Nascida na cidade de San Sebastian, em 1979, foi aos 34 anos que Olga de Dios, então formada em arquitetura e ilustração, publicou o seu primeiro livro infantil, Monstro Rosa. Desde então, suas obras escaparam da pequena cidade do litoral espanhol e já foram traduzidas para 14 idiomas, sendo publicadas em mais de 20 países. Para a Família Quindim, no entanto, Olga de Dios dispensa apresentações. Os assinantes do Clube, que já receberam 7 obras da autora, sabem que Olga é garantia de uma leitura encantadora e de páginas com ilustrações que enchem os olhos.
Em sua passagem pelo Brasil, Olga se encontrou com Renata Nakano, idealizadora e diretora-geral do Clube Quindim, para conversar sobre os livros transformadores que ela criou e que enviamos para nossos assinantes no país inteiro. Confira a entrevista exclusiva:
Clube Quindim: Olga, os seus livros têm um caráter autobiográfico? Queríamos saber se você é, de certa maneira, um Pássaro Amarelo, que assim como o seu personagem famoso, leva essas suas invenções por todo o mundo...
Olga de Dios: Eu acredito que sim. Todo o meu trabalho é muito pessoal, então acredito que seja inevitável que tenha algo de mim naquilo que crio. Ainda que todos os meus personagens sejam monstros, como Rãs com Três Olhos e Pássaros Amarelos, acho que todos expressam sentimentos humanos, realidades sociais e vivências do nosso mundo.
Em relação ao Pássaro Amarelo, eu criei esse livro quando minhas obras começaram a chegar em muitas pessoas e países além da Espanha. Haviam começado a traduzi-los para outras línguas e ali ficou muito claro para mim que eu queria contar uma história para explicar como é importante compartilhar nosso trabalho e nossas ideias livremente.
CQ: Esse é um ponto muito interessante porque muitos dos seus livros estão disponíveis gratuitamente no seu site para baixar. Você quer falar um pouquinho mais sobre a ideia dessa disseminação? Você acha que isso ajuda a popularizar, a levar a obra a mais lugares?
OD: Sim! Quando fiz o meu primeiro livro, Monstro Rosa, eu não imaginava que ia chegar a tantas pessoas no mundo. Então, a partir do segundo livro, comecei a me informar sobre licenças livres, Creative Commons, cultura livre e a aprender de que maneira poderia liberar meus conteúdos na internet para que chegassem a mais gente.
Além disso, sou espanhola, escrevo em espanhol, mas há muitos outros lugares no mundo onde se fala minha língua, muitos deles aqui no continente americano, e percebi que em muitos desses lugares não chega o mercado editorial, e meu trabalho era muito valioso nessas escolas. Então, nesse momento, comecei a liberar meu trabalho para download e ele começou a ser utilizado em muitas escolas da América Latina e da América Central, onde, mesmo sem dispor do livro físico, tinham disponível meu trabalho, e as professoras e professores podiam utilizá-lo em suas aulas. Para mim, é muito importante que meu trabalho chegue a maior quantidade de pessoas possível.
CQ: Muitos dos seus personagens são monstros e você fala bastante sobre como eles podem representar qualquer pessoa. Então, eu queria ouvir sobre a construção de personagens, sobre como você escolhe as suas características. Como acontece esse processo criativo?
OD: O que eu mais gosto é de criar personagens. Eu crio personagens todos os dias, e faço isso por meio da arte digital, do desenho, com diferentes técnicas, com canetas marcadoras, com giz de cera, tinta spray. Crio personagens muito diferentes, mas faço muito esforço para que todos, de algum modo, possam representar qualquer pessoa e acredito que, para isso, a arte é muito valiosa. Não preciso desenhar uma menina ou um menino, posso fazer um personagem fictício com o qual qualquer pessoa pode se identificar. E o que utilizo para isso, quais as ferramentas? Uso as cores, as formas, a expressão gráfica. Não preciso usar uma cor de cabelo ou um tipo de pele para representar um personagem, e acho que assim consigo criar personagens que sejam mais abertos e mais legais também.
CQ: E muito livres, né? Você me contou que às vezes as pessoas chegam até você e fazem alguma interpretação sobre quem seria aquele personagem, quais características, quais vivências que ele passou, por exemplo, que é totalmente distinta da que você pensou inicialmente para a obra, não é?
