As primeiras obras para crianças produzidas por escritores brasileiros foram coletâneas de fábulas, adaptadas por intelectuais negros: Justiniano José da Rocha e Francisco de Paula Brito. Ambos publicaram versões “abrasileiradas” de fábulas de Esopo e La Fontaine no início da década de 1850.

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Francisco de Paula Brito. Crédito: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, obra Poesias (1863)

Os primeiros livros infantis brasileiros

O que as crianças liam no Brasil, logo após a Independência?

Pouquíssima gente sabia ler e escrever; mais de 80% da população era analfabeta. O ensino das letras era pulverizado em poucas escolas públicas e particulares, mais concentradas na Corte. Os livros para crianças eram importados, principalmente de Portugal e da França. Os livros infantis mais vendidos eram Aventuras de Telêmaco (1699), de François Fénelon, Tesouro de Meninas (1747), de Jeanne Marie Leprince de Beaumont, em versões originais ou traduções e adaptações portuguesas, e Fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine, em diferentes versões.

Quem lê os primeiros jornais e revistas brasileiros disponíveis na Hemeroteca Digital Brasileira (https://memoria.bn.br/) encontra esses e outros títulos para crianças em anúncios de livrarias, tipografias e outros estabelecimentos comerciais.

No século XIX, a maior parte dos seres humanos de pouca idade não era considerada criança. O conceito de infância era outro, e livros para a infância eram destinados a algumas crianças, geralmente brancas, das elites econômicas. Algumas crianças negras e mestiças, porém, aprenderam a ler – meninos como Francisco de Paula Brito e Justiniano José da Rocha, os primeiros a adaptar fábulas no país.

Veja também: A importância do protagonismo negro na literatura infantil.

Fábulas em verso

No início de 1854, A Marmota Fluminense: Jornal de Modas e Variedades apresentava uma novidade: a Coleção completa das fábulas de Esopo, adaptadas em quadrinhas por Francisco de Paula Brito. Não era a primeira vez que o jornal, dirigido ao público feminino, publicava fábulas. Versão anterior do periódico, intitulada A Marmota na Corte, vinha publicando fábulas e apólogos desde 1850, traduzidos e criados por diferentes autores. Em 6 de junho de 1851, por exemplo, os leitores da Marmota puderam ler a fábula “O Tucano e o Anum”, criada por autor anônimo.

A novidade maior, anunciada no número de 31 de janeiro, era a de uma coleção de fábulas em trovas. Francisco de Paula Brito (1809-1861), o autor das adaptações, era também dono da Empresa Tipográfica Dous de Dezembro, o maior empreendimento gráfico da época, que publicava a Marmota e diversos outros jornais, além de alguns dos principais livros de literatura brasileira.

Paula Brito era poeta, contista, tradutor, redator de vários jornais, editor e empresário. Dous de dezembro era a data de nascimento tanto dele como de seu mais importante sócio, D. Pedro II. A trajetória do escritor era excepcional, considerando que ele descendia de escravizados libertos e pobres.

O menino Francisco aprendeu a ler com a irmã e, aos 14 anos, começou a trabalhar como aprendiz na Tipografia Imperial e Nacional. Em 1831, abriu sua própria tipografia, em loja que vendia também livros, materiais de papelaria e chás. Aos poucos, o negócio foi crescendo, até se tornar a empresa Dous de Dezembro.

Na loja, reuniam-se os membros da Sociedade Petalógica, que incluiu boa parte dos escritores da geração romântica de 1840 a 1860, além de políticos, jornalistas e o imperador. O nome da sociedade informal era uma brincadeira: um dos significados de peta é mentira.

Brincadeiras à parte, o trabalho de Paula Brito como produtor e incentivador da literatura nacional era muito sério. Basta lembrar que um jovem escritor, Joaquim Maria Machado de Assis, publicou seus primeiros poemas na Marmota Fluminense.

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Marmotas tecnológicas

Por que o jornal tinha o nome de marmota, aquele roedor europeu? A explicação passa pela história das novas tecnologias que pipocavam na Europa, e de lá para o mundo, nos séculos XVIII e XIX. Na França, mascates pobres costumavam fazer apresentações nas cidades, que envolviam música, dança e animais amestrados, como marmotas dançarinas. As marmotas eram carregadas em caixas de madeira, levadas às costas dos vendedores-artistas.

