Em 1892, a família Potter decidiu tirar uns dias de descanso fora da cidade. Beatrix, então uma jovem de 26 anos, aproveitou o ambiente campestre que tanto amava para se dedicar aos seus hobbies preferidos: escrever e pintar. Inspirada pela natureza ao seu redor, ela criou pequenas histórias em que os animais agiam como humanos, expressando sentimentos tanto em texto, quanto em belíssimas aquarelas, que enviava para amigos da cidade. Pode-se dizer que, a partir dessas cartas despretensiosas, nasceram ideias de obras magníficas que, mais tarde, se tornaram muito populares, impressionando gerações ao redor do planeta.
Uma delas em especial. Destinada ao filho de um casal de amigos, Potter enviou um cartão com os seguintes dizeres: “Meu querido Noel, não sei o que escrever para você, então vou lhe contar uma história sobre quatro coelhinhos que se chamavam Flopsy, Mopsy, Cottontail e Peter”.
Assim, nasceu um dos livros infantis mais famosos do mundo: A história de Pedro Coelho (The tale of Peter Rabbit). A obra, que já vendeu mais de 250 milhões de cópias, narra as peripécias de um coelhinho curioso que, a despeito dos conselhos da mãe, se aventura por um “perigoso” jardim em busca de comida e quase acaba, ele mesmo, se tornando a refeição.
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Quem foi Beatrix Potter?
Desde a juventude, Helen Beatrix Potter, nascida em 28 de julho de 1866, em South Kensington, Londres, era conhecida por sua conexão com a natureza e seu interesse pela ciência, o que lhe proporcionou um olhar atento para os detalhes de cada animal, pela arte naturalista e pela predileção por cenários bucólicos.
Incentivada por seu pai, também um amante das artes, da fotografia e da ciência, ela pintava a natureza e escrevia sobre os animais que criava – como Peter, o próprio coelho que, mais tarde, inspiraria seu personagem mais famoso – além de outros que cruzavam o seu caminho ou que habitavam os cantinhos de sua casa, como ratos, sapos e morcegos.
Mas embora as ideias fluíssem da imaginação para o papel, o caminho até o grande público não foi fácil. Potter precisou colocar seus manuscritos embaixo do braço e sair pessoalmente oferecendo a diversas editoras. O que, veja bem, no início do século 20, não era uma tarefa das mais simples. Afinal, ela era uma mulher jovem – e embora da alta sociedade-, sem experiência nenhuma em um campo dominado por escritores homens.
“Quando olhamos para a história dos livros infantis, percebemos que, de uma maneira geral, ela é praticamente só contada por homens. E aí, muito sensível, vem Beatrix, aristocrata sim em certa medida, mas com uma janela aberta para a imaginação naquele ambiente bucólico em que ela vivia na Inglaterra. E ela consegue enxergar essa potência que os bichos têm de explicar sentimentos humanos”, aponta o editor e professor Paulo Verano, cofundador da Edições Barbatana, que hoje publica algumas das obras de Potter no Brasil.
Doutor e Mestre em Ciência da Informação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Paulo conta que, de certa forma, Potter foi uma transgressora de seu tempo. “Ela vivia em um momento de grandes batalhas para não ceder às convenções da época, de se blindar contra casamentos arranjados e de custear a sua própria vida”, diz ele.
De fato, Beatrix não era o tipo de pessoa que se deixava abater ou domar pelos padrões conservadores. Ela persistiu em sua jornada e, em 1901, depois de ser recusada por seis editoras, decidiu imprimir, com recursos próprios e em preto e branco, 250 cópias da história do coelho levado. “Rapidamente, ela se envereda pelo universo da edição, se autopublica antes mesmo de ser publicada por outros. Nesse aspecto, ela também é uma figura muito interessante: uma autora completa, que escreve, ilustra, distribui e negocia. Muito inovadora!”, comenta Verano.
Mas, enfim, a consagração veio no ano seguinte: aos 32 anos, Potter conseguiu finalmente publicar seu primeiro livro, A história de Pedro Coelho, por meio de uma editora reconhecida, a britânica Frederick Warne & Co. E não demorou muito para que o pequeno livro se tornasse um grande sucesso! O êxito foi tamanho que, ao longo do tempo, outros 20 livros se juntaram à história do coelho curioso na estante de crianças do mundo todo.
Por que as criações de Beatrix Potter são importantes na literatura?
Para Paulo Verano, editor das obras de Beatrix Potter no Brasil, o grande diferencial da autora é sua habilidade em criar conexões pouco óbvias entre os animais e a vida humana. “Ela consegue observar a natureza e levar para as páginas o cachorro dela, que aparece em A história de Jemima Patapocinha; ou a própria Jemima, que era uma pata da família…Mas ela faz isso de um jeito inteligente. Aqueles personagens não são apenas adornos, não são crianças em miniatura; são complexos”, diz o editor.
