Aquela criança que antes precisava de ajuda pra tudo, de repente, calçou os tênis sozinha. Sim, os pés podem estar trocados ou os cadarços meio desamarrados, mas fato é que ela já começa a dar demonstrações de que é capaz de realizar algumas tarefas com mais independência.
Como pais, costumamos ansiar por esse momento, afinal entendemos que isso faz parte de um amadurecimento motor, cognitivo e emocional que conduz a criança a ter mais autonomia. E que maravilha é poder navegar pelo mundo com mais destreza e sem precisar depender tanto dos outros, não é mesmo?
Essa recém-adquirida autossuficiência dos pequenos também leva os pais a uma nova fase. Se antes tentávamos facilitar ao máximo as tarefas para eles, agora precisamos dar espaço para que aprimorem suas capacidades individuais. Na teoria, é lindo; na prática, nem sempre é fácil.
Atrasos, bagunça e frustrações (dos dois lados!) também costumam fazer parte dessa etapa da vida. E aqui vai um spoiler: vai ter muito sapato trocado de pé, leite derramado para fora do copo e roupas que não combinam – e é esperado que assim seja. Faz parte do aprendizado! Então, respira fundo e vem com a gente.
Neste conteúdo, vamos explorar o significado da autonomia infantil e como as famílias podem criar maneiras de estimular os pequenos, respeitando o tempo de cada um e sem colocá-los em risco.
Veja também: Tarefas para crianças: como os pequenos podem ajudar na rotina familiar.
Liberdade aos poucos
Por autonomia, entende-se a capacidade de realizar atividades e tomar decisões por conta própria. Seja em ações rotineiras como se vestir, arrumar o quarto, se alimentar ou brincar, até questões mais complexas que exigem maior discernimento na escolha, como atravessar a rua sozinhos. Conquistar essa capacidade gera confiança em si mesmo para enfrentar desafios, estimula a criatividade na resolução de problemas, aprimora o senso de responsabilidade e ajuda a criança a entender suas potencialidades.
A faixa etária deve ser levada em consideração, mas há outros fatores que influenciam esse desenvolvimento, como o ambiente em que se vive, o contexto familiar, os estímulos recebidos e a cultura em que se está inserido. Por isso, é preciso ainda ter em mente que existem diversas realidades familiares e que o incentivo precisa ser pensado individualmente.
E é claro que a autonomia não surge do nada. Estamos diante de uma construção gradual, em que uma etapa precisa estar estabelecida para que se chegue à próxima. Não podemos esperar que uma criança pequena execute com perfeição uma tarefa que acabou de aprender, não é mesmo? É hora de acolhê-la em seu processo e oferecer ferramentas para seu sucesso.
E faz diferença o amparo que você dá. O estudo “Stability in Maternal Autonomy Support and Child Executive Functioning”, realizado pela Universidade de Montreal, mostrou que o suporte das mães à autonomia dos filhos tem um impacto positivo em suas habilidades cognitivas, como memória, raciocínio, flexibilidade e resolução de problemas. O estudo analisou 78 mães e suas crianças em duas visitas, quando os bebês tinham 15 meses e 3 anos. Observou-se que o tipo de suporte oferecido por elas em tarefas desafiadoras, respeitando o ritmo da criança, foi associado a melhores pontuações nas habilidades cognitivas dos filhos aos 3 anos.
“O desenvolvimento da autonomia precisa ser acompanhado por uma estrutura. Você não pode simplesmente jogar a criança no mundo, porque ela não vai saber como agir”, explica Carolina Behr, psicóloga pela University of Colorado Boulder e pedagoga montessoriana certificada pela Montessori Centre Internacional. Para a especialista, o ideal é ir criando, aos poucos, mais liberdade, pois assim, as crianças poderão crescer entendendo essa dinâmica gradual e se tornando cada vez mais aptas a fazer boas escolhas.
