Depois de um vácuo de quase dez anos e exemplares negociados por uma fortuna em sebos, o livro Onde Vivem os Monstros, do autor norte-americano Maurice Sendak, está de volta ao Brasil, em edição da Companhia das Letrinhas. A obra é um marco na literatura mundial. Fundou, para pesquisadores da área, o livro ilustrado contemporâneo. Assinantes do Clube de Leitura Quindim receberam o lançamento neste mês.
Onde Vivem os Monstros foi lançado pela primeira vez em 1963, nos Estados Unidos. Nele, Sendak conta a história de Max, um menino que se veste de lobo, apronta até tirar a mãe do sério e é mandado para o quarto sem comer. Lá, uma floresta nasce e cresce. Max pega um barquinho e vai para onde vivem os monstros, onde é coroado rei.
A obra é um livro ilustrado porque palavras e imagens se interrelacionam para contar a história, como em uma dança, conta o escritor, ilustrador e pesquisador Odilon Moraes. Soma-se a isso o livro como suporte, essencial para a narrativa. Se não bastasse, o Sendak também inovou na forma como tratou a infância e as contradições humanas (leia mais abaixo).
No Brasil, Onde Vivem os Monstros foi lançado pela primeira vez em 2009, pela editora Cosac Naify, que encerrou os trabalhos em 2015. Houve, ainda, uma segunda edição, em 2014. Desde então, o livro só era encontrado em sebos e sempre a preços altíssimos. O motivo para o livro não ter entrado em outro catálogo: o rigor com que, primeiro Sendak e agora a Sendak Foundation, tratam as publicações das obras (leia mais abaixo).
Junto do clássico da literatura infantil, a Companhia das Letrinhas traz outras duas obras de Sendak: Na Cozinha Noturna e Lá Fora, Logo Ali.
Confira, a seguir, a conversa com Odilon Moraes sobre a obra Onde Vivem os Monstros:
Bia Reis: Por que Onde Vivem os Monstros é considerado um marco na literatura?
Odilon Moraes: Esse livro é considerado um paradigma porque é um encontro de vários pensamentos. Primeiro, o pensamento do objeto, quer dizer, do livro ilustrado como suporte. Depois, pela forma como texto e imagem se relacionam, como caminham juntos em uma espécie de dança, que é uma característica do livro ilustrado. E tem ainda uma terceira questão, que é a própria literatura infantil.
A geração da qual fazia parte o Sendak não entendia de crianças e passou a escrever para elas – e essa contribuição acho particularmente incrível. Até então, a literatura infantil tinha um porquê, seja para o bem ou para o mal.
No século 17, com Perrault (Charles Perrault, 1628-1703), a literatura infantil começou já fazendo um recorte: isso é para criança, isso não é para criança; isso é adequado, isso não é adequado. Era uma literatura que sempre passava por um filtro, fossem os pais, professores ou educadores. Havia um padrão que ditava as regras. A turma do Sendak, e ele especificamente, dizia que não sabia o que era trabalhar para criança. E – olha que incrível – o fato de não saber trouxe de alguma maneira uma inocência, porque não havia julgamento.
Veja também: Livro ilustrado: uma mistura entre palavras, imagens e objeto.
BR: De que forma o Sendak desafiou a literatura infantil?
OM: Onde Vivem os Monstros e os outros dois livros da trilogia desafiaram vários cânones da literatura infantil, e um deles é não assustar a criança, não falar sobre o medo. Em Lá Fora, Logo Ali, Sendak traz para a história um fato real que o atormentou quando criança. Ele lembra de um menino que foi raptado e encontrado morto na floresta. Durante dias, a notícia foi reportada pelos jornais, e ele se perguntava se isso havia ocorrido com um menino loiro o que poderia acontecer com ele. Sendak era um típico garoto do subúrbio, filho de imigrantes. Em seus livros, ele fala sobre a falta de espaço para expor os seus medos.
BR: Quero voltar para a dança entre imagens e palavras. Você pode contar como isso acontece em Onde Vivem os Monstros?
OM: Onde Vivem os Monstros é a história de um menino muito ativo, que está na fase de querer aprontar, e a mãe, não aguentando, o manda para o quarto sem comida. Ela diz: vira bicho aí, para de aprontar. Nesse instante, a criança é deixada sozinha com seus conflitos e tem de dar conta, e esse processo também ocorre nos dois outros livros da trilogia. Sendak dizia que, na infância, não tinha um adulto com quem pudesse conversar. E as coisas que os adultos achavam que não eram coisas de crianças simplesmente não eram faladas. Mas as crianças sabiam que existiam e iam atrás.
