Era uma vez uma menina que sempre soube que seria atriz. Antes mesmo de começar a fazer teatro na escola, já fazia apresentações em casa, para sua família. Um dia, a mãe dela inventou uma história, chamada “Os Entalados”, e essa passou a ser ‘a história’ que a menina sabia contar.

Com o tempo, a menina cresceu, foi estudar Desenho Industrial na faculdade e, num trabalho acadêmico, ilustrou a capa e os personagens da história que sua mãe havia inventado e que acabou virando livro. Na ação de lançamento da obra, em um hospital pediátrico, os exemplares doados para as crianças vinham acompanhados de um grande presente: a contação da história pelas autoras.

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Era uma vez… Fafá Conta

A menina da história se chama Flávia Scherner, mas talvez você a conheça como Fafá Conta. Depois de contar histórias no hospital infantil, Fafá foi chamada para o aniversário de um ano da filha de uma amiga. Ela diz que o momento foi um ‘credo, que delícia’: “Eu errei muito, mas foi ótimo para perceber que a contação de histórias tinha um potencial enorme, e que eu queria trabalhar com isso”, conta Fafá.

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Foto Imagem disponibilizada pela autora / Arte: Clube Quindim.

Passados quase dez anos, uma pós-graduação e muitos estudos e experiências, a menina se tornou referência nacional na arte de contar histórias. Por isso, convidamos Fafá para dividir com a Família Quindim algumas dicas bem práticas para quem deseja começar a contar histórias para as crianças da sua vida, ou incrementar as contações que já andam acontecendo por aí.

1. O que você não precisa ter

Como contar historias para criancas 13 dicas com Fafa Conta meio2

Fafá diz que, antes de falar sobre o que precisa, é melhor dizer logo o que não precisa ter para contar histórias, porque muitas vezes são coisas que as pessoas imaginam que sejam necessárias e, por não tê-las, se tornam impeditivos para começar. Então, ela explica: “Não precisa fazer curso de contação de histórias, ser atriz ou ator, ser comunicador social. Não precisa decorar a história, ter vários acessórios, adereços, apetrechos, bonecos, fantoches, figurino específico, nada disso”.

E do que é que precisamos, afinal? ”Ter uma boa história e a vontade de contá-la. Só isso”, explica Fafá. “Todo o resto é perfumaria, como dizem, e você só vai usar se for para trabalhar a favor da história. Pode se perguntar: isso aqui é algo que vai me ajudar a contar melhor essa história? Se a resposta for não, ou se for algo que você quis apenas porque achou que seria bonitinho, então não precisa. Se você tem uma boa história e a vontade de contar essa história, vai ser sucesso. Isso é tudo o que você precisa.”

2. Figurinos e adereços não podem chamar mais atenção do que a história

Na linha do “menos é mais”, Fafá explica que é preciso tomar cuidado com os elementos que vão além da história em si, como roupas, perucas, bonecos, maquiagem etc., para que não chamem mais atenção do que a história que se quer contar.

Inclusive, ela alerta para a necessidade de ensaiar quando for feita a opção por utilizar esses recursos, não só para testar a melhor maneira de organizá-los, evitando que na hora H se perca o ritmo da contação procurando objetos, como também para evitar tropeções e restrição de movimentos causados por roupas, por exemplo.

“Quanto mais objetos e adereços você usa, mais seguro você tem que estar da história e de toda a parafernália que você está usando. A chance de tudo isso atrapalhar é muito maior do que de ajudar”, reforça.

3. Esteja presente (de verdade)

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Estar conectado com o momento, com a história e com as crianças que estão com você é fundamental para uma boa experiência. Seja com o apoio do livro ou não, com ou sem adereços, é preciso estar entregue ao momento para que ele seja verdadeiramente mágico e transformador para as crianças (e para você, também).

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4. Conheça a história com antecedência e, se puder, pratique

Praticar nunca é demais. É natural que essa seja uma dica mais voltada para quem pretende seguir profissionalmente, mas se você quiser contar histórias na turma da escola do seu filho, por exemplo, vale a pena treinar em casa algumas vezes antes, especialmente se você for usar qualquer tipo de recurso.

“A gente deve se apropriar da história que vai contar. Se na hora você esquece uma palavra, mas está apropriado da história, você continua contando com as palavras que vão surgindo, não fica travado. A mesma coisa com relação ao uso de objetos – é preciso praticar para na hora não ficar perdido, procurando onde está”.

Mas, antes que isso se torne mais um item na lista de tarefas a serem realizadas, Fafá diz o seguinte: “Eu sou mãe, eu sei quem tem coisas que são inviáveis. O ideal é ler antes, em voz alta, mas se não der tempo, lê na hora mesmo. Se errar a entonação, diz que vai falar de novo porque não ficou bom e tudo bem!”.