Mas, repare, não estamos falando de “permitir” que o filho faça algo, pois isso poderia vincular sua independência à aprovação dos pais. Em vez disso, estamos abrindo espaço para que a criança consiga fazer as coisas sozinha e com segurança. Na infância, o “feito” vale mais do que o “perfeito”. A ideia é adquirir experiência para que, a cada dia, seja mais fácil executar aquela tarefa. E pode confiar: a cada manhã vai espirrar menos leite pra fora do copo.
“Os pais precisam observar objetivamente o filho. É difícil não fazer julgamentos ou comparações, mas tente admirar o que está presente hoje, sabendo que será diferente amanhã. As crianças dão grandes saltos no desenvolvimento, por isso não adianta se apegar ao que está indo muito bem ou muito mal, porque isso vai mudar e você nem sabe para qual direção”, explica Carolina.
Não dá pra ser perfeito!
É hora, portanto, de abrir mão do controle, da busca pela perfeição e das comparações. Lembre-se: cada pessoa tem seu próprio tempo. E ele muda rápido! Por isso, quanto menos pressão os adultos colocarem nesse período, melhor. Seu filho vai conseguir, mas não será no mesmo ritmo que o irmão, o amiguinho ou até mesmo o tempo que você, papai e mamãe, gostariam. Será no tempo dele. O que podemos fazer é ampará-lo nessa jornada e incentivar sua persistência.
“Os pais têm objetivos diferentes ao criar uma criança: ‘quero que ele seja independente’, ‘tenha sucesso’, ‘tenha pensamento crítico’. Acho mais interessante um indivíduo integrado, que perceba quem ele realmente é, não o que eu gostaria que ele fosse. Alguém que siga sua própria inteligência, seu estilo de aprendizagem, sua própria visão de mundo”, destaca Behr.
Aqui chegamos a uma questão importante quando se trata de autonomia. Mesmo sabendo que nossos filhos precisam se virar sozinhos, nem sempre conseguimos fazê-lo. Seja por apego, controle ou até mesmo pela correria do dia a dia, que impede que haja tempo para este aprendizado. E vamos ser sinceros: quando estamos com pressa para sair de casa, não é muito mais fácil vestir o casaco no filho e fechar o zíper do que esperar que ele mesmo execute essa tarefa?
No entanto, esse simples ato traz consigo uma lição para as crianças. Pode ser rotineiro pra você, mas é novidade para eles. O problema é que nem sempre a gente percebe isso, já que estamos constantemente em busca de uma alta performance em tudo, exigindo uma resposta rápida e efetiva que nem sempre eles poderão nos dar, porque, veja, eles ainda não sabem bem como fazer.
Abrace o erro
E qual a consequência dessa pressa? A criança se acostuma com o adulto “facilitando” a sua vida e deixa de tentar. “Se você não se arrisca ao erro, não avança, não aprende nada novo. As pessoas que estão fazendo grandes inovações no mundo hoje estão cometendo muitos erros. Se você não tem uma alta tolerância às falhas, você não faz nada”, diz Carolina, complementando: “Os pais não tem paciência nem com os próprios erros!”.
A educadora montessoriana conta que, em suas aulas para pais, costuma ensinar sobre a “celebração do erro”, que consiste em criar o hábito de conversar também sobre o que deu errado no dia. “Você diz: ‘hoje eu perdi a paciência e respondi mal para meu colega. Ainda bem que depois conversamos e ficou tudo bem’. O filho ouve isso e entende que, quando falhar, poderá admitir, conversar e corrigir, porque errar é humano”, explica a especialista.
Além disso, é importante dimensionar a gravidade dos erros. O que de pior pode acontecer se a criança se servir de leite sozinha ou sair com roupas descombinando? Talvez derramá-lo ou receber olhares desaprovadores na rua. Nada grave, certo? Claro que alguns erros podem sim ter implicações maiores e é natural ficarmos aflitos quando vemos nossos filhos sofrendo ou desconfortáveis por causa de algo que escolheram por conta própria. No entanto, também é necessário suportar que eles se sintam frustrados, pois isso os ajuda a lidar com adversidades, compreender seus próprios mecanismos de resiliência e fazer escolhas melhores na próxima vez.