OD: Sim, acho que é bonito que as crianças possam se identificar, mas também é interessante que descubram um mundo que lhes pertence e lhes abra as portas a outras coisas. Sempre dizemos que os livros são espelhos onde nos vemos refletidos, mas também são janelas que se abrem a um mundo maior.
CQ: Isso se reflete inclusive na construção do livro Leotolda, e a gente queria muito fazer essa pergunta: você já desenhou a Leotolda?
OD: Não. Fiz o livro da Leotolda num momento em que já havia muitas escolas que desenhavam meus personagens, e eu via como os copiavam e até os pintavam igual ao desenho que eu havia feito. Eu tento estimular a criatividade, tento fazer tudo diferente e senti que não estava conseguindo. Então, anotei em meu caderno: “tenho que fazer um livro em que nunca desenhe a protagonista”, e essa foi a minha premissa. E o que acontece em Leotolda é que são as leitoras e os leitores que têm que criar a protagonista. Então nunca a desenhei e nunca vou desenhá-la.
CQ: Outra coisa que eu queria perguntar é sobre um pedaço específico dos seus livros, porque cada pedacinho deles tem uma intencionalidade, um pensamento, uma reflexão, nada é gratuito, e percebemos uma característica especial nas dedicatórias. Você pensa nas dedicatórias antes, durante ou depois do livro?
OD: Obrigada, é uma ótima pergunta, pois na verdade as dedicatórias são a última coisa que crio. Lembro quando terminei o primeiro livro, que foi muito difícil, foi um processo acadêmico, e disse a uma amiga: agora só falta escrever a dedicatória. Então, para mim é um momento muito importante. Eu utilizo essas dedicatórias para ser mais explícita, para detalhar a quem estou me dirigindo com essa história. Por exemplo, em Rã de Três Olhos dediquei o livro a todas as pessoas que lutam para defender nosso planeta, porque para mim essa personagem é uma ativista que luta pelo meio ambiente. Gosto de fazer dedicatórias humanas, reais, e que se conectem com a sociedade aqui e agora.
CQ: Você costuma falar bastante sobre como as crianças são exigentes com relação aos seus livros. Eu queria saber se você percebe uma diferença nas leituras das suas obras entre o público infantil e o público adulto. Como que é a sua experiência com relação à receptividade do seu livro entre diferentes faixas etárias?
OD: Eu, na verdade, não penso tanto nisso. Crio meus livros como obras de arte através das quais expresso minhas ideias e meus desenhos com honestidade. Então, não penso tanto na idade, no tipo de pessoa que está lendo. Quando você faz qualquer obra de arte não pode controlar o que as outras pessoas vão sentir ou o que vão interpretar. Minhas obras têm muitos matizes, muitos detalhes, e as crianças os leem e as interpretam com seu código, com sua experiência, e quando pessoas adultas as leem, somam a sua experiência. Mas eu não me preocupo tanto com a recepção.
O que sei é que, quando meus livros chegam às escolas por meio das professoras e dos professores, são esses profissionais da educação que os transformam em ferramentas educativas. Não sou eu que faço isso senão as pessoas adultas que acompanham a leitura. Visito muitas escolas na Espanha e em outros países e estou muito contente que vou poder visitar escolas no Brasil e descobrir como os educadores brasileiros usam meus livros, como decodificam minhas mensagens para todas essas crianças.
CQ: Queria falar agora sobre um lado do seu trabalho que os brasileiros conhecem pouco, que virou a exposição Spray Cocktail Party e que aborda o seu processo criativo. Conte um pouco esse trabalho para os seus fãs aqui do Brasil.
OD: Sim, muito obrigada. Este é um catálogo em que mostro os quadros que pintei para minha primeira exposição, que aconteceu em Madrid. Todas as ilustrações que veem em meus livros foram criadas digitalmente. E, além de criar digitalmente, crio sempre em papel, desenhos pequenos, mas senti vontade de pintar em maior escala. Então, comecei esta série de quadros em que todos são personagens criados por meio da pintura, pintura em spray sobre a madeira. Criei universos novos e mundos que não existem onde podemos descobrir novas formas de nos expressar que vêm da pintura física, do contato com a tela, e o que faço é transformar tudo isso em personagens.
CQ: Além dos personagens muito marcantes, toda a construção da coleção Monstro Rosa se dá de uma maneira muito criativa que celebra a diversidade e é pensada em cada detalhe. Como foi o processo de criação dessa coleção ao longo do tempo?
