Cecília Meireles e o começo de tudo

Cecília (Benevides de Carvalho) Meireles nasceu no Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 1901. Órfã de pai e mãe desde pequena, Cecília foi criada pela avó materna, Jacinta Garcia Benevides, que era açoriana (da ilha de São Miguel). Essa condição de orfandade acabaria sendo facilmente associada ao sentimento de ausência tão marcante em sua poesia e suas memórias de infância, fonte de criação do mundo mágico de suas histórias e de seus poemas para crianças.

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Aos dezoito anos, já formada na Escola Normal do Rio de Janeiro, atuando como professora primária, estreou na literatura com o livro de poemas Espectros (1919). Três anos depois, casou-se com o artista luso-brasileiro Fernando Correia Dias, que conheceu graças ao trabalho de ambos no jornalismo cultural, na “Revista da Semana” e na revista “Festa”.

Também parceiro artístico, Fernando ilustrava a “Página de Educação” que Cecília dirigia no “Diário de Notícias”, na primeira metade da década de 1930, espaço de reflexões importantes sobre a reforma pedagógica da época. Tiveram três filhas (três Marias): Maria Elvira, Maria Matilde e Maria Fernanda. São marcas de Cecília já reconhecíveis neste princípio de tudo: o amor pelo magistério, o estudo e a pesquisa, desdobrando-se mais adiante numa intensa atividade como conferencista; seu engajamento nos problemas da educação e da literatura infantil; uma disposição poética sempre aliada a um espírito livre.

A poeta e sua época

No contexto das experiências de ruptura do modernismo, a liberdade de pensamento de Cecília, especialmente na poesia, parecia um desencaixe. O cultivo de um léxico de abstrações e uma atmosfera evanescente são aspectos da sua poesia que alimentaram essa ideia de desajuste em relação a uma época de quebra da transcendência pela ironia e a coloquialidade. Vem daí que seja considerada muitas vezes pós ou neo-simbolista. Voar de avião, por exemplo, uma experiência radicalmente moderna, para Cecília era uma experiência de contemplação e mistério.

Com sua personalidade ao mesmo tempo independente e discreta, participou ativamente do cenário cultural e literário, como educadora, pensadora de clara posição nos debates pela modernização do ensino, pesquisadora das artes populares, das línguas e das religiões, cronista de jornal e rádio e tradutora.

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Era intensa a interlocução com seus contemporâneos, como Manuel Bandeira, Henriqueta Lisboa e Vinicius de Moraes, com os quais compartilhava, entre outras afinidades, o amor pela literatura infantil. No cenário internacional da lírica moderna (e da poesia para crianças), dialogava com a poeta chilena Gabriela Mistral.

Assim como bebia da fonte de diferentes culturas e continentes, Cecília se debruçou numa pesquisa de uma década sobre seu país, com seu folclore e suas histórias dentro da História, e se juntou a outros poetas brasileiros que na primeira metade dos anos de 1950 inscreveram Minas Gerais na geografia de suas obras. O Romanceiro da Inconfidência, épico lírico da Inconfidência Mineira considerado sua obra-prima, foi publicado em 1953, um ano depois de Madrinha Lua, de Henriqueta Lisboa, e um ano antes de Contemplação de Ouro Preto, de Murilo Mendes.

Viajante do mundo, do Ocidente ao Oriente, pelos países das Américas, da Europa, do Oriente Médio ou pelas ilhas do Atlântico, era atenta à atmosfera e às gentes de cada lugar que visitava. Suas experiências de viagem, que eram também experiências poéticas (e “anti-turísticas”), alimentaram grande parte de suas crônicas e sua poesia, como Doze noturnos da Holanda & O aeronauta (1952), Pistoia (1955), Poemas escritos na Índia (1961), Poemas italianos (1968, edição póstuma).

Hoje eu quero cantar o jovem Fayek Niculá,
Habitante de Guizé, ao pé do Nilo.
Era um menino de engenhosos dedos ágeis,
Que à hora da infância, em que apenas se brinca,
Aprendia a tecer, numa longínqua aldeia copta.
Quero cantar os olhos e dos dedos de Fayek Niculá.