No quarto, o menino vai virando uma fera e, a medida em que isso acontece, as imagens vão crescendo, ganhando o espaço até preencher as páginas duplas, e as palavras vão desaparecendo – é como se elas pertencessem ao universo da civilização. Os monstros que aparecem são o próprio Max e, por isso, mesmo com os monstros, ele está sozinho. As páginas da floresta, apesar de não terem texto, são as mais barulhentas. Na hora em que Max deixa de ser monstro ele precisa do outro, e nesse momento a palavra começa a voltar.
É um livro sobre a relação humana. E tem uma coisa bonita – e isso foi a Carolina (Carolina Moreyra, escritora de livros infantis e esposa do Odilon) que percebeu. Você acha que a mãe está fora da história, mas ela não está. No final, é ela quem deixa o prato de comida quentinha para o filho. A mãe também explodiu, também virou bicho e também sentiu a falta dele. E, assim como o Max volta para a mãe, a mãe também volta para o filho. Olha que bonita é essa separação e esse encontro. Em uma entrevista, Sendak disse que os adultos também erram, também sofrem com isso e também podem voltar.
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BR: Onde Vivem os Monstros foi lançado pela primeira vez em 1963, nos Estados Unidos. Como o livro foi recebido na época?
OM: Ao mesmo tempo em que ganhou a Medalha Caldecott (criada em homenagem ao ilustrador britânico Randolph Caldecott, do século 19), o livro foi trucidado pelos pares. Uma parte dos autores conhecidos na época dizia que o livro não era para crianças, que era um absurdo, que era horrível do ponto de vista da relação do menino com a mãe. Como uma mãe poderia prender um filho e deixá-lo sem comer?
BR: Apesar de ter sido escrito em um período histórico em que havia poucos estudos sobre o livro ilustrado, Sendak conseguiu fazer um livro tão sofisticado…
OM: Não havia, mas, como o próprio Sendak diz, o Caldecott já tinha inventado. Nos anos 1980, o Sendak virou um estudioso do assunto e publicou um livro teórico chamado Caldecott e Companhia (Caldecott and Co: Notes on Books and Pictures, de 1989), em que ele escreve sobre todos os seus ídolos na ilustração. E você vê como ele já tinha uma perspectiva do trabalho da ilustração como escrita.
Ele fala sobre sequência, sobre como fazer um livro ilustrado é pensar num arranjo de sequências, é dar ritmo. Quando a ilustração vai crescendo em Onde Vivem os Monstros, ele está usando essa teoria. O livro ilustrado é tempo, não é espaço. A história dura o tempo do livro, então as imagens também vão criando o ritmo dentro dessa contação. Os primeiros teóricos começaram a escrever sobre isso nos anos 1970, 80. Mas para o Sendak as aulas já haviam sido dadas pelo Caldecott.
BR: Apesar de ter sido publicado nos Estados Unidos nos anos 1960, o livro só chegou ao Brasil em 2009. Como foi a repercussão de uma obra tão importante por aqui?
OM: Eu tenho uma história por trás disso, de bastidores. O livro chegou pela Cosac (editora Cosac Naify, 1996-2015) em uma época em que eu estava muito próximo do Augusto (Augusto Massi, editor-chefe). Eles iam publicar o livro Para Ler o Livro Ilustrado, da Sophie Van der Linden, e foram me consultar. Falei que o livro era maravilhoso, mas havia um problema: usava como exemplos livros que não tínhamos no Brasil. Como a gente iria publicar um livro sobre livros usando exemplos que não temos, que a gente não conhece? Augusto me disse então: vamos publicar os clássicos!
Em uma espécie de consultoria, fiz uma lista de autores estrangeiros importantes para o livro ilustrado e de suas principais obras. Coloquei vários, e Onde Vivem os Monstros estava nessa lista. Contei também que uma amiga havia traduzido o livro para a Companhia das Letrinhas, mas que a publicação não saíra por causa do papel. O Sendak não havia aceitado o papel. A Cosac então foi atrás para publicar.