OD: A primeira vez que desenhei esse universo foi em Monstro Rosa, meu primeiro livro, e eu tentei contrastar esse mundo onde o Monstro Rosa chega com o que ele nasceu, que é um mundo homogêneo, normativo, onde todas as casas, árvores e personagens são iguais. Quando criei o mundo onde ele chega, fiz tudo ao contrário: todas as casas são diferentes, de cores diferentes, e até as árvores são diferentes.
À medida que fui criando mais livros da coleção, eu trabalhei cada vez mais nesse cenário. Se reparar bem, as árvores no começo são árvores inventadas, que não são de nenhuma espécie real, mas, à medida que evoluí e fiz mais livros, já são árvores específicas de espécies distintas. Eu me esforcei para que toda essa diversidade não ficasse somente nos personagens, mas também na biodiversidade, na natureza. Outra coisa que fiz foi tirar todos os elementos que não gosto, por isso nunca há carros e os personagens circulam de bicicleta. Quis criá-lo como um mundo maravilhoso.
CQ: É interessante como a natureza em si é tão diversa e tão rica e serve como fonte de inspiração também.
OD: Sim, é muito importante dizer isso. Essa natureza que eu represento é muito influenciada pelas minhas viagens porque, desde que comecei a publicar em outros idiomas, pude viajar a outros lugares e pude desenhá-los. Eu tinha muita vontade de vir ao Brasil, porque a natureza aqui é muito poderosa e queria incorporá-lo nesse universo.
Se comparar o primeiro mundo, em Monstro Rosa, por exemplo, com o último em Monstro Azul, verá que está muito mais rico, mais diverso, com diferentes tipos de folha. Tive ajuda de educadores ambientais para criar a última página de Rã de Três Olhos. Lá toda a biodiversidade está representada e em um equilíbrio saudável.
CQ: Aqui no Quindim falamos muito sobre letramentos do futuro, um conceito que a Carolina Sanches usa em um dos artigos da Revista Quindim e que diz respeito a essa capacidade de imaginar novos futuros – o que, de certa maneira, passa por uma visão mais esperançosa em um momento em que narrativas distópicas tem tomado conta do imaginário. Queria saber, Olga, se você acredita que os seus livros e os seus personagens podem contribuir para um futuro melhor ao desenvolver a empatia, a compreensão e o acolhimento de uma diversidade maior?
OD: Sim. Tenho certeza de que os conteúdos recebidos na infância influenciam na construção das vidas das criança. Tenho certeza também de que esses primeiros anos de vida são os anos em que se consolida a identidade e as características de cada pessoa, e acho que todos esses valores positivos que queremos em nossa sociedade, de tolerância, de respeito, de resolver os conflitos sem violência, são construídos desde a primeiríssima infância.
Acredito que as referências recebidas nessa fase são muito importantes para construir os homens e as mulheres que as crianças serão no futuro. Mas queria dizer outra coisa, porque falamos muito das infâncias como uma projeção do futuro, mas eu ultimamente acredito que temos que entender as infâncias em seu presente, como são hoje, e temos que nos preocupar em defender suas infâncias, seus direitos como crianças com liberdade.
CQ: Essa é a maneira como o Quindim compreende a infância, enquanto presente, enquanto voz, enquanto cidadão – e não somente como vir a ser...
OD: Sim, há muita preocupação em inverter. A educação dos nossos filhos é pensada para o futuro, um futuro que nós nem sabemos como vai ser. Quando escrevi o último livro, Bicho Bolota, queria falar disso. O Bicho Bolota é um personagem que luta para construir sua identidade, porque não a encontra representada no mundo adulto em que vive. Então, queria falar da importância de apoiar essas infâncias porque, principalmente nesses últimos anos, todos esses discursos de ódio contra pessoas trans e contra as infâncias trans foram muito duros, mas acredito que não podemos esquecer que a sociedade e as pessoas adultas têm que proteger as crianças.
Estamos aqui para protegê-las e, a partir de uma visão adultocentrista, acreditamos que sabemos o que é melhor para as crianças, porém, no caso, por exemplo, das infâncias trans e das infâncias com identidades não-binárias, encontramos exemplos de crianças que sabem muito bem quem são, apesar de não receberem apoio ou não terem referência no adulto que têm ao lado. Então, creio que todos nós estamos aqui também para protegê-los, para defendê-los, e para acompanhá-los nesse caminho de construção de identidade com liberdade.
Assista à entrevista na íntegra: