Vamos começar este artigo dizendo algo que parece óbvio, mas que merece ser ressaltado: uma criança superdotada, ou com altas habilidades, continua sendo uma criança. E, por isso mesmo, precisa de todo apoio e acolhimento para crescer, descobrir seus interesses e se desenvolver da melhor maneira possível.
A superdotação é uma característica inata ao ser humano, associada a fatores genéticos, que costuma ser identificada na primeira infância, em média entre os 2 e os 7 anos de idade. Isso acontece porque é nesse período que a criança passa a estar mais inserida no convívio em sociedade, quando começa a frequentar o ambiente escolar e, também, quando as chamadas precocidades se tornam mais evidentes, como aprender a andar, falar, ler e escrever antes do esperado.
A constatação de que a criança é superdotada nem sempre é acompanhada por um laudo dado por psicólogo, neurologista ou psiquiatra. Mas, geralmente, é apenas com o laudo em mãos que as famílias conseguem fazer valer os direitos previstos nas políticas públicas da Educação Especial no Brasil, que preveem um plano de ensino individualizado, além da suplementação escolar.
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Criança superdotada: o que caracteriza a condição
Karlla Rodrigues é psicóloga Institucional e Educacional no Instituto Rogério Steinberg, uma instituição do Rio de Janeiro que atende crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social que foram identificados como superdotados.
Karlla explica que a superdotação, também chamada de altas habilidades, é uma condição inata que pode ser compreendida pela chamada Teoria dos Três Anéis. Segundo essa teoria, a superdotação é caracterizada pela presença de três componentes, que são: habilidades acima da média, criatividade e envolvimento com a tarefa.
“Nenhuma dessas dimensões é mais ou menos importante do que a outra, e elas também não precisam se apresentar em um mesmo nível. Ou seja, uma criança superdotada pode ter um nível maior de criatividade do que de envolvimento com a tarefa, por exemplo”, afirma Karlla.
A psicóloga reforça que é fundamental considerarmos os múltiplos tipos de inteligência quando falamos em habilidades acima da média. “Isso nos ajuda a desmistificar a ideia de que crianças superdotadas são apenas aquelas que se destacam em ciências exatas, como a matemática”, afirma. “Existem indivíduos com altas habilidades nos esportes, na música, outros que são grandes líderes e muito mais”, esclarece a especialista.
Diferentes tipos de superdotação
Karlla aponta que existem dois grandes grupos de superdotação: a criativa e produtiva, e a acadêmica. Mas, justamente por conta dos múltiplos tipos de inteligência, as combinações de habilidades são quase infinitas, o que torna cada indivíduo único.
No caso das altas habilidades acadêmicas o diagnóstico pode ser relativamente mais fácil por conta de testes e provas realizados na escola, além de testes específicos, como o de QI. Já a superdotação criativa e produtiva pode ser mais difícil de constatar, mas ainda assim é plenamente observável por pais e professores.
Karlla reforça também que é possível que uma criança seja superdotada em uma área de conhecimento, e apresente desempenho dentro da média em outra. Em outras palavras: não é porque uma criança é superdotada que ela vai apresentar desempenho excepcional em tudo aquilo que fizer.
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Como identificar uma criança superdotada
“A superdotação é, sobretudo, um comportamento escolar”, afirma Karlla. “Por isso, é preciso um olhar atento dos professores, pois muitas vezes são eles que percebem quando há um aluno que se destaca e que precisa ser acolhido e ter suas necessidades de aprendizagem atendidas para continuar se desenvolvendo”, reforça.
Karlla destaca que há alguns comportamentos e falas que costumam ser compartilhados pelas crianças superdotadas, e que podem ajudar suas mães, pais, cuidadores e professores a identificá-las, buscando o apoio de que necessitam. São eles:
- grande sensibilidade e empatia;
- compaixão por pessoas e animais;
- muita curiosidade;
- comportamento questionador, inclusive de autoridades;
- boa memória;
- criatividade;
- imaginação;
- iniciativa;
- liderança;
- vocabulário avançado desde cedo;
- forte senso de justiça;
- muito observadores.
