Os quilombos são perseguidos exatamente porque oferecem uma possibilidade de viver diferente”, Nêgo Bispo.

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Crédito: Unicamp

Para falar dos princípios da escola quilombola na educação antirracista, preciso começar dizendo que sou avessa às abordagens didatizantes ou redutoras dos saberes, tecnologias e culturas dos povos originários.

Depois de 500 anos de abusos e crimes sofridos (e ainda em andamento), a branquitude, nascida e criada em um mar de privilégios, ainda quer tomar padrões das culturas afrodescendentes e indígenas para a manutenção, melhoria e aplicação de seus privilégios e manter os descendentes dos povos originários fora do sistema ou, melhor, na base da pirâmide social. E isso, além de cinismo, é duplamente ofensivo. Para manter vivo seu conhecimento multidisciplinar sobre a natureza, a sociedade e o humano, os quilombolas resistem à urbanização e ao agronegócio, que comprometem o acesso aos recursos naturais necessários, e ao Estado (e a sociedade em geral) que não os apoia devidamente.

Então, além de aprender com a cultura e a educação quilombola, vamos também nos comprometer com os direitos dessa população. Por exemplo, nos declarando a favor de ações afirmativas e demais políticas públicas direcionadas a ela e lutando para sua aplicação, como o Programa Aquilomba Brasil, lançado por meio do Decreto nº 11.447/2023, que terá quatro eixos: acesso à terra e ao território; infraestrutura e qualidade de vida; inclusão produtiva e etnodesenvolvimento local; e direitos e cidadania.

Aqui, vou abordar alguns princípios da educação quilombola, mas quero deixar alertado que não é sobre simplesmente recortar um elemento educacional aqui e colocar lá, não é para ser apenas uma bricolagem de estratégias de ensino. Em termos de educação antirracista, pouco adianta adotar princípios da escola quilombola e ser uma escola sem diversidade racial no corpo docente e discente, atuar com material didático e cultural eurocentrado, não colaborar com as comunidades quilombolas. Resumindo, não é sobre “aplicar” pressupostos quilombolas em sala de aula, mas, sim, incluí-los em um amplo plano de ensino antirracista (recomendo a leitura das colunas anteriores sobre “Escola antirracista e branquitude” e “Escola antirracista não é marketing”).

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Quilombo, quilombola

A origem da palavra “quilombo” é do idioma Banto, dos povos originários de Angola, e significa local de pouso ou acampamento. Em português, “quilombo” passou por várias interpretações racistas e geralmente as pessoas pensam em quilombos dentro do conceito colonial de esconderijo para escravizados que fugiam das fazendas onde eram mantidos por seus (supostamente) donos. Até o final da década de 1980, apoiados por esta imagem de fugitivos, os brasileiros, em geral, pensavam na população que morava em quilombos como criminosos, que não queriam saber de trabalho sério.

Foi o movimento negro organizado, durante a década de 1970, que corrigiu o conceito de quilombo numa perspectiva contracolonial e ajudou a população geral a compreender os quilombos como espaço de comunidades afrodescendentes que resistem contra os crimes dos quais são vítimas. Um momento importante foi a alteração do conceito na Constituição de 1988, que criou o termo “remanescentes de comunidades de quilombos” para as pessoas que vivem nestes territórios ainda hoje. Com o tempo, essa expressão foi substituída pelo termo “quilombola”. Temos então estabelecido que quilombos são territórios de resistência e manutenção de um modo de vida específico e, quilombola, são as pessoas que vivem neste espaço, que compõem essa comunidade.

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Quilombo no estado do Maranhão. Crédito: Wikimedia Commons

Os primeiros quilombos reconhecidos foram o Quilombo do Palmares, que é a reunião de 10 quilombos próximos na região da Serra da Barriga, tombado em 1986, e o Quilombo do Ambrósio, certificado em 2000. Hoje, segundo a Fundação Cultural Palmares, que acompanha a autoatribuição quilombola, existem quase 3 mil comunidades validadas como quilombolas (não necessariamente com terra delimitada). O Censo de 2022 do IBGE registrou 1,3 milhão de pessoas que se autodeclaram quilombolas. Elas estão presentes em todas as regiões do Brasil, mas a maior concentração é no Nordeste (70%).

Quando uma pessoa se declara quilombola, ela está afirmando que tem laços históricos e ancestrais de resistência com a comunidade e com a terra em que vive ou é originário. As escolas presentes nessas comunidades têm a função de contribuir com a preservação da cultura, saberes e tradições locais, e nós temos muito o que aprender com o que os quilombolas sabem sobre educar.

Foi com este movimento – de implementar escolas nos quilombos, utilizando estratégias e princípios africanos para educar – que os professores (eles, sempre eles), com suas pesquisas e vivências profissionais, acabaram divulgando para todo o sistema educacional caminhos possíveis e profícuos para uma educação mais eficiente e antirracista.

Princípios da escola quilombola e sua pedagogia

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Crédito: Revista Ensino Superior

Alguns marcos legais são importantes nessa trajetória, como a Lei Nº. 10.639 (2003), que tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico‐raciais (2007) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (2012).

