Quando se fala em cuidado feminino, é muito comum que as pessoas pensem somente em unhas feitas, cabelo bem tratado, maquiagem e quem sabe até uma massagem relaxante. E esses são hábitos válidos para aquela pessoa que gosta deles, que os deseja e tem condições de mantê-los, mas nem de longe representam todas as questões envolvidas na saúde integral da mulher.

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Os cuidados com a saúde da mulher tampouco estão restritos ao diagnóstico e o tratamento de doenças tipicamente femininas, como aquelas relacionadas ao aparelho reprodutor, por exemplo. Se a visão integral da saúde busca cuidar das dimensões físicas, mentais, sociais e espirituais de qualquer indivíduo, quando se trata de uma mulher é preciso ampliar ainda mais esse olhar.

A luta pelo direito de ser dona do próprio corpo

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Estamos em pleno século XXI, ano de 2022, e somente no mês de agosto foi aprovado pelo Senado brasileiro um projeto de lei que busca permitir que mulheres passem por uma esterilização voluntária, a chamada laqueadura de trompas, sem que seja necessário o consentimento do seu cônjuge.

Ou seja, nós ainda estamos discutindo se está ou não de acordo com a lei algo que deveria ser um direito desde sempre: mulheres decidirem o que fazer com seus próprios corpos, especificamente no que diz respeito à decisão de ter ou não filhos, sem que seja preciso que um homem esteja de acordo com suas decisões.

Além de questões como essa, há ainda os diferentes tipos de abuso e violência aos quais estão submetidas as mulheres de todas as idades e classes sociais, em todo o país. Sabemos que todas nós estamos sujeitas a isso, visto que a violência contra a mulher é sistematizada em nossa sociedade, mas é urgente reconhecer que o problema se torna proporcionalmente mais grave entre as mulheres negras e aquelas em situação de pobreza e vulnerabilidade social.

Justamente por ser considerado quase que uma ousadia cuidar de si mesma é que a saúde integral da mulher é um ato político. A mulher que entende seus direitos, não aceita mais sofrer calada e procura ajuda está abrindo portas e encorajando tantas outras que estão na mesma situação e se veem sem esperança de que o cenário possa mudar.

Todo esse movimento, tão fundamental e potente, precisa ter uma resposta compatível por parte da sociedade, do governo e dos órgãos de acolhimento, prevenção e combate aos diferentes tipos de violência contra a mulher. Do contrário, tão cedo não veremos mudanças naquilo que estamos cansadas de ver: a culpabilização da vítima.

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O papel da atenção primária na manutenção da saúde integral da mulher

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A atenção primária oferecida nas unidades de saúde, especialmente as do SUS, mas também as da rede privada, com frequência identifica sinais de violência e agressão contra mulheres e crianças.

Sendo assim, muito além de diagnosticar e tratar doenças, os profissionais de saúde acabam por efetuar também o encaminhamento para outros níveis de atendimento, como Conselhos Tutelares, delegacias, Centros de Referência da Assistência Social (CRAs) e outros órgãos.

Técnicas e conhecimentos atualizados são fundamentais para a realização de todo atendimento, mas é o olhar humanizado que realmente faz a diferença. A conexão e o vínculo que podem se estabelecer entre as equipes de saúde e as pacientes permitem que sejam mantidos diálogos sinceros e profundos sobre o que acontece na realidade dessas mulheres. Assim, além dos cuidados com a saúde física, é possível falar de saúde mental, violência de gênero, educação sexual, abuso e vários outros temas.

Segundo os especialistas, o grande desafio fica por conta da chamada intersetorialidade. Como as vítimas muitas vezes são encaminhadas de uma instituição para a outra até conseguir uma solução definitiva para seu problema, elas repetidamente têm de relatar o que aconteceu e muitas vezes são intimidadas, têm seus sentimentos desconsiderados e são estigmatizadas. Essas por si só são outras formas de violência contra quem já está sofrendo.

A violência contra a mulher em ambientes de saúde, como clínicas e hospitais, também é uma realidade que precisa urgentemente ser combatida. É inadmissível que a pessoa seja vitimizada em um local onde deveria estar sendo cuidada e amparada.

Além da violência obstétrica, são diversos os casos em que uma vítima de estupro ou agressão é questionada sobre as decisões que tomou e que culminaram no fato. Vemos desde questionamentos sobre as roupas que usava, os locais que frequentava e os motivos pelos quais “permitiu” que o agressor se aproximasse, além de vários outros absurdos. O agressor, por sua vez, não é inquirido com a mesma dureza.

Por isso, a capacitação dos profissionais de saúde e daqueles que atuam nos demais órgãos de atendimento à mulher para garantir um atendimento competente e eficaz é fundamental, mas não é tudo. É preciso enxergar a mulher como um ser humano completo e complexo em seus desejos, necessidades e vulnerabilidades, e tratá-la como tal.

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Humanização no atendimento e educação: de mãos dadas pela mudança

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Como dissemos lá no começo do artigo, a saúde integral considera não só as dimensões físicas e mentais, mas também sociais e espirituais do ser humano. Sendo assim, questões como racismo, aporofobia (aversão aos pobres), transfobia e tantas outras maneiras de discriminar alguém precisam ser ativamente combatidas por todos nós.

A compreensão da dor do outro, o exercício de se colocar em seu lugar, o afeto na lida diária com indivíduos com as mais diferentes histórias é o que torna o atendimento humanizado. É enxergar o paciente para além de um corpo doente ou ferido que precisa de atendimento: é ver a pessoa, o ser humano, que sofre e precisa ser amparado. É olhar atentamente para aquilo que nos aproxima, e não para o que pode vir a nos diferenciar em nossas histórias individuais.

Se por um lado é preciso capacitar os profissionais para que jamais ajam discriminatoriamente com quem quer que seja, além de intervir caso percebam outra pessoa cometendo esses crimes, por outro é fundamental ampliar o acesso às fontes de informação confiável e de qualidade, à educação ampla e ao conhecimento sobre o próprio corpo por parte da população em geral.

Uma base sólida de conhecimento, associada a dados e orientações confiáveis é capaz de criar e fortalecer um raciocínio crítico, de maneira a garantir que as mulheres tomem de vez as rédeas sobre suas próprias vidas.

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Violência, abuso e gravidez na adolescência

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Levantamentos e pesquisas sobre saúde no Brasil comprovam aquilo que já imaginamos: quanto piores as condições sociais e econômicas, e quanto menor for o grau de instrução, maiores os índices de gravidez na infância e na adolescência com todos os riscos que são decorrentes disso.

A educação sexual, que pode prevenir tanto a gravidez, quanto abusos e Infecções Sexualmente Transmissíveis, é uma ferramenta poderosa a favor do cuidado com a saúde das mulheres. No entanto, ela enfrenta dois adversários muito difíceis: a pobreza e o conservadorismo.

A pobreza dificulta o acesso à informação, aos recursos e profissionais que poderiam mudar o curso de uma vida. O conservadorismo, que acha que educação sexual existe para ensinar crianças a fazerem sexo, não enxerga (ou não quer enxergar) os índices altíssimos de estupro de vulnerável, casamento infantil e muito mais. No caso das mulheres que residem no interior, nas áreas mais remotas e isoladas do nosso país, isso é ainda mais sério.

Assim, o acompanhamento de mulheres por profissionais de saúde, iniciado na infância e permanecendo continuamente até a terceira idade, de maneira que estes informem corretamente sobre cuidados com o corpo, pode ajudar a minimizar situações como essa.

A prevenção da gravidez não planejada, das doenças e dos abusos pode ocorrer tanto nos ambientes de cuidados com a saúde quanto por meio de grupos na escola, na igreja e em outras entidades sociais frequentadas pelas mulheres.

Os jovens, principalmente, precisam desenvolver a consciência de que é fundamental estabelecer confiança, igualdade e respeito em seus relacionamentos, o que inclui seus parceiros sexuais. Assim, pode-se começar a pensar em uma realidade em que abusos e violências diversas efetivamente não sejam tolerados.

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O papel do homem na saúde integral da mulher

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A revisão dos conceitos que colocam sob a responsabilidade da mulher até mesmo aquilo que lhe acontece de ruim é urgente, urgentíssima. De muito pouco adianta ensinar as meninas a cuidarem de seus corpos, usarem preservativo e frequentarem o médico regularmente se os meninos continuarem sendo criados para vê-las como objetos, como uma propriedade com a qual podem fazer o que quiserem.

A responsabilidade por fazer essa transformação acontecer é de todos nós. Ainda que sejamos as principais cuidadoras, os homens têm um papel fundamental nessa mudança tão necessária, principalmente porque é neles que os meninos vão se espelhar ao decidir como se comportar com relação às meninas.

Então, se você é homem e quer que a sua filha seja bem tratada e respeitada pelo futuro namorado e marido, faça a sua parte. Não encoraje comportamentos machistas por parte dos seus amigos, não compartilhe fotos de mulheres com pouca ou nenhuma roupa, não se aproveite da menina que bebeu demais.

O abusador não é um monstro. Ele é o amigo, o primo, o irmão, o colega de trabalho. O camarada com quem você joga bola. Intervenha, não se cale. Quando a questão é violência contra mulheres e crianças, não fazer nada já é fazer alguma coisa.