“Quando você tem expectativas de perfeição em relação à criança e tenta forçá-la a fazer A, B ou C, não dá certo. Isso só aumenta o nível de estresse dentro de casa. E então, especialmente as mães, entram em um círculo vicioso: acham que não estão fazendo o suficiente, passam a fazer ainda mais, a criança faz menos e isso gera frustração”, aponta a psicóloga.
Em tempos de exaustão materna, isso só piora o cenário, não é mesmo? Portanto, para que o processo de independência dos nossos filhos ocorra, também precisamos fazer uma autoanálise e entender onde moram nossas angústias. É abrir mão do controle absoluto? É medo da criança se machucar? É uma exaustão extrema que não permite olhar pra vida com mais calma?
Saiba que, quando estimulada, a autonomia infantil pode ajudar até nisso. “Uma criança ativa, que tem a oportunidade de fazer escolhas no seu próprio ritmo, é muito mais fácil de lidar, porque ela está ocupada vivendo e, consequentemente, a mãe acaba tendo mais tempo para si. É um ciclo”, diz a psicóloga, que atua nos Estados Unidos atendendo pais de crianças até os 9 anos.
Comemore o que está dando certo!
Para que o processo não seja difícil para ninguém, é esperado, portanto, alguns ajustes no caminho. Carolina sugere pequenas mudanças que sejam possíveis de manter e que beneficiem a todos. E fiquem tranquilos, não precisa ser nada drástico: por exemplo, se você perceber que a criança leva 10 minutos a mais para amarrar os sapatos antes de sair de casa, comece a se arrumar 10 minutos antes para que esse tempo de aprendizado possa ser incluído. Simples assim!
Vale lembrar que, com o passar dos dias, seu pequeno vai ficar craque e logo, amarrar os sapatos não tomará mais do que alguns segundos da rotina. Legal, né? Por isso, assim como os erros, os pequenos acertos também precisam ser comemorados. “Pare e celebre o que está dando certo. Os pais precisam criar um pouco mais de espaço para viver a maternidade e a paternidade. E não aquela que você sonhou, desculpe, essa não existe, mas a que está presente hoje, que é maravilhosa e que tem muito para ser celebrada”, indica a psicóloga.
Confie nos seus filhos!
E como é bonito observar de perto todo o percurso da autossuficiência dos nossos filhos, não é mesmo? A psiquiatra e educadora Maria Montessori, criadora da abordagem montessoriana que enfatiza a importância da autonomia infantil no desenvolvimento, tem uma frase famosa que expressa muito bem por que devemos acreditar nesse processo individual dos pequenos: “Nunca ajude uma criança numa tarefa que ela sente que pode fazer sozinha”.
É isso! Percebeu que a vontade de tentar por conta própria surgiu? Analise se, de fato, a criança já pode realizar essa atividade sozinha e, se sim, abra espaço para que ela caminhe com mais liberdade – sem nunca desampará-la, claro!
“O desenvolvimento da autonomia infantil vem também dos pais terem confiança que a criança tem a capacidade de realizar as coisas”, conclui a psicóloga Carolina. Cabe então a você, querido pai e mãe, orientar, observar, respeitar o tempo e comemorar cada pequeno passo dado pelos filhos por conta própria. Eles valem muito e são a trilha para conquistas cada vez maiores!
QUER UMA AJUDINHA?
Confira algumas ideias que podem ajudar a estimular a autonomia do seu filho em pequenas ações do dia a dia:
Limite as opções de escolha
Você sabia que é confuso para uma criança escolher qual camiseta usar entre todas as que têm no armário? No entanto, se você oferecer 2 ou 3 opções, ela poderá fazer uma escolha mais assertiva. À medida que ela crescer, as opções podem ser ampliadas (por exemplo, 5 a 6 camisetas,) e devem estar em locais acessíveis para que possa escolher sozinha. Isso estimula a autossuficiência, a proatividade (ela pode se trocar sozinha), além de permitir que faça escolhas de acordo com a sua personalidade.
