Pode ser difícil imaginar Clarice Lispector, conhecida por mergulhar na alma humana a partir de um olhar aguçado para o cotidiano, escrevendo para crianças. Mas o fato é que a ucraniana naturalizada brasileira não apenas criou narrativas destinadas a pequenos leitores, como declarou gosto pelo ofício.
“Quando eu me comunico com criança é fácil, porque sou muito maternal. Quando eu me comunico com adulto, na verdade eu estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma; aí é difícil”, disse em entrevista à TV Cultura nos anos 1970.
O primeiro livro infantil escrito por Clarice foi a pedido de seu filho mais novo, Paulo. “Começou com meu filho de seis anos de idade… Seis, não, cinco, ordenando que eu escrevesse uma história para ele, e eu escrevi. Depois, guardei e nunca mais liguei.” Tratava-se de O mistério do coelho pensante, publicado anos mais tarde, em 1967, por demanda de um editor. Depois, vieram outros três livros: A mulher que matou os peixes (1968), A vida íntima de Laura (1974) e Quase de verdade (1978) – esse último, lançado postumamente.
“Nunca pensei escrever livros para crianças. O primeiro surgiu de um pedido de meu filho Pauluca, há muitos anos, e o outro [A mulher que matou os peixes], de uma sensação de culpa da qual queria me redimir”, disse Clarice em entrevista ao Jornal da Tarde, em 1969.
Às quatro histórias, junta-se ainda o livro Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras, publicado em 1987. Embora seu lugar na obra clariciana seja motivo de debate, já que seus textos são resultado de uma encomenda para compor um calendário da fábrica de brinquedos Estrela, o estilo inconfundível de Clarice está presente ao contar, à sua maneira, lendas folclóricas do Brasil.
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O que Clarice Lispector escrevia para crianças?
Ao escrever para crianças, Clarice não as subestimou e nem se deixou intimidar por elas. Adaptou sua escrita, é claro, mas não seu tom. A linguagem é mais simples, pode-se dizer, mas a complexidade da vida está ali, sendo observada pelo olhar de curiosidade tão característico da infância e que Clarice respeita sem titubear – ela trata o leitor como um interlocutor com repertório, opinião e vontade de questionar.
Nessas obras, os animais são presença frequente, como não poderia deixar de ser. No repertório clariciano, aquilo que é da ordem do inumano tem grande importância – vale destacar, por exemplo, a galinha, personagem de diversos contos e crônicas para adultos. Nas histórias infantis, porém, eles vêm acompanhados de uma graça a mais: um coelho que cheira ideias, um cachorro que narra histórias, uma galinha muito simpática e uma turma de bichos elencada por Clarice ao se defender da morte de dois peixinhos de aquário.
Conheça, a seguir, um pouco sobre a bicharada e a natureza que compõem cada um desses livros e que tornam o repertório clariciano ainda mais especial.
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5 Livros infantis de Clarice Lispector
1. O mistério do coelho pensante (1967)
Escrito a “pedido-ordem” de Paulo, filho mais novo de Clarice Lispector e Maury Gurgel Valente, quando moravam nos Estados Unidos, o livro conta a história de Joãozinho, um coelho comum e sem características especiais, além do fato de “cheirar ideias” -e ele tanto fareja que… cheira a ideia de fugir. O mistério da narrativa, então, é simples: como o bichinho era capaz de abrir a própria gaiola sem ter mãos e escapar?
É sobre isso que ela escreve, em tom de conversa, a Paulo, que aparece como seu interlocutor na história. A escrita é tão despretensiosa que é possível notar seu objetivo: não foi feita para ser publicada, era apenas um agrado ao garoto. Ainda assim, seu valor literário é indiscutível.
Antes do texto, Clarice deixa uma nota ao leitor adulto: aquele é um livro para ser lido oralmente junto à criança, a fim de preencher as lacunas, que serão muitas – mas, segundo ela, a melhor parte.
“O mistério do coelho pensante é também minha discreta homenagem a dois coelhos que pertenceram a Pedro e Paulo, meus filhos. Coelhos aqueles que nos deram muita dor de cabeça e muita surpresa de encantamento. Como a história foi escrita para exclusivo uso doméstico, deixei todas as entrelinhas para as explicações orais. Peço desculpas a pais e mães, tios e tias, e avós, pela contribuição forçada que serão obrigados a dar. Mas pelo menos posso garantir, por experiência própria, que a parte oral desta história é o melhor dela.”
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2. A mulher que matou os peixes (1968)
Publicado já no ano seguinte, em 1968, A mulher que matou os peixes é narrado pela própria Clarice, mas em tom confessional. “Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer”, diz na abertura do livro – e foi mesmo. Trata-se de um caso que aconteceu com dois peixinhos vermelhos que pertenciam a seus filhos.