Com relação à escola, são indivíduos que podem:
- ser considerados “chatos” por outras crianças e professores por questionarem muito;
- dormir em sala de aula;
- não ter interesse pela matéria por já saberem tudo o que o professor vai dizer;
- dizer que a escola é chata e que não aprendem nada;
- dizer que seus colegas estão atrasados;
- indicar que não aprendem nada na escola e por isso não querem mais ir.
Segundo Karlla, mesmo que não haja uma precocidade discrepante no comportamento da criança, falas como essas são sinais de alerta e precisam ser verificadas por pais e professores.
Como acolher crianças superdotadas
Depois de constatada a superdotação, a escola deve garantir que seja oferecido um ensino diferenciado para as crianças e jovens com altas habilidades. Esse ensino pode ser realizado tanto no contraturno da própria escola, quanto em universidades e centros de referência de cada cidade, mas é a escola que faz essa mediação. Fazem parte da educação especial para crianças superdotadas a elaboração de um plano de ensino individualizado, e também a suplementação escolar.
Sobre a suplementação, Karlla Rodrigues alerta que nem sempre o ideal é a aceleração escolar, ou seja, colocar a criança em séries mais adiantadas. Da mesma maneira, dar mais conteúdo do que já é oferecido em sala de aula pode ser encarado como um castigo e até mesmo levar a criança a mascarar suas altas habilidades para não ser excluída do convívio com os colegas: “é preciso verificar se esse é um interesse genuíno da criança para que ela não abandone os estudos por falta de interesse”, explica.
Pense, então, em uma criança com altas habilidades matemáticas. A não ser que a própria criança expresse o desejo de aprofundar ainda mais seus conhecimentos na disciplina, sua suplementação escolar não precisa, necessariamente, ser uma carga extra de estudos e tarefas sobre o assunto.
Pode ser que ela queira estudar sobre astronomia, sobre os dinossauros, ou sobre história da arte. Com isso, pode ser montado um portfólio de estudos específico para ajudá-la a dar vazão a esse interesse, mantendo-a engajada na escola.
Mas como saber a melhor maneira de proceder? A chave é, como sempre, ouvir a criança.
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Falar abertamente e, sobretudo, ouvir
Uma parte importante do acolhimento das crianças com superdotação é o diálogo para ajudá-las a compreender o que está acontecendo e o que elas desejam. “São crianças que, de uma certa maneira, já sabem que há algo acontecendo, mas não sabem que nome dar a isso. Quando explicamos, oferecemos a elas esse contorno, que ajuda muito a diminuir a angústia que a situação pode trazer”, explica Karlla.
Sendo assim, mães, pais, cuidadores e professores devem conversar com a criança sobre suas altas habilidades e todo o processo de identificação e diagnóstico, dando a ela a chance de falar sobre seus próprios interesses e aquilo que desperta sua atenção. Dessa maneira, será possível incluí-las no processo como um todo, inclusive na elaboração de seu plano de ensino individual.
Vale lembrar que uma criança superdotada, muitas vezes, tem desenvolvimento emocional típico da idade. Ou seja, são crianças sensíveis, que recebem e absorvem muita informação do ambiente, mas podem ter dificuldade de processar tudo isso e principalmente de elaborar suas emoções e expressá-las.
“Por isso, é muito importante estimular a busca por conhecimento, mas também procurar suporte emocional tanto para a criança quanto para a família”, reforça Karlla. “É preciso ter paciência, compreensão e garantir que as crianças sejam atendidas e acolhidas emocional, social e educacionalmente em todos os ambientes que frequentarem, para que possam ter um desenvolvimento mais sadio e integrado”, completa.
O convívio com outras crianças superdotadas também pode ajudar. Afinal, estamos falando de crianças que não se reconhecem nos seus pares, que podem sofrer bullying e ser isoladas e piorar seu desempenho “propositalmente” como uma maneira de contornar essa situação.
Karlla reforça que, como existem tipos diferentes de altas habilidades, uma criança pode ser superdotada e ainda assim não ter um bom desempenho escolar. “São coisas diferentes. Muitas vezes a criança pode apresentar uma série de comportamentos tido como negativos, como frequentemente se queixar da escola, dizer que não quer ir e que não aprende nada quando, na verdade, esses são sintomas de que suas necessidades não estão sendo atendidas”, conclui.
Estante Quindim
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