O mesmo vale, por exemplo, na hora de guardar os brinquedos. “Os pais querem que o filho tenha autonomia, mas permitem que ele pegue 375 brinquedos para brincar e depois esperam que ele os guarde todos. Sabotamos essa criança quando temos a expectativa que ela saiba como resolver isso”, explica a psicóloga, que sugere uma abordagem melhor: reduza a quantidade. “É possível pegar 10 carrinhos e depois guardá-los em cestos. É difícil lidar com 50, mas com 10 é fácil, entende?”, ensina Carolina.
Pense em um ambiente que convide à independência infantil
Será que a criança consegue pegar um copo para se servir de água sozinha? Existe uma escadinha disponível para que ela possa alcançar a pia? A forma como organizamos nossa casa influencia na maneira como as crianças interagem com ela. Ganchos, prateleiras e cestos posicionados à altura delas podem ser muito úteis no dia a dia, por exemplo. Pense em maneiras de facilitar o acesso e a independência infantil. Na abordagem montessoriana, isso é chamado de economia de movimento, conceito que busca minimizar os perigos e obstáculos que impedem a criança de se movimentar de forma mais autônoma.
Escolha lugares seguros onde seja possível explorar sem perigo
A vida nas metrópoles nem sempre permite uma autonomia total, como o ir e vir nas ruas sem que existam perigos reais pelo caminho. No entanto, é possível selecionar lugares em que seja mais seguro transitar e onde a criança possa explorar com mais liberdade. Aqui, vale estipular uma área limite no clube ou parque para brincar livremente – com os pais supervisionando, claro, mas sem tantas interferências dos adultos. Isso também se aplica para lugares fechados, como em casa ou na escola. Se seguirmos a dica anterior e mantivermos um ambiente convidativo, as crianças podem ter mais autonomia, pois estarão seguras.
Estabeleça expectativas claras
Faça combinados com seus filhos sobre as tarefas diárias e as responsabilidades de cada um. Dessa forma, eles entenderão o que se espera deles e poderão se organizar para cumprir essas atividades por conta própria. Você ainda pode incentivá-los a assumir pequenos afazeres domésticos adequados à idade, como colocar as roupas na máquina de lavar, dobrar os pijamas ou dar água para os pets. As crianças tendem a estar mais dispostas a ajudar quando sentem que estão contribuindo de verdade para a felicidade do lar. E aqui vai uma dica extra: evite corrigir o que elas acabaram de fazer. Isso pode deixá-las inseguras e desmotivadas.
Dê espaço e tempo
Carolina sugere que os pais se questionem diariamente sobre o que podem deixar de fazer (ou fazer menos) para que seus filhos tenham mais autonomia. Que tal se hoje o pequeno pegar o cereal do café da manhã sozinho? Você pode orientá-lo sobre como fazer menos bagunça, mas logo se tornará algo rotineiro. “Crianças costumam amar o processo. Quando desenham algo, por exemplo, o ato de desenhar é mais prazeroso do que o resultado final. Quando entendemos isso, somos capazes de admirar mais o tempo que a criança leva para fazer algo, e essa percepção nos ajuda a ter a paciência necessária para que ela pratique essas atividades”, diz a psicóloga.
Um pouco de bom humor ajuda!
Claro que nem sempre conseguimos, mas encarar as falhas com bom humor pode ser útil e até encorajar a criança. Menos pressionada, ela consegue lidar melhor com seu processo de aprendizado. Ao perceber que os sapatos estão trocados, por exemplo, adote uma abordagem mais lúdica: “Hahaha, está engraçado o sapato assim, mas será que não ficaria mais confortável no outro pé? Você não acha que daquele lado tem mais espaço para o seu dedão?”.
Escute a criança
É importante que os pequenos entendam que suas vozes têm peso na família e que suas opiniões são valorizadas pelos pais. Isso também reverbera na sua autonomia, pois eles compreendem que suas escolhas influenciam no seu lar. O respeito mútuo gera maior engajamento dentro de casa e quando é incentivado desde cedo, a criança aprimora sua comunicação para expressar seus sentimentos e isso reflete em escolhas melhores também durante a adolescência e vida adulta.
Veja também: Da criança obediente ao adulto resignado: precisamos repensar a educação baseada na obediência.