Em princípios do século XIX, muitos mascates trocaram as marmotas por lanternas mágicas, caixas óticas que projetavam imagens pintadas em placas de vidro sobre paredes ou telas brancas. Eles viajavam mostrando todo tipo de imagem às populações de aldeias e cidades, muitas vezes tocando música durante as projeções ou contando notícias de outros lugares. As caixas óticas, levadas às costas, eram chamadas de marmotas…

A Marmota na corte, que circulou entre 1849 e 1852, e A Marmota Fluminense, sua sucessora, pretendiam atuar como lentes de caixas óticas, que projetavam notícias, diversão, moda, debate, literatura nas vidas dos leitores, especialmente das mulheres e suas famílias. 

Fábulas e mais fábulas na Marmota

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Primeira página do jornal A Marmota Fluminense, de 31 de janeiro de 1854, que anuncia a publicação de Fábulas de Esopo em quadrinhas. Crédito: Hemeroteca Digital Brasileira.

Paula Brito publicou 92 fábulas de Esopo na Marmota Fluminense ao longo de 1854. A última, “O homem e a burra”, saiu em 8 de dezembro, juntamente do anúncio de um livro que reuniria todas as fábulas em quadrinhas, para atender aos pedidos de “tantos diretores e professores de colégio”. O autor também agradecia aos leitores o “bom acolhimento” a suas fábulas.

As fábulas em trovas, forma tão popular no Brasil, talvez fossem lidas em voz alta para e por crianças e adultos; talvez fossem ouvidas por senhores, sinhazinhas e pessoas escravizadas. Que impacto as narrativas de Esopo, ele mesmo um escravo, segundo a lenda, teria tido sobre a imaginação das crianças e jovens brasileiros e escravizados?

Fábulas em prosa

Outra importante coletânea de fábulas foi lançada em 1852. Era a Coleção de fábulas, imitadas de Esopo e de La Fontaine, de Justiniano José da Rocha, livro dedicado a “S. M. o Imperador D. Pedro II”. O autor era bastante conhecido na corte, pois foi um dos maiores jornalistas de seu tempo, além de advogado, professor, parlamentar, contista e tradutor.

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Imagem da folha de rosto da obra Coleção de fábulas, imitadas de Esopo e de La Fontaine, de Justiniano José da Rocha. Nesta edição de 1927, não aparece mais a dedicatória a D. Pedro II. Os editores informam que a edição foi “muito melhorada com numerosas vinhetas” e “adotada para leitura nas escolas”, 75 anos após seu lançamento. Crédito: foto disponibilizada pela autora.

Justiniano também era mestiço, mas de família rica, que o mandou fazer os estudos secundários em um liceu de Paris. De volta ao país, ele se formou na Faculdade de Direito de São Paulo. A coleção de fábulas não foi seu único livro. Como membro do primeiro grupo de professores do recém-fundado Colégio Pedro II, ele percebeu a falta de materiais didáticos adequados aos alunos. Escreveu compêndios de História Antiga e Geografia, disciplinas que lecionava.

Na época do lançamento das Fábulas, Justiniano era professor de Latim e Francês na Escola Militar. É possível que tenha criado o livro especialmente para alunos de escolas brasileiras, que precisavam de material didático e livros de literatura.

A Coleção reúne 120 fábulas, escritas em prosa, em textos curtos de dois parágrafos. No primeiro, lê-se a narrativa; no segundo, a conclusão moral, anunciada pela palavra Moralidade grafada em letras maiúsculas. As fábulas de Esopo e La Fontaine não demarcavam tão explicitamente a lição moral a ser aprendida por meio das narrativas. O modelo proposto por Justiniano foi seguido por outros adaptadores de fábulas.

Os textos do livro não são apenas traduções, mas adaptações para leitores brasileiros – por isso o título do livro ressalta que as fábulas foram imitadas de Esopo e La Fontaine. Em duas fábulas, aves brasileiras entram no lugar de europeias: o socó substitui a cegonha, na versão de “A raposa e a cegonha”, de La Fontaine, e o sabiá assume o posto do rouxinol, na adaptação de “O rouxinol e o gavião”, de Esopo.

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Imagem da página que traz a fábula “A Raposa e o Soccó” na obra Coleção de fábulas, imitadas de Esopo e de La Fontaine, de Justiniano José da Rocha. Crédito: foto disponibilizada pela autora.

A Coleção de Fábulas de Justiniano teve pelo menos onze edições impressas – a última, em 1927 – e continua sendo publicada, agora em edições digitais, algumas delas adotadas por escolas brasileiras contemporâneas. É o mais antigo livro infantil brasileiro em circulação.

Já o livro de Francisco de Paula Brito parece ter tido apenas uma edição impressa, hoje raríssima. Quem sabe não é hora de reeditá-lo?

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Os filhos da coruja (escritor Graciliano Ramos, ilustrador Gustavo Magalhães, editora Baião)
Os filhos da coruja, de Graciliano Ramos e Gustavo Magalhães.