– “Não suba aí, porque você vai cair”
– “Olha, que correndo assim, você tropeça!”
Quantas vezes você repete essa frase, sem nem perceber, durante uma tarde em um parquinho ou em uma praça? Muitas? Saiba que é totalmente normal e significa que você está apenas tentando cuidar do seu filho da melhor forma. Embora esse instinto de proteger as crianças e, mais do que isso, de fazer tudo por elas, seja algo quase inerente a muitos adultos, é importante perceber a necessidade de relaxar um pouco o cerco. Pelo menos, de vez em quando.
É claro que ninguém quer que os filhos se machuquem e corram riscos desnecessários, mas é na primeira infância, por meio das atividades de rotina e, sobretudo, nas brincadeiras, que os pequenos dão seus primeiros passos rumo à autonomia e a independência. Além disso, é deixando que a criança tenha voz, tome algumas decisões (conforme a idade e as possibilidades) e lide com frustrações, que se constroem o senso de responsabilidade e a relação de confiança com você. Afinal, quanto mais seu pequeno cresce, mais oportunidades de fazer escolhas, sem que você esteja por perto, ele terá. Quando a hora chegar, é melhor que ele esteja preparado para isso, não é?
O ímpeto de controlar e de garantir a segurança, em qualquer situação, ainda que isso signifique restringir os filhos de algumas possibilidades, é grande para os pais. E nem dá para culpá-los. Basta assistir a um noticiário, acessar portais de internet ou simplesmente rolar o feed de qualquer rede social para se deparar com mil alertas de segurança e casos de tragédia. Dá mesmo vontade de colocar as crianças em uma bolha e encerrar o assunto, evitando que qualquer mal externo os atinja. Mas isso não é possível e nem desejável – para nenhuma espécie.
“Um filhote depende dos progenitores, mas, se não aprender a ter autonomia, morrerá rapidamente. Imagine um passarinho: se ele não aprender a voar, a mãe não vai colocar as minhocas na boca dele o tempo todo, né? Então, é uma questão de sobrevivência”, compara o pediatra e sanitarista Daniel Becker, autor da página Pediatria Integral (@pediatriaintegral) e ativista pela infância, do Rio de Janeiro (RJ). Assim como no mundo animal, a construção da independência é importante na infância e na adolescência… Não é fácil, mas controlar o seu instinto de blindar seu filho do mundo é essencial para que isso aconteça.
De acordo com a psicóloga Beatriz Carboneiro Rosa, membro do Instituto Perin (SP), o comportamento dos pais e das crianças se misturam e influenciam o processo do desenvolvimento da autonomia. “Ao focar no papel dos pensamentos e reações diante de certas situações, é possível observar como a superproteção pode estar relacionada a crenças irracionais, tanto dos adultos, quanto dos pequenos. Encontrar o equilíbrio entre proteger e permitir a autonomia é delicado e pode ser desafiador”, diz ela. É possível, mas leva tempo e começa muito cedo, nos pequenos detalhes.
Eu quero! Eu consigo!
A busca pela autonomia aparece bem cedo, quando seu filho ainda é um bebê. Os recém-nascidos ainda não sabem que são seres diferentes e separados da mãe. Essa percepção ainda leva alguns meses para acontecer. Um pequeno salto no tempo e, por volta de 1 ano e meio ou 2 anos, a criança não só sabe que é outro ser, como entende que tem os próprios impulsos, sensações, vontades. Ah, e ainda aprende uma palavrinha que pode ser bem desafiadora para os pais, mas que será importantíssima ao longo de toda a sua vida: “Não!”.
“Nesta fase, a criança já consegue se deslocar, começa a pegar as coisas, passa a ter alguma intervenção mais potente. Ela começa a falar, a se comunicar, entende a linguagem humana e quer que tudo seja do jeito dela”, diz Becker. O bebê percebe que ser contrariado traz uma sensação nada agradável e, como ainda não tem controle do próprio impulso, não vai aceitar que isso aconteça de maneira tão fácil, o que leva a um estado de irritabilidade, conhecido como birra, uma etapa normal do desenvolvimento, segundo o especialista.