E acrescenta: “Em Pedro Coelho, por exemplo, temos quase uma jornada do herói. Ele desobedece à mãe, sai, vive uma série de aventuras, enfrenta percalço e depois retorna modificado”. Tudo isso sem recorrer ao tatibitati, sem a condescendência que muitos autores de literatura infantil dão aos seus personagens. Paulo destaca que Beatrix subverte essa lógica ao apresentar os bichos em aquarelas com rigor estético e científico, vestindo roupas aristocráticas, mas mantendo comportamentos animalescos genuínos.
“Veja como isso é potente: a raposa está interessada em comer a pata, o esquilo perde um pedaço do rabo, o pai do Pedro Coelho vira torta. Em A história da senhora Tiggy Tipico, ela lava as roupas das ovelhas, mas, se lermos com mais atenção, percebemos que, na altura do pescoço, as roupas têm marcas vermelhas, que é onde elas são atacadas pelos lobos. Há muitas camadas, né? E acho que, às vezes, a obra flerta com elementos assombrosos”, diz o pesquisador.
“Nesse sentido, acho que ela prega peças em quem está lendo. Se pensarmos na vida selvagem, é a vida como ela é. Alguns teóricos falam sobre a ideia de preservar os filhos do mundo real, mas a Beatrix não vai por esse caminho. Na aparência, sim, mas na realidade, não. Então, há ali uma espécie de ânsia, uma vontade de dizer: ‘olha, a vida traz desafios também’”, reflete Verano.
Além disso, a autora abriu espaço para que outras mulheres escritoras e ilustradoras pudessem caminhar na literatura, trazendo um caráter progressista à sua obra, sempre marcada pelas tensões que ela via e vivia em sua época. Isso transparece em pequenos detalhes, como na cena de A história dos dois ratinhos travessos, em que os personagens depredam uma casa vitoriana, simbolizando a quebra das estruturas sociais do seu tempo.
Mas o que torna a obra de Beatrix Potter um clássico?
Primeiro, é importante entender que o que essencialmente torna um livro um clássico é sua capacidade de tratar de temas universais, aqueles que falam sobre quem somos, sobre sentimentos e questões inerentes ao ser humano. E isso, Beatrix Potter faz com maestria.
“Ler suas perturbadoras e atemporais histórias hoje, tão relevantes quanto quando as escreveu, há mais de cem anos, é um raro e prazeroso presente, tão imenso quanto apreciar suas lindas e detalhadas pinturas. O que encanta é justamente a ironia divertida que perpassa as histórias, obtida com esse contraste entre as encantadoras aquarelas da autora que pontuam quase cada frase (em livrinhos pequenos que cabem nas mãos infantis) e a absoluta recusa de qualquer sentimentalismo”, escreve Ana Maria Machado, autora e curadora do Clube Quindim, em seu prefácio para a obra A história de Jemima Patapocinha, que traduziu para o português para a Edições Barbatana.
“Conhecer esses clássicos, como a obra de Beatrix Potter, nos coloca em conexão com outros mundos – no caso dela, com a Inglaterra vitoriana – mas, ao mesmo tempo, nos conecta com questões que são humanas desde sempre e que vão continuar sendo”, acredita Verano. Ele convidou nomes importantes da literatura infantil brasileira – como Lalau, Janaina Tokitaka, Rosana Rios, Elza Mendes, além de Ana Maria Machado e peter O sagae (curadores do Quindim) – para traduzir as obras da autora.
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Outro ponto interessante do legado de Beatrix é que ela foi inovadora ao enxergar sua obra para além das páginas do livro. Em 1903, Potter criou bonecos de Pedro Coelho, jogos de tabuleiro, livros de colorir, jogos de chá e roupinhas inspiradas em suas criações. Se hoje trata-se de um recurso conhecido de mercado, na época era bastante ousado, sendo um dos primeiros personagens de livros a ter produtos patenteados – e que continuam vendendo bem até hoje!
Por fim, Potter também se preocupava com a materialidade do livro, pensando no formato, na impressão e em como ele chegaria às pequenas mãos das crianças. “Ela foi a primeira autora – e interessante que seja uma mulher -, a pensar na materialidade do livro. Havia livros ilustrados antes de 1902, mas foi ela quem pensou no formato pequeno, na ilustração, no texto e na diagramação, o que considero muito inovador”, destaca o pesquisador.
Verano lembra que, quando decidiu publicar os livros dela em sua editora, optou por preservar a edição menor, mantendo a tradição da obra de Beatrix. “Num momento em que os livros para criança são quase sinônimo de obras grandes, hiper coloridas, ela traz uma economia de formato, há um minimalismo interessante”, comenta Paulo.
Todas essas características importantes da autora e de seu legado a fizeram ser reverenciada por outros artistas ao longo do tempo. Autores como Maurice Sendak (Onde Vivem os Monstros) e J.K. Rowling (Harry Potter) já declararam que se inspiraram em Beatrix. E o prestígio se estende além do meio literário.
