Imagine se o criador do mundo voltasse disfarçado à Terra para ver como andam as coisas por aqui e se deparasse com o que os humanos estão fazendo com o planeta. É o que o livro infantil de Ailton Krenak e Rita Carelli, recém-lançado pela Companhia das Letras, propõe com a história de Kuján e os meninos sabidos.
A palavra indígena “kuján” significa tamanduá, aquele simpático animal que vai ser a forma escolhida pelo criador para fazer essa passagem pelo ambiente terreno, já que ele teme ser reconhecido. Chegando aqui, porém, acontece uma baita confusão: o bicho será caçado para virar o prato principal da aldeia! Para sua sorte, dois garotinhos chamados Roti e Cati – os meninos sabidos – vão conseguir notar algo de especial, intervir e ajudá-lo.
“Esse é um livro que fala sobre o meio ambiente, mas também fala sobre reconhecimento, sobre transmissão de conhecimentos e sobre como as crianças são, eventualmente, mais perspicazes para perceber o sagrado e o oculto do que os adultos”, comenta Rita Carelli.
Uma infância rica de cultura e de vivências
A escritora e ilustradora (dentre diversas outras atividades) teve o privilégio de crescer em contato com tribos indígenas graças ao trabalho de seus pais: Vincent Carelli, indigenista e documentarista, e Virgínia Valadão, antropóloga já falecida com quem Vincent criou o projeto Vídeo nas Aldeias nos anos 1980.
“Eu tive essa oportunidade incrível de, pequena, conviver em diferentes aldeias indígenas, e a minha literatura vem muito desses encontros e desse desejo de compartilhar as coisas que eu pude viver durante essas viagens e convivências”, conta Rita.
Para ela, trazer as diferentes culturas dos povos originários para as manifestações artísticas é primordial, mas não só. “É muito importante trazer as histórias indígenas para as artes, a literatura, o cinema, o teatro, mas também para além das artes: para a política, a jurisprudência… Eu acho que o Brasil ficou muito tempo de costas para as suas populações indígenas e, pouco a pouco, a sociedade nacional está despertando para a riqueza natural desses povos que foram sistematicamente massacrados pelo Estado brasileiro e que continuam sendo”, destaca.
Rita relata ainda que produzir para crianças sempre foi parte de sua militância – não à toa, ao longo de sua carreira, publicou uma série de livros destinados aos pequenos leitores, como Menina Mandioca e Minha família Enauenê.
“Eu sou mãe de duas filhas pequenas e acho que a gente precisa urgentemente reflorestar os imaginários das crianças e dos adultos, e talvez valha a pena investir em livros com menos princesas e mais tamanduás”, defende. O objetivo, segundo Rita, é sair um pouco dessa cultura tão eurocêntrica na qual vivemos e que temos transmitido às crianças, e apresentar outras cosmovisões, com maneiras diversas de olhar para a vida e de existir no planeta.
Direto do YouTube: “Menina mandioca” e infâncias indígenas: uma conversa com a autora Rita Carelli
A parceria com Ailton Krenak
Novamente em razão do trabalho de seus pais, Rita conheceu Ailton Krenak há muitos anos. Nascido em 1953, o primeiro indígena eleito imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) é uma das mais importantes vozes da atualidade. Nos últimos anos, tem transposto parte de seu conhecimento e sua visão de mundo para os livros por meio de uma parceria significativa com a ativista e artista.
“Quando eu aproximei o Ailton da Companhia das Letras, era meu desejo que mais pessoas escutassem essa voz que eu tive o privilégio de crescer ouvindo”, relata Rita, que acrescenta: “ele também é um parceiro, amigo do meu pai, nós já viajamos muito por esse Brasil em diversas comunidades indígenas.”
Assim, ao notar a necessidade de aumentar o alcance da voz de Krenak – pensando no quanto todos nós poderíamos ganhar com isso -, Rita Carelli passou a trabalhar em parceria com ele. “Eu sou organizadora dos livros adultos do Ailton da coleção que foi feita para a Companhia das Letras: Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e depois, mais intensamente, A vida não é útil (2020) e Futuro ancestral (2022). Eu elaborei esses livros a partir de conferências, entrevistas, lives do Ailton… e compus os textos a partir das falas dele”, conta.
Sobre esse trabalho de organização e de transposição da oralidade para o texto, Rita comenta que é um processo que ela faz com naturalidade e, é claro, com respeito ao amigo. “Eu fico muito à vontade para compor os textos a partir das falas do Ailton com o máximo de respeito e cuidado para não trair a sua voz. E ele também tem muita confiança em mim para fazer esse trabalho, então firmamos essa parceria tão profícua e tão bacana”, sublinha.
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A presença indígena na literatura infantil
Dado esse convívio, quando veio a provocação de fazer um livro infantil, Rita não cedeu à recusa do amigo. “A resposta dele foi ‘ah, não, não escrevo para crianças, não tenho agora’. Mas ele me contou isso e eu rapidamente falei ‘é claro que nós vamos fazer!’”, lembra. Então, ela sugeriu que eles desdobrassem a história do tamanduá, brevemente contada no livro A vida não é útil, dando origem ao livro infantil. “Trabalhei a partir dessa narrativa que eu já tinha ouvido o Ailton contar, pegando mais alguns detalhes da história. A partir disso, eu fiz as ilustrações e as colagens que acompanham o texto”, conta a artista.
Sobre as mudanças no mercado editorial de livros para os pequenos, Rita vê avanços importantes nas últimas décadas. “Lembro que, quando eu era pequena, tinha uma coleção muito bonita de mitos indígenas que a Ciça Fittipaldi fez pela Melhoramentos, e praticamente era o que se encontrava sobre isso para crianças. Agora, tem uma proliferação enorme de autores indígenas, parcerias, entre outros, sendo publicados”, diz.
Além do mercado editorial, Rita cita outros setores da sociedade que estão sendo beneficiados pela presença de povos originários. “Tem muito mais autores indígenas publicando, mas também mais artistas indígenas criando e expondo, pensadores, agentes políticos, influenciadores… Acho que esses espaços estão sendo ocupados por outras vozes e que a sociedade nacional está se interessando cada vez mais por essas outras formas de viver, de pensar e de existir. Talvez, infelizmente, [isso esteja acontecendo] por conta da crise civilizatória que estamos vivendo e dessa exaustão a que estamos submetendo o planeta pela nossa maneira de viver, consumir e se relacionar com ele, mas com certeza tem uma diferença muito grande”, reflete.
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Krenak, Gil, Emicida e a reflexão sobre nosso modo de vida contemporâneo
A pequena história que deu origem a Kuján e os meninos sabidos também já apareceu em outros momentos e formas de arte, como na música “É tudo pra ontem”, do Emicida, lançada no icônico álbum AmarElo (2019). Por volta da metade da canção, que traz uma reflexão sobre a vida e a condição humana, a narrativa ganha corpo na voz de Gilberto Gil. “Viver é partir, voltar e repatir”, diz o verso mais repetido da música, fazendo coro à concepção de mundo enquanto espaço compartilhado e que pede responsabilidade sobre o legado que estamos deixamos para o futuro, assim como no breve mito indígena.
“No final da narrativa, fica essa dica de que talvez a humanidade não seja o suprassumo da criação, de que talvez não estejamos nos saindo tão também quanto julgamos. Acho isso interessante porque, em geral, a literatura (em especial a literatura infantil) exalta muito a figura humana e se atrela muito a uma narrativa heroica. Já esse tipo de livro contrapõe um pouco a noção heroica da humanidade”, finaliza Rita.
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