O que certamente já era uma clara percepção para muitos foi confirmado em um estudo publicado em outubro do ano passado: as crianças estão acessando a internet cada vez mais cedo em nosso país. A pesquisa TIC Kids Online Brasil 2023, realizada pelo Cetic.br|NIC.br, mostrou que, das quase 25 milhões de pessoas entre 9 e 17 anos que são usuárias de internet no Brasil, 24% (cerca de 5,9 milhões) tiveram o primeiro contato com o universo online até os 6 anos — dez anos atrás, pelo mesmo estudo, essa taxa era de 8%.
Para as crianças, estar inserido no ambiente virtual é também, mais dia menos dia, ser apresentado aos jogos online. E a seus perigos. São xingamentos, casos de racismo, machismo, cyberbullying, trollagem… Termos que, associados a outros tantos, caracterizam comportamentos considerados tóxicos. Eles são vivenciados em quase todos os jogos multijogador online.
No livro digital e gratuito O que as famílias precisam saber sobre games – Um guia para cuidadores de crianças e adolescentes, Evelise Galvão de Carvalho, psicóloga clínica e forense, explica que, em particular, o gênero conhecido como MOBA (Multiplayer Online Battle Arena) tende a ser um ambiente que favorece comportamentos perigosos. Algumas características levam a isso, entre elas: o anonimato dos jogadores, que utilizam apelidos nas disputas; a competição típica desse tipo de game, desenvolvido para despertar o desejo de vencer os adversários; e a cultura social em que os jogadores estão envolvidos, como a cultura de intolerância.
“O mundo digital é um reflexo da sociedade em que vivemos, então os perigos e riscos a que as crianças podem ser expostas são muito parecidos, porém, com outras roupagens, estéticas e estratégias. O fato de a criança estar em casa dá a sensação de que está protegida, mas não é verdade“, disse a psicóloga Evelise em entrevista ao Clube Quindim.
Jogos, crianças e números
Neste ambiente caseiro, a percepção dos pais confirma o quanto os jogos fazem parte da vida das crianças. Na Pesquisa Game Brasil 2023, a partir de pais entrevistados, foi possível concluir que 8 em cada 10 crianças possuem o hábito de jogar games.
Já o estudo TIC Kids Online Brasil 2023 perguntou a usuários de internet entre 9 e 17 anos se, ao jogar na internet, faziam isso conectados a outros jogadores. A taxa dos que responderam “sim” ficou em 52%. Quando questionados sobre a frequência, 22% afirmaram jogar conectados a outros jogadores mais de uma vez por dia. Seguido por: 11% ao menos uma vez por dia; 10% ao menos uma vez por uma semana; 5% ao menos uma vez por mês; 4% menos de uma vez ao mês; e 48% responderam que a questão não se aplica.
Em 2022, um dos temas abordados pela Pesquisa Game Brasil também foram os jogos online. Na ocasião, 36,9% dos entrevistados (a partir de 16 anos) disseram jogar online todos os dias – 28,7% entre três e seis dias na semana; 18% pelo menos uma vez por semana; 7,3% menos de uma vez por semana; 6,7% não jogavam online; 2,3% não souberam responder.
Embora os levantamentos brasileiros não abordem os perigos dos jogos online para crianças, uma pesquisa dos Estados Unidos, feita em 2021 pela ONG Anti-Defamation League, apontou que 60% (três a cada cinco) dos jogadores estadunidenses de 13 a 17 anos já sofreram algum tipo de assédio enquanto jogavam online. São cerca de 14 milhões de pessoas.
Os números reforçam a necessidade de discutir os perigos que os jogos online representam para as crianças, auxiliando as famílias a lidar com esse ambiente, que atravessa as telas e invade a realidade. “Qualquer tipo de violência que sofremos pode ter consequências como baixa autoestima, tanto em crianças como em adultos. Por mais que a violência seja virtual, ela é sentida no real assim como as suas consequências”, explicou a psicóloga Evelise.
O livro O que as famílias precisam saber sobre games, que tem Evelise como uma das autoras, elenca algumas das consequências para quem sofre com violência nos jogos online:
- Torna a experiência de jogar desprazerosa
- Mudanças de humor
- Ansiedade
- Baixa autoestima
- Perda de prazer nas atividades cotidianas
Mais dados sobre os perigos dos jogos online:
- 97 milhões de americanos jogam games multiplayer online;
- 5 a cada 6 adultos (83%) entre 18 e 45 anos experimentaram assédio em jogos online multiplayer;
- 10% dos jovens entrevistados (entre 13 e 17 anos) disseram ter sido expostos a discussões em jogos online sobre ideologia da supremacia branca (crença de que pessoas brancas são superiores e de que pessoas brancas deveriam estar no poder).