Pastora de nuvens

O interesse por diferentes culturas e expressões do pensamento tanto se reflete na literatura de Cecília, que sua obra já foi lida sob lentes as mais variadas. Já foi lida à luz da lírica trovadoresca, do romantismo, pós-simbolismo, e da poesia espanhola do Século de Ouro. Já foi lida à luz do platonismo, do budismo, do hinduísmo e da mística órfica. De qualquer maneira, a própria poesia de Cecília não se cansa de fugir a todos esses “ismos”, como no poema “Biografia”, de 1957:

Repetirás o que me ouviste,

o que leste de mim, e mostras meu retrato

e nada disso serei eu.

Dirás coisas imaginárias,

invenções sutis, engenhosas teorias,

e continuarei ausente.

Se Carlos Drummond de Andrade se dizia “fazendeiro do ar”, Cecília era “pastora de nuvens”, amiga do “aeronauta”, esse ser estrangeiro no mundo, tão parecido com um anjo.

Perdoai-me chegar tão leve,

eu, passageiro

dos céus, de límpido vento.

Cecília e o estudo da literatura infantil

Cecília incursionou pela história da literatura infantil, oral e escrita, numa série de conferências que proferiu em 1949, num Curso de Férias promovido pela Secretaria da Educação de Belo Horizonte.

Sua visão era a de que as crianças que decidem quais livros vão perdurar, para além dos atrativos e das intenções educativas dos adultos. Considerando a hipótese de uma criança não ter contato com os livros na infância, ainda assim, ela ouvirá alguma lenda, alguma adivinhação, alguma história. Nisso também está a literatura, que precede o alfabeto e é uma só, dizia Cecília.

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Literatura infantil, para ela, não era a que se escreve para crianças, mas aquela que as crianças escolhem e têm prazer de ler, como “Alice no país das maravilhas”, uma história contada para três crianças, que só se tornou livro por vontade da menina Alice Liddel, que o recebeu como presente de Natal. 

Cecília defendia a formação de bibliotecas infantis e, por meio delas, o mapeamento das preferências das crianças sobre as leituras. Teve, ela própria, esse sonho realizado, embora por um curto período, ao criar a primeira biblioteca infantil do Rio de Janeiro, em 1934, no Pavilhão Mourisco (biblioteca extinta no Estado Novo).

Primeiros livros para crianças

Seu primeiro livro infantil, Criança meu amor, de 1924, com acento didático, reuniu, entre outros textos, uma série de mandamentos (por exemplo: “Devo amar a escola como se fosse meu lar”, “Devo amar e respeitar a professora como se fosse minha mãe”, “Devo fazer dos meus colegas meus irmãos”), e foi adotado pela Diretoria Geral de Instrução Pública do Distrito Federal.

Mais tarde, em 1937, viria A festa das letras, livro de poemas escrito em parceria com Josué de Castro, uma festa sonora e visual do alfabeto, que pretendia fugir do didatismo, mas, ao mesmo tempo, levava ainda um cunho didático na intenção de servir de “nutrição” às crianças.

Ninguém coma de menos

Nem trabalhe demais!

Tenha Nervos serenos!

Seja simples como o N

das coisas Naturais!

(…)

Memórias do mundo mágico da infância

Bebendo da fonte de suas primeiras memórias, Cecília também fez sua incursão afetiva pela própria infância (rodeada de mulheres) em Olhinhos de gato, originalmente publicado em capítulos na revista portuguesa “Ocidente”, entre 1939 e 1940.