Suas obras já ganharam diversas versões em séries animadas, como Peter Rabbit e Seus Amigos (1992); em filmes, como Pedro Coelho (2018), e Pedro Coelho 2: O Fugitivo (2021) e no teatro. Além disso, sua vida foi tema de filmes, como Miss Potter (2006), e documentários, como Beatrix Potter: The Secret Life Of A Victorian Genius (2022).
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Livros, fazendas e ovelhas: o legado de Beatrix Potter
Todo esse sucesso proporcionou à autora uma vida tranquila, permeada pelos livros, pinturas e movida pelo ativismo ambiental. Na vida pessoal, Beatrix não cedeu aos casamentos arranjados por seus pais e, aos 39 anos, se apaixonou por seu editor, Norman Warne. No entanto, quando decidiram ficar noivos, Warne faleceu. Potter então se recolheu com seus animais e suas aquarelas, refugiando-se em uma fazenda que comprou no norte da Inglaterra, que se tornou seu ateliê.
Mais tarde, em 1913, casou-se com um advogado local, William Heelis, comprou outros lotes de terra e ficou conhecida por sua prolífica criação de ovelhas premiadas. Seu intuito sempre foi de preservar os territórios que comprava – e que depois seriam doados ao National Trust (organização de conservação do Reino Unido que preserva locais históricos, paisagens naturais e propriedades culturais).
Em 1943, aos 77 anos, o mundo se despediu de Miss Potter, como era conhecida. A artista deixou um legado de 23 obras, além de incontáveis aquarelas, livros de atividades e outros desdobramentos de suas criações. Em 2013, uma obra inédita de Potter, The Tale of Kitty-in-Boots, foi publicada com ilustrações do renomado cartunista e escritor inglês Quentin Blake, o que entusiasmou os fãs, que continuam aumentando no mundo todo.
E não é para menos, não é mesmo? Afinal, sempre é tempo de começar a ler Beatrix Potter! Por serem atemporais, suas obras vão continuar encantando gerações. “Um primeiro porquê de ler é que ela é muito inventiva. Ela abriu caminho para a produção contemporânea. Sua obra permanece atual, continua falando para mais gente – e com potência. Acho que esse é um ponto. Além disso, as obras seguem boas e divertidas, prendendo a atenção e sendo aprovadas pelo tempo”, conclui Paulo Verano.
A seguir, conheça outros livros de Beatrix Potter publicados no Brasil para apresentar às crianças hoje mesmo:
A história do esquilo Nutkin
Publicado em 1903, A História do Esquilo Nutkin é um clássico da literatura infantil inglesa, que veio logo após o sucesso de A História de Pedro Coelho. Todos os esquilinhos já sabiam: para coletar nozes na ilha, era preciso negociar com Velha Brown, uma coruja severa e maliciosa. O travesso esquilo Nutkin estava ciente disso, mas adorava provocar a ave! Sempre exagerando nas brincadeiras, ele não se preocupava com as consequências, até que um dia…
A história dos dois ratinhos travessos
Tim Mindinho e Unca Munca, um casal de simpáticos ratinhos, espiam pela janela e notam uma mesa farta. Atrevidos, eles entram sorrateiramente na bonita casa, mas, ao morder a comidinha… puxa! Ela não tem o sabor que eles esperavam! Com muito senso de humor, esta obra, publicada originalmente em 1904, traz uma camada de crítica às rígidas estruturas sociais da época.
A história da senhora Tiggy Tipico
A obra de 1905 continua encantadora, atual e cheia de camadas. Na história, a menina Lucie procura desesperadamente por seu lencinho branco, até que se depara com a senhora Tiggy Tipico, que lava e passa para todos na região. A garota ajuda a lavadeira o dia todo, sem se dar conta da verdadeira identidade daquela atarefada senhorinha. Repare que vários outros personagens criados por Beatrix Potter fazem parte da lista de clientes de Tiggy Tipico.
A história do senhor Jeremias Pescador
Publicado originalmente em 1906, o livro conta, de maneira irônica, sobre os contratempos da vida ao narrar a história do Senhor Jeremias Pescador, um simpático sapo. Ele vive feliz na beira de um lago, muito bem servido de peixes e plantas. Por conta dessa fartura, ele está tranquilo para receber o vereador Ptolomeu Tartaruga e o senhor Isaac Newton Salamandra para um jantar. Bastaria um mergulho no lago para prover um banquete para os amigos. No entanto, a pescaria não sai como o planejado, e o sapo atrapalhado quase acaba ele mesmo virando jantar.
A história de Jemima Patapocinha
A doce Jemima Patapocinha é uma pata ingênua que não enxerga malícia quando um gentil raposo bate à sua porta. Publicado em 1908, o livro mostra os apuros que Jemima passa ao não perceber as reais intenções do malicioso predador, que se esconde atrás de um discurso sedutor. O tema continua bem atual, não é mesmo?
Fontes:
- Paulo Verano, editor e professor, cofundador da Edições Barbatana
- Documentário Beatrix Potter: The Secret Life Of A Victorian Genius (2022)
- Beatrix Potter Society