Fonte: ONG Anti-Defamation League, 2021.
Tipos de comportamento tóxico em jogos online
É importante que pais e outras pessoas que convivem com crianças entendam conceitos sobre os perigos existentes no ambiente dos jogos online. Alguns deles são:
- Assédio sexual: manifestações ameaçadoras, perturbadoras ou de cunho sexual ou íntimo. Inclui convidar outro jogador para sair sem interesse aparente da outra parte.
- Assédio verbal (flamming): usar o chat para enviar mensagens ofensivas.
- Cyberbullying: qualquer insulto, perseguição ou exclusão contra o jogador (por exemplo: relativos a suas condições físicas ou a erros no jogo, feito de modo recorrente.
- Scamming: comportamento de fraude dentro do jogo, como negociar um item e não pagar ou se passar por outra pessoa para roubar bens virtuais.
- Trapaça: violar as regras do jogo ao usar softwares que fornecem vantagens injustas (como ver através de paredes) sobre outros jogadores.
- Trollagem (griefing): algo como o jogador de má-fé, aquele que tem um comportamento antidesportivo. Por exemplo: matar companheiros de equipe e perseguir outro jogador para que ele não aproveite o jogo. De acordo com o site britânico Get Safe Online, algumas pessoas se aproveitam do anonimato nos games online para tornar a experiência frustrante para outros jogadores.
Racismo, machismo, homofobia e xenofobia podem ser classificados dentro de casos de assédio e cyberbullying.
Veja também: O que é xenofobia? Aprenda e endenda como falar sobre o preconceito contra o diferente com as crianças.
Há mais uma ameaça nos jogos online a se considerar quando os jogadores são crianças: a exposição à publicidade. De acordo com a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2023, 35% dos jovens entre 11 e 17 anos tinham tido contato com alguma propaganda ou publicidade em sites de jogos nos 12 meses anteriores ao levantamento.
“Vivemos em um mundo onde consumo e lucro são fatores priorizados, e isso não é diferente quando estamos falando de população vulnerável como crianças. Podemos equiparar isso com a época em que existia propaganda de brinquedos na televisão. Muitas das publicidades vão focar este público e acredito que se precisa de um trabalho em conjunto de políticas públicas de proteção e o papel dos pais e cuidadores em conversar, monitorar e colocar limites“, opina Evelise.
Outros perigos, ainda, envolvem a privacidade de quem joga online. É sempre importante orientar as crianças a não criar nomes de usuários parecidos com seus nomes verdadeiros ou que tragam informações sobre sua idade ou local onde moram. O guia gratuito Internet Segura, produzido por Cert.br, Nic.br e CGI.br, traz mais dicas, em versões para crianças, adolescentes, pais e educadores.
Veja também: Crianças e marcas: consumo, logo existo? Sobre o ter e o ser a partir de coisas.
O que as famílias podem fazer?
Além de buscar conhecimento sobre os perigos e cuidados na relação entre jogos online e crianças, é importante que mães e pais saibam que há benefícios nesse hábito. “Os pontos positivos são inúmeros, tanto em âmbito de socialização como no desenvolvimento de habilidades motoras, cognitivas e psicológicas. Existem diversas categorias de jogos: os de entretenimento, educativos e os jogos sérios. Esses dois últimos têm como objetivo além do divertimento (que, sim, é um elemento importante nos jogos) ensinar habilidades específicas das mais variadas“, elenca Evelise.
Para manter a atenção em alerta e se beneficiar do que os jogos online têm a oferecer para as crianças, a psicóloga faz uma analogia com os ambientes fora do virtual: “Gosto de pensar no mundo digital como um parquinho público em que você leva uma criança para brincar. Várias das recomendações seriam as mesmas, tais como: não converse com estranhos; não compartilhe informações pessoais; brinque com crianças de idades semelhantes; não compartilhe fotos; e, em qualquer situação de risco, conte para seu responsável“. Outra dica para manter em mente é estimular a criança a jogar com amigos e não com anônimos.
