Ao falar em folclore brasileiro, as primeiras imagens que te vêm à mente são das atividades escolares que você fazia na infância, dos livros para crianças e dos desenhos que o seu filho traz para casa ao longo das semanas de agosto, não é mesmo? De fato, o tema é muito trabalhado na educação infantil a partir de alguns poucos personagens e suas lendas, mas isso não significa que o verdadeiro folclore brasileiro tenha apenas essa representação.
“Constituem o fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular”. É assim que começa o segundo princípio fundamental da Carta do Folclore Brasileiro de 1951, documento produzido a partir do I Congresso Brasileiro de Folclore. Só por esse trecho já é possível compreender que o assunto é muito mais amplo e complexo do que se costuma imaginar.
Para Andriolli Costa, jornalista, doutor em Comunicação e Informação pela UFRGS, pesquisador do folclore e do imaginário brasileiro, além de criador do site Colecionador de Sacis, há dois pontos fundamentais quando se fala sobre o tema: tradição e identidade. “A tradição é o veículo, é por ela que se dá o fluxo de transmissão de conhecimentos, e a identidade é característica fundamental. Se algo é único, então ele não pertence ao folk, pois deve ser sempre plural e parte de um grupo”, explica. Esse grupo, segundo Andriolli, pode ser fragmentado (sem apresentar, necessariamente, unidade nacional), ainda assim, é preciso que ele tenha um caráter identitário coletivo.
Mas se o conceito de folclore é tão complexo, por que temos a impressão de que ele assume um aspecto infantilizado no Brasil? Talvez a resposta esteja na maneira pela qual os contos de tradição oral foram registrados pela escrita por aqui.
Quem conta um conto aumenta um ponto. Mas e na escrita?
Imagine só: uma história contada oralmente a um grupo, recontada a outro e assim por diante. Alguns fatos podem variar, as entonações são diferentes, um detalhe ou outro acabam sendo acrescentados… “Tudo que é oral é passível de mudanças, de infixação. Quando você conta um conto, você aumenta um ponto, você muda coisas, altera a performance a partir de quem está te escutando. Se você está contando para crianças, talvez você modele a forma de contar; talvez você valorize coisas mais assustadoras justamente porque são crianças e você quer impressioná-las”, explica o pesquisador. Talvez, por outro lado, você tire partes que acha não serem apropriadas a pequenos ouvintes.
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A oralidade, segundo ele, é influenciada diretamente pela performance, sendo que a performance depende do contexto, de quem está ouvindo. “Isso gera uma riqueza de versões e de pluralidade”, acrescenta. Quando se fixa a história no texto escrito, porém, ela é destinada a um público-alvo determinado – no caso, falamos aqui do público infantil, mas temos uma questão de decisão editorial, não uma prerrogativa do texto escrito. O que acontece é que, “no caso das lendas, os textos de fixação no Brasil são, muitas vezes, escritos para o público infantil ou adaptados para ele, para que sejam consumidos por esse mercado”, diz Andriolli.
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O trabalho de Monteiro Lobato ao dar ao folclore status de literatura
Se ainda hoje o reconhecimento da importância das tradições culturais populares no Brasil parece patinar no senso comum, houve um tempo – muito tempo, na verdade – em que suas manifestações sequer poderiam chegar ao meio literário e circular entre os letrados. Isso só começaria a mudar, de fato, a partir do trabalho de Monteiro Lobato.
O escritor nascido em Taubaté, interior paulista, foi a principal figura brasileira a trazer as tradições populares para o texto escrito, enfrentando a resistência do público no começo do século XX. Há que se pontuar, entretanto, pontos controversos de sua história. “Lobato é uma figura muito polêmica e complexa, porque ele não foi simplesmente cria de seu tempo. Ele foi, sim, um agente anti-negros, que agiu de maneira racista e elitista”, pondera Andriolli.
Por ser um intelectual proveniente das elites, porém, o escritor usou seu capital simbólico e social para insistir no projeto que desagradava a sociedade de classes, como explica o pesquisador:
“Quando Lobato escrevia sobre o saci no jornal, as pessoas mandavam cartas para a redação dizendo que aquilo depunha contra o país que tentava se colocar enquanto uma elite intelectual. Temos que pensar que a virada do século XX é a virada da modernidade, em que o ocidente estava impactado pela ciência, pelo método científico enquanto única forma de acesso à verdade. Havia uma série de propostas de objetividade e verificabilidade que excluíam e marginalizavam tudo aquilo que era do âmbito do sensível, dos afetos, do imaginário… e a cultura popular tradicional entrava nisso”.