Os pais, muitas vezes, ficam em situações complicadas – em que eles mesmos se veem com dificuldades de controlar também a própria resposta a essas crises. Embora seja difícil, é bem por aí que se inicia o desenvolvimento da autonomia. “É preciso escutar a criança, acolher as emoções dela, legitimá-las e, é claro, impor limites ao comportamento e às reações, mas não castigá-la”, explica o médico. É preciso lembrar que os ataques de birra não significam manipulação, desobediência ou maldade, como muitos pensam. “É a luta pela autonomia, um impulso vital profundo no DNA. Ouvir a criança é fundamental sempre”, diz ele.
Leia também: O poder do “não”: como ensinar a criança a impor limites claros em suas relações
Escutar a criança pode parecer algo pequeno. No entanto, quando seu filho fala, argumenta e sente que é ouvido, ele percebe que tem voz – e isso é um aprendizado essencial a longo prazo, com efeito lá na adolescência, quando vai precisar saber se expressar, debater, argumentar, e discernir quando uma ordem é correta ou não antes de simplesmente segui-la.
“Construir relações de confiança na infância é fundamental para o desenvolvimento emocional e psicológico das crianças, pensando, inclusive, na fase da adolescência que por si só já é uma fase desafiadora”, ressalta Beatriz. Ela lembra que a infância é o período que as crianças estão formando a percepção de si, do mundo e pessoas ao seu redor. “Os relacionamentos baseados em confiança e respeito ajudam na formação da autoestima e na compreensão de limites e responsabilidades”, completa. Tudo isso não acontece de uma hora para outra, e sim nos pequenos momentos do dia a dia, enquanto seu filho cresce e vive diferentes experiências.
Veja também: Autorregulação: é possível ajudar sua criança a se acalmar?
No mundo real, sim…mas por onde começar?
Além da compreensão e da escuta, há várias maneiras pelas quais os pais podem, aos poucos ensinar os filhos a conquistar e a exercer autonomia. Essas possibilidades vão se ampliando com a idade da criança.
“Os pais podem incentivar a tomada de decisões pequenas, como deixar a criança escolher o suco que ela vai tomar, quando for possível”, sugere a psicóloga Beatriz. Ela também orienta a modelar soluções para problemas. Para seguir no exemplo do suco, vamos supor que seu filho derrubou o líquido. Em vez de gritar ou castigar, o ideal é ensinar a criança que surgiu um problema e como ele pode ser resolvido. Parece pequeno, mas essa é a base para que, um dia, quando os problemas forem maiores, seu filho venha até você para pedir ajuda e não esconda, minta ou fuja, com medo de uma punição. E mais, que aprenda a resolver as questões que, eventualmente, surgirem em seu caminho.
No início, é possível proporcionar liberdade em ambientes que não ofereçam tantos riscos, como uma cama na altura do chão, no quarto, para que o bebê possa subir e descer sem ajuda, por exemplo. “A linha montessoriana estimula muito a autonomia. Existe a torre montessoriana, que permite que a criança fique na altura da pia para escovar os dentes, lavar o rosto, lavar as mãos, subir até a bancada da cozinha com segurança em volta para ajudar a lavar uma folha de alface, participar do preparo das refeições com tarefas compatíveis, que ela possa cumprir. A criança pode cuidar de si mesma, arrumar suas roupas, guardar o brinquedo na caixa. Tudo isso é incentivo”, exemplifica Becker.
Ter espaço para fazer pequenas escolhas, dizer o que quer e como se sente são formas de exercer a independência, aos poucos. Nada disso significa que a criança vai fazer o que quer, o tempo todo. Haverá situações em que ela terá de ouvir não também ou ser contrariada. Os limites são importantes, assim como o tédio e a frustração. Mas o importante é fazer isso por meio do diálogo e dos argumentos – e não simplesmente pelo autoritarismo.
Outra atividade simples e fundamental para a infância é o brincar não-supervisionado. “Claro, deve haver aquela supervisão de longe, só para garantir a segurança, mas permitindo que a criança se arrisque um pouco, que possa se equilibrar no tronco, subir em um pequeno barranco ou em uma árvore, rolar… A natureza oferece muitos desafios legais”, sugere o pediatra.
Em diversos casos, os pais acreditam que a criança está em perigo o tempo todo ou que, se não tiverem absoluto controle ou vigilância, algo ruim vai acontecer, o que leva a uma proteção excessiva – nada saudável. “É necessário avaliar possíveis exageros, calcular riscos e tentar ajudar a criança a criar habilidades de enfrentamento, em vez de impedir os filhos de fazer tudo, antes mesmo de tentar”, afirma a psicóloga.