Os pais e outras pessoas do convívio da criança também devem se atentar à classificação etária dos jogos. Neste ponto, o envolvimento da família com o que a filha ou o filho está acessando é fundamental. Um dos primeiros passos é pesquisar quais jogos são adequados para determinada idade antes de realizar uma compra ou fazer um download. E, relembrando a analogia com o parquinho, é necessário tomar consciência do tipo de contato virtual que a criança em questão tem preparo para lidar, além de quais ferramentas ela possui para reagir a possíveis perigos.
“Jogar online acarreta contato com outras pessoas, então, vale a reflexão de se a criança está preparada para identificar possíveis riscos, assim como se existe um canal de comunicação aberto e de qualidade desenvolvido. Caso aconteça alguma coisa, ela procuraria você para contar e pedir ajuda? Ou isso é um tabu e não se conversa em casa sobre os riscos?”, reflete Evelise.
Acertados os primeiros passos, a psicóloga segue com as orientações. “Os pais e cuidadores precisam estar atentos e monitorando as atividades online de seus filhos. Caso a criança venha ser a vítima [dos perigos dos jogos online], é importante ensinar a utilizar os canais de denúncia, assim como também identificar isso como uma violência e que não está certo ter esse comportamento”, orienta Evelise. A importância do canal de comunicação aberto em casa segue primordial para refletir se o ambiente onde a violência está acontecendo “é um lugar adequado e saudável para se estar. Jogos são ambientes de entretenimento e diversão e não de violência, não se pode naturalizar esse comportamento nos jogos”, continua a especialista.
Quem precisa de auxílio para lidar com casos, por exemplo, de cyberbullying, pode recorrer ao Helpline, canal de ajuda online oferecido pela SaferNet.
E quando a sua criança cria o problema?
Monitorar o que as crianças fazem em ambientes online é fundamental também para o outro lado da moeda. “Normalmente não se enxerga as crianças como sendo elas as agressoras, mas isso acontece (…). Nessa situação, precisa-se de um diálogo muito sincero em relação ao comportamento, mostrando as consequências desses atos e o foco em uma educação pautada no respeito, empatia e paz. Caso o comportamento seja recorrente, cabe também a procura de um profissional da saúde, como um psicólogo, que poderá auxiliar a criança a lidar com isso, além de orientar os pais e cuidadores”, pontua Evelise.
O livro O que as famílias precisam saber sobre games traz mais recomendações:
- Crianças seguem modelos, portanto, fique atento ao seu comportamento diante de frustrações com jogos (como quando seu time do coração perde uma partida);
- Oriente a criança a pensar antes de falar coisas desagradáveis no chat de um jogo. Ela pode, por exemplo, se irritar com um jogador novato. É possível lembrá-la de que todos já tiveram pouca experiência.
Muito se fala também sobre a possível influência dos jogos violentos sobre o comportamento dos jovens. Aqui surge, mais uma vez, a relevância da classificação etária daquilo que a criança consome, seja um game, um filme ou uma série. A psicóloga Evelise esclarece que, segundo recomendação da Sociedade Americana de Pediatria, crianças até os seis anos não deveriam ter contato com nenhuma mídia violenta.
“Vale ressaltar que pesquisas recentes apontam que somente o jogo não é capaz de influenciar uma criança a se tornar violenta, é um conjunto de fatores. O que os estudos afirmam é que crianças que já têm comportamentos agressivos, após jogar um jogo violento, ficam por um período mais violentas. Mas isso aconteceria também com ela sendo exposta a uma luta, por exemplo”, continua a especialista. “Por isso, novamente, cabe aqui o diálogo sobre certo e errado, ensinar crianças a lidar com a sua raiva entre outros sentimentos”, conclui.
Se você gostou desse conteúdo, o Clube Quindim, de assinatura de livros infantis, tem seleções de obras que podem ajudar a refletir sobre os temas que permeiam os perigos dos jogos online para crianças. É possível encontrar opções de títulos sobre diversidade e sobre respeito às diferenças, iniciando uma conversa sobre cyberbullying, ou conferir uma seleção que colabora com o entendimento das emoções.
E, é claro, mantenha o livro como um aliado em casa. A leitura é uma ótima alternativa para diminuir o tempo das crianças nas telas. Você e seus filhos podem “viajar” por livros de aventura ou escolher obras que estimulam a criatividade para bons momentos bem além do mundo virtual.
Estante Quindim
Conheça a obra Todos contra Dante, uma história impactante que aborda o cyberbullying e suas consequências.