E houve então uma grande coincidência. Chegou a notícia de que haveria a estreia do filme Onde Vivem os Monstros no Brasil, no mesmo ano. Pode parecer que o livro foi publicado para aproveitar a chegada do filme, mas não foi isso. Fizeram uma grande tiragem, de 15 mil exemplares – o comum eram 3 mil –, e esgotou. A Bel (Isabel Lopes Coelho, então editora do núcleo infantil e juvenil da Cosac) brinca que a gente publicou um livro do Sendak e que precisaríamos fazer um livro sobre como publicar um livro do Sendak (risos).
BR: Por fim, Odilon, qual livro ilustrado brasileiro teve aqui um papel tão importante como Onde Vivem os Monstros?
OM: Na língua inglesa, o livro ilustrado tem dois importantes marcos: o primeiro boom, no século 19, e o segundo, nos anos 1960. É como se fossem duas épocas de ouro. Sendak disse uma das coisas mais bonitas que já ouvi de um autor. Ele descobriu que o livro ilustrado era o seu território, era onde ele ganhava ou perdia suas guerras. Para alguns, o território de batalha, de resistência, é a fotografia, a dança; para ele, era o livro ilustrado.
No Brasil, eu destacaria o Ziraldo, com Flicts (1969), embora ele não tenha uma consciência desse território, como o Sendak teve. Ziraldo nunca se denominou como autor de livros ilustrados, mas sim cartunista. Mas, para mim, o Flicts foi uma experiência fundante.
Também coloco como fundamental no Brasil o Ida e Volta (1976), do Juarez Machado, um livro só de imagens. Mais para frente temos muitos outros livros, muitos outros autores: Vizinho, Vizinha (Roger Mello, Graça Lima e Mariana Massarani, 2002), o Bárbaro (Renato Moriconi, 2013), muitas obras da Angela-Lago. Há clássicos contemporâneos como temos os clássicos dos anos 1960. O que ainda não temos é essa história escrita. Talvez a história do livro no Brasil ainda tenha de apontar esses marcos.
“Era como uma cartinha em uma garrafa jogada ao oceano”
Limitação de papel, em qualidade e quantidade, e padrão de impressão das ilustrações. Essas foram algumas das dificuldades enfrentadas pelas editoras Cosac Naify e Companhia das Letrinhas, que trouxeram as obras de Maurice Sendak para o Brasil. Relatos de rigor na aprovação são comuns. E a alegria de publicar livros de um autor tão importante também.
Publisher de conteúdo da área de Literatura na FTD Educação, Isabel Lopes Coelho era editora do núcleo infantil e juvenil da Cosac quando Onde Vivem os Monstros foi publicado pela primeira vez, em 2009.
“Havia o mito de que o autor era muito exigente, que selecionava as editoras que iriam publicar seus livros. Falei, bom, vamos arriscar. Tinha um contato na editora dele e passamos a conversar. Ficou claro no início que não era uma questão financeira, o quanto pagaríamos pela licença, mas sim de qualidade”, relembra.
Isabel percebeu que Sendak teria de conhecer a Cosac, os livros publicados, e entender por que o dele era importante para a editora. “A cada seis meses eu fazia uma caixa com as obras publicadas, escrevia uma carta e mandava para ele. Era como uma cartinha em uma garrafa jogada ao oceano. Nunca tive resposta. Esse de seis em seis meses demorou quatro anos. Um dia cheguei para trabalhar e abri um e-mail que dizia que o Sendak tinha topado iniciar uma negociação.”
A negociação não foi fácil. Ele queria que todo o processo gráfico fosse acompanhado e que a Cosac usasse o material original, um papel específico, lombada da capa em tecido. “Isso foi bem difícil. Éramos uma editora brasileira com recursos limitados.”
Outra dificuldade é que a editora de Sendak não enviou o arquivo digital – forma como as editoras brasileiras já trabalhavam na época. Resolvida a questão, após indas e vindas e provas, a edição foi aprovada.
“Foi uma satisfação muito grande para toda a equipe da Cosac. Foi um investimento de tempo e recursos, especialmente a primeira tiragem. Eu ficava torcendo para que as pessoas entendessem o que significava o livro e gostassem da leitura, porque, no fim, é isso que importa.”
Estante Quindim
Conheça a nova edição do livro Onde Vivem os Monstros já enviada pelo Clube Quindim.