Assim, ao notar que nas bibliotecas havia um extenso material sobre mitologia celta, mas nada sobre mitologia brasileira, Monteiro Lobato partiu da própria experiência para enfrentar a opinião contrária e mudar a realidade de sua época.
Mas será, então, que a infantilização do folclore é culpa dele?
As adaptações editoriais e televisivas
É possível que você já tenha se deparado com algum vídeo de tom sensacionalista prometendo entregar a versão “sombria” do saci – “aquilo que ninguém nunca te contou”. Mas será que o fato de você desconhecer que o personagem do gorro vermelho de Monteiro Lobato chupa sangue de cavalos o torna, de fato, algo tão misterioso quanto certos produtores de conteúdo tentam fazer parecer? “Muitas vezes, usam os próprios textos que estão no ‘Inquérito sobre o Saci’, organizado por Lobato antes do Sítio do Picapau Amarelo. Então, é só questão do que chega e do que não chega para os diferentes públicos em um momento específico”, pondera Andriolli.
O inquérito a que ele se refere foi uma pesquisa que o escritor fez no Estadinho (versão vespertina do jornal Estado de S. Paulo), em 1917, a fim de reunir informações enviadas por leitores sobre o saci de diversas partes do Brasil. O produto desse trabalho foi o livro Saci-Pererê: o resultado de um inquérito (1918), o primeiro publicado por Lobato, reunindo depoimentos, imagens e outros materiais.
“O saci de Lobato é o saci de Lobato: ele chupa sangue de cavalos, tem medo da cruz, é um diabinho… Podemos até tensionar isso, mas ele puxa esses elementos todos de registros de folcloristas ou do próprio inquérito que ele traz”, ressalta o pesquisador. Então, se o saci do Sítio que chegou à televisão em 1977 e depois, em 2001, tem alguns comportamentos modificados, podemos dizer que a mudança de tom – ou a infantilização propriamente dita – se deve às adaptações da obra de Lobato, e não à obra em si.
“O que pode influenciar são os modos editoriais, as ilustrações, as adaptações para a TV que precisam buscar uma ludicidade maior, cores mais gritantes… Se você pega a descrição da Emília, por exemplo, a de Lobato é muito menos colorida e menos visualmente impactante do que a da televisão. Eu não vejo [essa infantilização] como sendo culpa de Lobato, mas como uma limitação do mercado editorial que viu as tradições populares como um material restrito apenas a um público-alvo, e esse público-alvo eram as crianças”, destaca Andriolli.
O pesquisador explica ainda que, por muito tempo, não houve espaço para pensar a fantasia como conhecemos hoje, voltada para um público jovem-adulto, que ganha relevância apenas na virada dos anos 2000. “Escritores de fantasia que queriam escrever material com inspiração folclórica nos anos 1980 e 90 só conseguiam ser publicados se fosse como produção infantil ou infantojuvenil”, acrescenta.
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Outras formas de pensar o folclore
Pintar o boto rosa, criar um boi bumbá e aprender a cantar músicas sobre o saci são atividades escolares típicas de agosto, mês em que se fixou o Dia do Folclore Brasileiro. As iniciativas podem ser frutíferas e, de fato, têm sua importância na educação infantil ao levar esses conhecimentos aos pequenos, que talvez não tenham a possibilidade de entrar em contato com essas informações fora do colégio.
Andriolli ressalta, porém, que o folclore brasileiro vai muito além dessas representações, e que ele deveria circular, sobretudo, dentro do círculo familiar. “É a família que tem que contar histórias para suas crianças, vicejar tradições, mantê-las vivas e presentes.
Que seja uma receita que sua avó fazia, uma prática de artesanato, um bordado que sua mãe te ensinou e você pode retomar, ensinando para os seus filhos… tudo isso é folk. Aquilo que faz parte do cotidiano e que vem do mesmo substrato do saci e da mula-sem-cabeça, que é o substrato do fluxo da tradição”, esclarece.
Certamente, essas manifestações podem ser alimentadas pela escola e por influências midiáticas, mas é importante ter em mente que elas dependem do presente para sobreviver.
“Elas se mantêm vivas enquanto persistem no coração do povo, na alma do povo, mas isso só é possível entendendo que o folclore é presente, é cotidiano, e não apenas aquelas lendas. O folclore está nas relações, no modo como cumprimentamos as pessoas com um aperto de mãos específico, está na cantiga de ninar para embalar crianças, na Espada de São Jorge na porta de casa para trazer proteção e no medo de passar embaixo da escada ou de quebrar um espelho e ter sete anos de azar”, finaliza o pesquisador, incentivando-nos a pensar o folclore para muito além do que estamos acostumados.
Estante Quindim
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