Seu filho não precisa quebrar a perna para ser independente, mas lembre-se de que está tudo bem se ele ralar um joelho, de vez em quando. Nenhum pai deseja que o filho se machuque, propositalmente, e vai querer evitar que isso aconteça, enquanto puder. Mas, em certas situações, é precisa calcular entre o risco e os benefícios. As vantagens que ele vai obter brincando livremente são maiores das que terá se ficar somente no sofá de casa, assistindo TV. “Os esportes, as experiências escolares, a colônia de férias, dormir na casa da avó, dos primos, de um amigo, passar alguns dias longe dos pais… Com o tempo, esse acúmulo de experiências vai aumentando o ganho de confiança”, explica o médico.
Veja também: 10 atividades baratinhas para aproveitar um dia bonito e brincar ao ar livre
já no mundo virtual, muito cuidado!
Enquanto a preocupação com os riscos físicos ganhou um peso enorme, a atenção com os perigos que as crianças correm, enquanto estão sentadas na sala de casa ou no quarto, tem sido menor do que deveria e quase inexistente, em algumas famílias. É ali, bem na sua frente, com o celular ou tablet na mão, que os pequenos são menos supervisionados – já que os adultos acreditam que estão a salvo, por estarem parados, sentados, dentro de casa. Ao mesmo tempo, é neste espaço virtual que a segurança fica mais ameaçada.
Para Becker, essa falta de vigilância da infância na internet é um grande problema do mundo. “Os pais estão muito ocupados com as próprias tarefas e com o próprio vício no celular para cuidar do celular e do computador do filho, mas é algo indispensável”, alerta. “Além do prejuízo do ponto de vista mental, físico, emocional, cognitivo, a criança fica exposta a crimes online, ladrões, pedófilos, chantagistas, pornografia, nazistas, jogos de azar… Isso é abandono digital. É inadmissível deixar uma criança ou um adolescente sozinho por horas, sem supervisão, durante horas por dia”, defende.
Se a criança ou adolescente tem acesso a telas, isso precisa ser limitado e os pais têm o dever de acompanhar o que eles acessam e com quem conversam, além de oferecer todas as orientações de segurança e impor regras para o uso.
Veja também: Como as famílias podem estabelecer um consumo mais saudável de telas?
Independência + responsabilidade = confiança
Com todos esses cuidados e pontos de atenção, ao longo da infância, a criança vai ganhando cada vez mais independência. Mas é importante lembrar que, junto dessa independência, quase na mesma proporção, ela também ganha responsabilidades. “O crescimento vem não apenas com recompensas, mas com o acúmulo de deveres, como arrumar o quarto, cuidar da própria mochila, fazer o dever de casa e as tarefas escolares corretamente, ajudar nos cuidados da casa, colocar a mesa, lavar a louça…”, enumera o pediatra.
Muitos pais têm uma certa tendência a realizar as obrigações pelos filhos, a poupá-los do trabalho, a continuar controlando as atividades escolares e até a maneira de se relacionar com os outros, mesmo quando eles crescem. Isso acaba prejudicando o processo de formação e o ganho dessa independência que, como você já sabe, é uma questão de sobrevivência.
As frustrações e dificuldades também fazem parte do amadurecimento. “Os pais podem, sim, ser um apoio para as crianças, nos momentos em que elas precisam enfrentar adversidades. O que eles não devem é resolver essas dificuldades por elas”, diz o pediatra. Nada de solicitar outra prova, só porque seu filho tirou uma nota baixa ou de pedir que ele mude de sala, porque ele ficou separado dos amigos. “Os pais não precisam ir à escola exigir que o filho vá para a outra turma. O que eles podem fazer é ser um suporte para que ele faça novos amigos e mantenha as amizades antigas de outras maneiras, por exemplo”, sugere o médico.
Ao não permitir que seu filho tenha responsabilidades ou tentar blindá-lo de frustrações, os pais podem, a princípio, acreditar que estão exercendo a proteção, mas, na verdade, estão atrapalhando e até impedindo o processo de crescimento, o que prejudica a formação de adultos funcionais, capazes de resolver os problemas e tocar a própria vida, de maneira autônoma.
Direto do Instagram: 8 livros infantis para falar sobre 8 emoções
Estante Quindim
Conheça 3 livros infantis já enviados pelo Clube Quindim aos seus assinantes que falam sobre a construção de autonomia e a importância de lidar com frustrações na infância.