Segundo esta última, as escolas quilombolas são aquelas inscritas em suas terras, e que tenham uma pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural. Esta pedagogia tem como princípios o respeito e o reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira como elementos estruturantes do processo civilizatório brasileiro; a proteção das manifestações da cultura afro-brasileira e a valorização da diversidade étnico-racial, além de atender a Base Nacional Curricular Comum. Observando os caminhos percorridos pelos educadores que atuam em escolas quilombolas, passo a destacar ações que colaboram com a educação e a educação antirracista:

  1. Preservar sua liberdade, sua vida e lutar por justiça social. A filosofia quilombola é antes de tudo uma filosofia vivenciada de liberdade e de proteção dos mais necessitados. Vale recordar que os primeiros quilombos abrigavam também indígenas e pessoas brancas empobrecidas e excluídas da sociedade. “Os quilombos são uma das primeiras experiências de liberdade das Américas”, já nos ensinou Abdias do Nascimento.
  2. Viver em comunidade. “Eu sou, o que nós somos”, diz a filosofia Ubuntu que rege a cultura quilombola e resgata a essência de ser uma pessoa com consciência de que é parte de algo maior e coletivo. Somos o que somos através de outras pessoas e não podemos viver plenamente se estivermos sozinhos.
  3. Respeitar as especificidades de cada grupo. Não há apenas um modo de ser uma escola quilombola, pois a primeira regra é valorização da comunidade em questão, e cada comunidade tem sua história, seus princípios e suas prioridades. Podemos imaginar que uma escola quilombola rural não terá as mesmas prioridades que uma urbana, assim como haverá diferenças entre uma escola do Ceará e outra do Rio Grande do Sul. Aprendemos com este princípio a valorizar as especificidades de cada grupo e cada indivíduo, por meio do diálogo, da observação e do respeito mútuo.
  4. Aprender a diferenciar o “bem viver” do “viver bem”. “Bem viver é viver de forma orgânica e viver bem é viver de forma sintética. Compreendemos que há um saber orgânico e um saber sintético. Enquanto o saber orgânico é o saber que se desenvolve desenvolvendo o ser, o saber sintético é o que se desenvolve desenvolvendo o ter. Somos operadores do saber orgânico e os colonialistas são operadores do sintético.” Antônio Bispo dos Santos, Nêgo Bispo, in Somos da terra.
  5. Valorizar o saber ancestral. Respeitar os mais velhos. Isso se dá por meio da leitura de contos tradicionais africanos, de literatura afrodescendente, de ouvir as histórias dos mais velhos. Ou de resgatar métodos de cultivos, de construção de utensílios, de preparação de alimentos.
  6. Reforçar a identidade negra. São ações atreladas à valorização do que é próprio das populações originárias de África. Um ponto importante aqui é a escola evitar a ideia de que o conhecimento africano é rudimentar e passar a explorar a grandeza e a sofisticação da epistemologia africana na engenharia, na linguística, na matemática, na arquitetura, na medicina, na filosofia etc. Do mesmo modo como sempre fizeram com as antigas civilizações europeias, como a Grega, por exemplo. Você sabia que a primeira calculadora do mundo foi desenvolvida por africanos, 20 mil anos antes de Cristo, usando osso do fêmur de um macaco babuíno? Há muito a aprender com a afromatemática.
  7. Recuperar jogos e brincadeiras africanas para ensinar conteúdos (sempre referenciando a matriz africana). As brincadeiras africanas mais conhecidas no Brasil são terra-mar (Moçambique), mamba (África do Sul), banyoka (Zaire e Zâmbia) e kudoda (Zimbábue). Elas estimulam memória, consciência corporal e trabalho em equipe. Remeto aqui a uma apostila com brincadeiras africanas produzida por Daniela Alfaia da Cunha e Cláudio Lopes de Freitas, que você pode acessar aqui.
  8. Recordar, ensinar linguagens africanas. Além das artes do corpo, das artes visuais, é possível explorar as línguas africanas e suas permanências no português brasileiro.
  9. Valorizar a cultura matriarcal. Muitas comunidades quilombolas são de raiz matriarcal. Levar a perspectiva da mulher para as discussões sociais, políticas, éticas pode ser o caminho para muitas descobertas.
  10. Valorizar e conscientizar a relação com a terra. Os quilombolas são guardiães de saberes ancestrais sobre a mineração e o plantio de alimentos, passando pela celebração da vida com danças e festas tradicionais, que marcam o fim do plantio ou da colheita. Recuperar e praticar algumas dessas ações pode ser significativo. Por exemplo, manter uma horta comunitária com base nessa tradição.
  11. Valorizar seu território. Como a educação quilombola é integral, não compartimentada, a arquitetura e a ocupação espacial da escola é muito importante e deve ser pensada para favorecer o aprendizado em grupo e com contato com a natureza.

Há muito para a educação e a educação antirracista aprender com o afro saber. Volto em outra coluna para compartilhar mais sobre o tema, em especial a filosofia Ubuntu, que nos ensina sobre os benefícios da partilha e da solidariedade. Pois, ao final, penso que o maior ensinamento da cultura quilombola é sobre aquilombar: promover proteção e conexão de solidariedade. É assim que toda escola deveria ser: um lugar de refúgio, amparo, paz e segurança para o desenvolvimento pleno de todas e todos em benefício da comunidade.

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