Antes de revelar o acontecido, porém, a escritora faz uma longa defesa, relatando seu contato com os mais diversos bichos – daqueles que amamos aos que nos dão medo ou nojo – para se provar digna da confiança das crianças.
Com texto mais longo e denso do que os outros quatro livros, exige uma leitura de maior fôlego e concentração. O “crime”, afinal, só é revelado nas últimas páginas; antes disso, devaneios, reflexões e pequenas histórias se desdobram, criando o verdadeiro encantamento da obra.
“Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver. Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida para fazer alguma coisa de bom. Não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim deste livro contarei e vocês, que vão ler essa história triste, me perdoarão ou não.”
- Curiosidade: na edição mais recente da Rocco, o livro foi ilustrado com colagens de Mariana Valente, artista plástica, filha de Paulo Gurgel Valente e neta de Clarice Lispector.
3. A vida íntima de Laura (1974)
Com uma graça muito peculiar, A vida íntima de Laura conta a história de uma personagem simpática demais: uma galinha! Mas, logo de início, sabemos que a vida da penosa é apenas pretexto para falar de assuntos muito mais profundos do que o dia a dia no quintal da Dona Luísa, afinal, o bichinho também tinha “pensamentozinhos e sentimentozinhos”.
“Vou logo explicando o que quer dizer ‘vida íntima’. É assim: vida íntima quer dizer que a gente não deve contar a todo mundo o que se passa na casa da gente. São coisas que não se dizem a qualquer pessoa”, começa a narrativa. Como nas outras obras, Clarice fala diretamente ao leitor, questionando, fazendo comentários e passando por temas delicados à infância.
Ao lembrar que adora galinhas vivas, mas também saboreia um bom prato de galinha ao molho pardo, ela conta aos pequenos como é feita a iguaria. Relata, ainda, o medo que Laura sente de ser escolhida para o próximo almoço. Apesar do assunto, porém, faz isso de forma simples e direta. “É engraçado gostar de galinha viva e ao mesmo também gostar de comer galinha ao molho pardo. É que as pessoas são uma gente meio esquisitona”. Para muitos leitores, esse é o livro mais gracioso da produção infantil da autora.
4. Quase de verdade (1978)
“Era uma vez: eu”. Imagine uma história que começa assim. Agora, imagine uma história que começa assim e é contada (ou latida) por um cachorro à sua tutora, para que ela datilografe em língua de gente. Quase de verdade, publicado em 1978, é narrado por Ulisses, cachorro de Clarice Lispector por quem ela tinha grande afeto.
“Sabe quem eu sou? Sou um cachorro chamado Ulisses e minha dona é Clarice. Eu fico latindo para Clarice e ela —que entende o significado de meus latidos — escreve o que eu lhe conto.”
A história que ele late é a seguinte: uma figueira invejosa por não dar figos, mas com vontade de ganhar muito dinheiro, traça um plano para enganar galinhas. Ao fazer um acordo com uma bruxa, ela fica acesa a noite toda, como se o sol batesse nela, e faz com que as galinhas acreditem que é dia o tempo todo, colocando ovos sem descansar.
Nesse livro, a fantasia ganha força, brincando com os limites entre verdade e mentira, ficção e realidade, trazendo ainda um traço autobiográfico. Além disso, o trabalho com o texto chama a atenção, a partir de neologismos e brincadeiras com o som das palavras.
“Os homens homenzavam, as mulheres mulherizavam, os meninos e meninas meninizavam, os ventos ventavam, a chuva chuvava, as galinhas galinhavam, os galos galavam, a figueira figueirava, os ovos ovavam. E assim por diante. A essa altura, você deve estar reclamando e perguntando: cadê a história? Paciência, a história vai historijar.”
5. Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras (1987)
Em 1977, meses antes de sua morte, Clarice Lispector recebeu uma encomenda da fábrica de brinquedos Estrela para escrever doze textos que iriam compor um calendário – portanto, um por mês. Yara, Curupira, Pedro Malazarte, Negrinho do Pastoreio e outras figuras míticas das histórias orais são tema desses textos, contados pelo estilo característico da escritora.
“Será que a moral desta história é que o bem sempre vence? Bom, nós todos sabemos que nem sempre. Mas o melhor é a gente ir-se arranjando como pode e dar um jeito de ser bom e ficar com a consciência calminha”, escreveu.
Foi assim que Clarice recontou, a seu modo, onze lendas do folclore brasileiro, mais a história de Jesus (em dezembro), que ela intitulou como “Uma lenda verdadeira”. Os textos são breves, com contos curtos cuja estrutura fazia sentido em seu objetivo inicial – a composição de um calendário.
Dez anos depois, as histórias foram editadas em livro e lançadas com o título Como nasceram as estrelas e o subtítulo doze lendas brasileiras, invertidos pela Rocco na edição de 2014, ilustrada por Suryara.
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