Nessa narrativa poética com atmosfera de sonho, está o imenso cabedal simbólico e sentimental da sua poesia como um todo: melancolia, solidão, uma ausência sempre presente (ligada à morte da mãe), a percepção da fugacidade das coisas; figuras de santos, sombras vivas, habitantes minúsculos dos jardins, paisagens secretas no assoalho, revelações no avesso dos panos, caravanas de nuvens no céu: cada detalhe observado e sentido se agiganta numa dimensão mágica. Também ali as preces cantadas, as cantigas de roda, histórias de lobisomens, mulas-sem-cabeça e almas penadas de uma literatura “antes dos livros” que nutriu a menina Cecília aos cuidados de sua avó Jacinta e de sua ama.

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Essas memórias e atmosferas de infância, cheias de “coisas prodigiosas para ver e escutar”, que Cecília levou para o seu imaginário poético, reaparecem nos contos de Giroflê, Giroflá, de 1956, histórias também protagonizadas por personagens femininas e embebidas no folclore e cancioneiro brasileiros. Cecília repôs, assim, ao celeiro da literatura, o que a literatura lhe deu quando (ou desde) criança, pela tradição oral da contação de estórias (segundo ela, uma “profissão de amas e de avós”).

Uma festa alegre de atmosferas, rimas e figuras

Os poemas mais conhecidos de seu universo infantil surgiram pela primeira vez em 1964 (ano de sua morte), no livro Ou isto ou aquilo. Cinco anos depois, viria uma nova edição com mais de trinta poemas novos. Uma amiga das crianças e dos bichos (e dos santos) saboreia o mundo em suas palavras encantadas. Aquela “Olhinhos de gato” que foi a menina Cecília, agora dona das próprias cantigas, brinca verso a verso, numa festa alegre de ritmos, rimas e figuras que misturam vida e sonho com a leveza da ternura.

Eu queria pentear o menino

como os anjinhos de caracóis.

Mas ele quer cortar o cabelo,

porque é pescador e precisa de anzóis.

(…)

Depois de quase trinta anos de A festa das palavras, esta nova festa, nos poemas de Ou isto ou aquilo, anima uma brincadeira que parece natural, como uma dança incorporada, um marulho de ondas, uma primavera.

Ah! menina tonta,

toda suja de tinta

mal o sol desponta!

Uma brincadeira sonora com as palavras que dialoga com os poemas para crianças de sua contemporânea Henriqueta Lisboa em O menino poeta (1939-1941). Alegria de língua que pinta, borda e cabriola, língua viva como as coisas vivas misturadas às coisas da imaginação e do sonho: “A flor com que a menina sonha / está no sonho? / ou na fronha? / (…) / O vento sozinho / no seu carrinho. / De que tamanho / seria o rebanho?”.

A leveza da ternura, mesmo mergulhada nas sombras – “Tão longe, / tão bom, / tão frio / o claro som / do rio / sombrio!” – o tom amoroso e o ar de sonho das antigas cantigas de roda de Cecília também dialogam com o mundo poético da chilena Gabriela Mistral e suas crianças que cirandam, suas flores, seus bichos amigos e suas estrelas pequeninas como grãos.

Lembrando um termo certeiro da profa. Nelly Novaes sobre Cecília, que serve para essas outras poetas, que foram também mestras: uma “larga e maternal compreensão” das coisas. Uma compreensão maternal que tudo abraça: a noite, a morte, o visível e o invisível, mundos reais e mundos sonhados. 

O coração da dedicatória do primeiro livro infantil de Cecília (Criança meu amor) continua batendo vivo, hoje, valendo para novas infâncias:

Como te chamas? Que idade tens? Onde estás? Não sei. Não sei quem és, mas eu te amo.

Veja também: 10 livros infantis para crianças de até 2 anos.

10 poemas de Cecília Meireles para crianças

Conheça, a seguir, 10 poemas de Cecília Meireles para apresentar às crianças!

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1 – A canção dos tamanquinhos

Troc…troc…troc…troc…

Ligerinhos, ligerinhos,

Troc…troc…troc…troc…

Vão cantando os tamanquinhos…

Madrugada. Troc…troc…

Pelas portas dos vizinhos

Vão batendo, troc…troc…

Vão cantando os tamanquinhos…

Chove. Troc…troc…

No silêncio dos caminhos

Alagados, troc…troc…

Vão cantando os tamanquinhos…

E até mesmo, troc…troc…

Os que têm sedas e arminhos,

Sonham – troc…troc…troc…

Com seu par de tamanquinhos…

2 – Rio na sombra

Som

frio.

