No Brasil, mais de 11 milhões de mulheres criam seus filhos sozinhas, ao mesmo tempo que chefiam o lar, lidando com as finanças, alimentação e educação das crianças, de acordo com dados do ano passado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Um outro levantamento, feito por cartórios de registro civil, aponta que, nos quatro primeiros meses de 2022, 56.931 meninas e meninos receberam apenas o nome da mãe na certidão de nascimento. O número supera o mesmo período dos cinco anos anteriores e representa 6,6% do total de recém-nascidos no país.
A maternidade solo, como é chamada a maternidade de quem não tem a ajuda de um progenitor, pode surgir de diversas situações: pode ter sido uma escolha da mulher ou mesmo resultado de uma viuvez inesperada. Mas, infelizmente, a maioria dos casos ainda acontece por um motivo que vai além da mãe: a negligência e o descaso dos genitores.
Se ser mãe numa sociedade patriarcal é quase sempre sinônimo de sobrecarga, física ou mental, ser mãe solo é ainda mais pesado. As demandas deixam de ser pouco ou mal divididas com os homens, e passam a ser totalmente das mulheres:
“Tenho demandas físicas e mentais que não posso dividir com ninguém. Tenho que arcar tudo financeiramente, com a alimentação, com a criação”, diz a comunicadora, escritora e criadora de conteúdo Joyce Salvador, de 29 anos, e mãe solo de duas crianças. “Eu não tenho a possibilidade de surtar e dizer: ‘Cansei, vou dar uma volta na rua’. O que eu vou fazer? Deixar um menor com outro? Isso não existe na maternidade solo”.
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Como é a única responsável pelos filhos, ou seja, a única adulta dentro da casa, Joyce também teve que ensinar a eles desde cedo o que fazer caso algo aconteça com ela: seus filhos sabem que em emergências precisam ligar para o 190 ou chamar o bombeiro ou a polícia.
Muito julgamento e pouco acolhimento na maternidade solo
E, além do peso, muitas vezes as mulheres que não contam com a ajuda de um progenitor ainda têm que lidar com a culpa e a vergonha, sentimentos causados por julgamentos alheios. Isso porque nossa sociedade ainda coloca na conta da mãe a culpa pelo abandono do pai.
“Sou mais julgada, inclusive por outras mães”, diz Joyce. “Vivemos em uma sociedade onde a responsabilidade de manter um relacionamento recai sempre sobre a mulher. É a mulher que precisa ter tempo para o marido, para a casa, para as crianças. Quando somos abandonadas, a culpa recai sobre nós: ‘você não escolheu direito o pai do seu filho, você não pensou bem’, dizem”.
Ainda que saibamos que estar em um relacionamento não garanta divisão adequada das responsabilidades de cuidado e educação, as mães solo recebem menos acolhimento social que mulheres que têm filhos dentro de um relacionamento:
“A sobrecarga está aí para todas. Mas quando falamos de maternidade solo, o buraco é bem mais embaixo”, afirma Joyce. “Já tentei dialogar diversas vezes com mães sobrecarregadas que têm um marido, um genitor, dentro de casa, e explicar para elas que, por mais que ele não seja funcional ou não arque com a educação da criança, não se posiciona e ou faça o que tem que ser feito, ainda assim ela tem uma figura ao seu lado”.
Mãe solo, não solteira
Por muito tempo, mães que não contam com a ajuda do progenitor na divisão dos cuidados com os filhos eram chamadas de mães solteiras — ainda hoje é normal ouvir o termo.
Mas ao se referir a uma mulher que lida com a maternidade sozinha como solteira, estamos falando de seu estado civil, e não sobre sobrecarga. Uma mãe que não é casada, ou seja, é solteira, pode ter a ajuda do pai da criança no dia a dia, por isso nem sempre é considerada mãe solo. E vale lembrar que muitas mulheres vivem a solidão da maternidade solo mesmo estando em um relacionamento sério.
A realidade da maternidade solo no Brasil também afeta de maneira desproporcional as mulheres negras: do total de 11 milhões de mães solo no Brasil, 61% são negras. E muitas vezes é um ciclo familiar.
Após o nascimento do seu segundo filho, Joyce conta que tentou por um ano manter um relacionamento tóxico, para não cair na maternidade solo novamente.
“Sabia que por ser mãe solo de duas crianças de relacionamentos diferentes o julgamento seria mais forte. Vivi isso com minha mãe. Também sou filha de mãe solo, e sabia o quanto isso pesava para ela, sabia o quanto era difícil para minha mãe receber empatia ou rede de apoio. Esse emblema, de mãe solo, falava mais sobre ela do que ela mesma”, afirma ela, que é também coautora do livro Mães Pretas: Maternidade Solo e Dororidade. “A maternidade solo é cruel, mas a maternidade solo preta beira à desumanidade“.
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Papel do Estado
Todas as instituições — família, escola, redes de amigos e organizações de trabalho — devem, de formas diferentes, se organizar enquanto rede de apoio para mães solo. Mas o poder público tem um papel crucial nessa equação. Para além de reformular leis de políticas públicas para mães, Joyce acredita que o Estado deveria fazer uma conscientização sobre o que é a maternidade solo.
“Muitas pessoas dizem que minha família é disfuncional. O Estado tem um trabalho muito grande pela frente. Me deparando com algumas situações judiciais vejo leis que foram feitas para homens e por homens. É necessário haver uma reforma nas leis quando o assunto é parentalidade“, conta ela citando a lei de alienação parental, que na maioria dos casos é usada para beneficiar genitores que não cumprem seu papel em relação às mães solo. “Sou violentada pelo patriarcado por leis que favorecem homens que nem sequer fazem seu papel. Estamos caminhando a passos de formiguinha nesse sentido, depois que as mães romperam o silêncio e passaram a falar sobre isso”.
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A rede de apoio, afirma, também é fundamental. Mas é preciso ter cuidado para não sobrecarregar ainda mais outras mães solo:
“Consegui hoje ter uma rede de apoio e até remunerar essa rede, acho importante dizer que quando estamos num contexto periférico, como sobrecarregar mulheres que já são tão sobrecarregadas? O cuidar já está no colo delas, como posso não remunerá-las para que eu possa fazer um curso, ou sair para me divertir?”, questiona ela, lembrando dos desafios que essa terceirização pode acarretar. “Meu medo, além de terceirizar o cuidado dos meus filhos, é encontrar pessoas que aceitem e reproduzam a educação respeitosa que escolhi para minhas crianças“.
Com tantos problemas e demandas não supridas, a mãe solo acaba não tendo tempo para cuidar de si mesma. Outro desafio é, dentre tantas outras funções, conseguir “se autocuidar e se autoconhecer“.
“Um dos maiores desafios da maternidade solo é entender que a gente não tem que dar conta de tudo: da sociedade, da nossa família, das pessoas que nos cercam, tanto no mercado de trabalho quanto na vida pessoal”, afirma Joyce. “Está todo mundo esperando e contando que vamos dar conta de tudo, porque nos comparam com as que vieram antes, que se negligenciaram e se invisibilizaram para criar seus filhos. Esse é o maior da nossa geração: continuar sendo o centro das nossas vidas, mesmo sendo mães. Principalmente quando somos mães solo”.
Estante Quindim
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