao não encontrar uma personagem como ela em suas histórias favoritas, pode sentir medo de ser diferente. O mesmo vale para garotos mais sensíveis.
Em entrevista ao Clube Quindim, Marina Speranza (@omeninoeofeminino)— mestre em Gênero e Políticas da Igualdade pela Universidade de Valência, na Espanha — afirma que é papel de todos os adultos (sejam educadores, responsáveis ou até criadores de conteúdo) garantir uma socialização inclusiva e respeitosa entre as crianças, especialmente os garotos, para que eles não cresçam reproduzindo comportamentos machistas.
Em seu livro O menino e o feminino (Editora UICLAP, 2024), a autora propõe uma série de reflexões sobre os diálogos e intervenções necessárias que devemos fazer na educação de meninos. “Essa socialização no gênero tão binária, em que meninos e meninas são ensinados a ser de um jeito determinado, gera violências de todos os aspectos, tanto para garotas quanto para garotos (…) Os meninos, por exemplo, são socializados de uma maneira que eles aprendem o silenciamento de seus sentimentos. Para viver em um grupinho de homens, é preciso negar tudo o que é dito feminino”, afirma a autora.
Além da exclusão e do medo que algumas crianças podem sentir com a falta de representatividade, a repetição desses estereótipos pode fazer com que meninas e meninos os reproduzam quase que inconscientemente, absorvendo-os em suas vidas.
Em 2021, a Organização não governamental Plan International Brasil publicou o estudo Por ser menina, que buscou ouvir as percepções de garotas brasileiras de 6 a 14 anos sobre elas mesmas. Enquanto, 67,2% das meninas entrevistadas têm os afazeres domésticos como uma das atividades feitas com maior frequência, apenas 31,9% dos indivíduos do gênero masculino que convivem na mesma residência realizam essas tarefas. Já em relação a trabalhar e ganhar dinheiro, as taxas são de 50,5% para garotos e 21,9% para as meninas.
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Como evitar a repetição desses estereótipos em crianças?
Para Marina, o primeiro passo para promover uma educação que respeite as diferentes infâncias que existem é o diálogo contínuo: conversar com as crianças sobre o tema, acompanhando o que eles têm lido e assistido e, principalmente, sobre as características que cada um tem, independente de ser menino ou menina.
A especialista diz ainda que é essencial, durante o diálogo, não condenar os pequenos pelo que eles possam falar: muitas vezes, as crianças estão apenas reproduzindo aquilo que escutaram. Por isso, é bom que o adulto escute e aponte as possíveis problemáticas sem julgamento.
“Existe também um medo por parte dos responsáveis de que, lá fora, seus filhos sejam maltratados se não agirem conforme as ‘leis’ dos gêneros. Então o diálogo e escuta com esses adultos também é muito importante.” – Marina Speranza.
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Livros com meninos e meninas diversos
Marina acredita ser muito válido usar a literatura, e outras formas de narrativas, como uma grande aliada para a quebra desses estereótipos ao invés de reforçá-lo, como acontece ainda em algumas obras. É o que também defende Fafá Conta, atriz e contadora de histórias profissional. “As histórias podem ter muitas funções e podem também não ter função alguma e ser, simplesmente, um momento gostoso de leitura. Mas acima de tudo, a história nos alimenta, fortalece e nos ajuda a viver”, diz em entrevista ao Clube Quindim.
Para a atriz, contar histórias para crianças é similar à introdução alimentar: para uma alimentação rica e saudável, é importante diversificar os alimentos, oferecendo ferramentas para que elas enriqueçam a vida e ampliem seus olhares. “Se você só oferecer cenoura, que é muito boa, a criança vai acabar ficando capenga em outros nutrientes”, compara.
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Quando os pequenos escutam histórias, eles acabam descobrindo diferentes maneiras de ser: ‘Nossa, esse menino chora, então eu também posso ser um menino e chorar’ ou ‘Caramba, essa garota é muito boa de bola. Que legal, porque eu também sou!’. A literatura, quando bem feita, permite às crianças algo que é inerente à infância: experimentar. “Então, quando as garotas se deparam, por exemplo, com heroínas, elas entendem que é permitido ser forte, valente e, de repente, até desobedecer. Elas não precisam fazer o que todos mandam”, diz Fafá.
No meio da pandemia, Fafá Conta fez uma live narrando a história de um menino que decidiu experimentar uma saia. Para alguns adultos, essa única cena seria motivo para muito debate e alvoroço, mas a artista diz que recebeu o relato de uma mãe, cuja filha escutou a história e disse apenas: ‘Nossa, e daí? Grande coisa!’ “Então, algumas vezes, pensamos que vamos chocar a sociedade, mas para muitas crianças, é apenas um menino experimentando uma roupa, nada demais”, conta a atriz.
“Não existe coisa de menina e de menino. Boneca é boneca. Boneca não é de menina, é de criança, que pode brincar de boneca ou de carrinho.” – Fafá Conta.
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Estante Quindim
Há muitas obras, atualmente, que narram personagens diversos: meninos que choram ou brigam; meninas comportadas ou arteiras. Conheça abaixo títulos do catálogo do Clube Quindim que contam a história de garotos e garotas de todos os tipos:
Editora: Jujuba
Faixa etária: 0 a +9 anos
Editora: Pulo do gato
Faixa etária: 0 a 8 anos