Rio

sombrio.

O longo som

do rio

frio.

O frio

bom,

do longo rio.

Tão longe,

tão bom,

tão frio

o claro som

do rio sombrio!

3 – A língua do nhem

Havia uma velhinha

que andava aborrecida

pois dava a sua vida

para falar com alguém.

E estava sempre em casa

A boa da velhinha,

Resmungando sozinha:

nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

O gato que dormia

no canto da cozinha

escutando a velhinha,

principiou também

a miar nessa língua

e se ela resmungava

o gatinho a acompanhava:

nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

depois veio o cachorro

da casa da vizinha,

pato, cabra e galinha,

de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam

a falar noite e dia

naquela melodia

nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

De modo que a velhinha

que muito padecia

por não ter companhia

nem falar com ninguém,

ficou toda contente,

pois mal a boca abria

tudo lhe respondia:

nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…

4 – Pescaria

Cesto de peixes no chão.

Cheio de peixes, o mar.

Cheiro de peixe pelo ar.

E peixes no chão.

Chora a espuma pela areia,

na maré cheia.

As mãos do mar vêm e vão,

as mãos do mar pela areia

onde os peixes estão.

As mãos do mar vêm e vão,

em vão.

Não chegarão

aos peixes do chão.

Por isso chora, na areia,

a espuma da maré cheia.

5 – A moda da menina trombuda

É a moda

da menina muda

da menina trombuda

que muda de modos

e dá medo.

(A menina mimada!)

É a moda

da menina muda

que muda

de modos

e já não é trombuda.

(A menina amada!)

6 – Bolhas

Olha a bolha d’água

no galho!

Olha o orvalho!

Olha a bolha de vinho

na rolha!

Olha a bolha!

Olha a bolha na mão

que trabalha!

Olha a bolha de sabão

na ponta da palha:

brilha, espelha

e se espalha.

Olha a bolha!

Olha a bolha

que molha

a mão do menino:

A bolha de chuva na calha!

7 – O mosquito escreve

O mosquito pernilongo

trança as pernas, faz um M,

depois, treme, treme, treme,

faz um O bastante oblongo,

faz um S.

O mosquito sobe e desce.

Com artes que ninguém vê,

faz um Q,

faz um U e faz um I.

Esse mosquito

esquisito

cruza as patas, faz um T.

E aí,

se arredonda e faz outro O,

mais bonito.

Oh!

Já não é analfabeto

esse inseto,

pois sabe escrever seu nome.

Mas depois vai procurar

alguém que possa picar,

pois escrever cansa,

não é, criança?

E ele está com muita fome.

8 – O último andar

No último andar é mais bonito,

do último andar se vê o mar.

É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:

custa-se muito a chegar.

Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira

sobre o último andar.

É lá que eu quero morar.

Quando faz lua, no terraço

fica todo o luar.

É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem,

para ninguém os maltratar:

no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:

tudo parece perto, no ar.

É lá que eu quero morar:

no último andar.

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9 – Sonho de Olga

A espuma escreve

com letras de alga

o sonho de Olga.

Olga é a menina que o céu cavalga

em estrela breve.

Olga é a menina que o céu afaga

e o seu cavalo em luz se afoga

e em céu se apaga.

A espuma espera

o sonho de Olga.

A estrela de Olga chama-se Alfa.

Alfa é o cavalo de estrela de Olga.

Quando amanhece, Olga desperta

e a espuma espera

o sonho de Olga,

a espuma escreve

com letras de alga

a cavalgada da estrela Alfa.

A espuma escreve com algas na água

o sonho de Olga…

10 – Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,

ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,

ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,

quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa

estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,

ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…

e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,

se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda

qual é melhor: se é isto ou aquilo.