5. Mais do que a faixa etária, preste atenção nos temas de interesse da criança

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Na hora de escolher as histórias a serem contadas, Fafá sugere se deixar guiar muito mais pelos assuntos que interessam a criança do que pela faixa etária propriamente dita, porque pode acontecer de um pequeno de 7 ou 8 anos gostar muito de uma obra recomendada para bebês, por exemplo, e não há nada de errado nisso!

Outra possibilidade é focar nos assuntos que você deseja apresentar para a criança, para despertar ou aguçar seu interesse pelo tema. Vale a pena, também, fazer um revezamento: um dia é você quem escolhe a história, no outro é a criança.

Sempre que possível, escolha histórias que vocês gostem para facilitar o envolvimento de todos: você, que vai se divertir ao contar, e a criança, que estará mais receptiva para ouvir.

6. Ler é uma coisa, contar é outra!

Fafá destaca que contar uma história pode ser diferente de ler uma história. Quando estamos contando, geralmente não temos o livro, contamos com as palavras da nossa cabeça e criamos as imagens a partir dessas palavras, com gestos etc. Quando lemos, temos o objeto livro nas mãos.

“Mas existe também algo que está entre uma coisa e outra. Eu posso estar com o livro nas mãos, mostrando as ilustrações, e contando a história com as minhas palavras, sem estar necessariamente lendo. Se o livro é ilustrado e eu for só contar, vai faltar a informação da imagem, então precisa ter esse olhar”, explica.

Agora, se a intenção é ler, Fafá diz que é preciso seguir as palavras escolhidas pelo autor, sem mudar por achar que a criança não vai entender. “De que maneira uma criança consegue aumentar o repertório e o vocabulário dela se a gente muda a palavra pra facilitar?“, questiona.

Em outros momentos, pode-se usar o livro como base, mas deixando claro que vão contar a história usando as próprias palavras. Essa é uma alternativa muito interessante para conhecer a interpretação das crianças sobre a história, promovendo diálogos e trocas muito importantes para estreitar ainda mais os vínculos entre vocês.

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7. Observe o ritmo da criança para calibrar suas expectativas

Muitas vezes achamos que uma contação de histórias só foi realmente boa se as crianças ficam super engajadas e fazem mil perguntas depois (e, às vezes, durante também), mas isso não será necessariamente nem uma verdade, nem tampouco uma regra.

Em alguns dias você pode perceber que a criança está mais cansada, desinteressada, e tudo bem parar e deixar a leitura para outro dia. Em outros, ela vai ter mil perguntas para fazer. É preciso observar o que está acontecendo para saber a melhor maneira de conduzir, ajustando suas expectativas de acordo com aquilo que a criança está disposta a oferecer no momento. Levar em conta o tempo de atenção de cada um também é muito importante, pois além das questões individuais, a idade e os acontecimentos do dia também podem influenciar a experiência.

Fafá faz um alerta importante: “A gente fica se comparando com perfis de blogueiras de livros, com filhos que trazem questões maravilhosas e conversas potentes e se pergunta sobre as nossas crianças. Mas o fato de estarem calados, ou aparentemente dispersos, não significa que não estejam acompanhando a história. Muitas vezes, a criança vai levar dias para processar o que ouviu e só depois vai trazer alguma pergunta. Pode ser também que faça apenas uma reflexão com ela mesma, e tudo bem”, explica.

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8. Encoraje o diálogo e esteja aberto para ouvir

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Para incentivar o diálogo após as histórias, quer aconteça imediatamente depois da contação, ou ao longo dos dias, Fafá sugere fazer perguntas que ajudem a pensar e valorizem a inteligência e o senso crítico das crianças, em vez do fatídico “o que você achou dessa história”, ou “o que essa história quis dizer?”.

“Prefira saber se a criança se identificou com algum personagem, como ela se sentiu, se lembrou de alguma coisa, o que teria feito se a situação da história acontecesse com ela… E não precisa só perguntar, como se estivesse tomando lição e tivesse uma resposta certa e uma errada. Fale você também!”, diz. Ela destaca, ainda, a importância de nos mantermos abertos para que a criança não fique com a sensação de que precisa responder alguma coisa que nos agrade.

9. Se for antes do sono, leve isso em consideração para escolher as histórias

Há algumas histórias em que a criança pode dar muitas risadas, ficar agitada, com medo ou apreensão. Talvez essas não sejam as melhores para a hora de dormir. Se possível, prefira histórias mais calmas, que ajudem a criança a relaxar e a embarcar no sono. “As histórias têm esse poder de ajudar a organizar pensamentos, sentimentos e emoções, então podem ajudar na hora do sono”, diz Fafá.

Caso surjam dúvidas sobre o vocabulário, procure responder na hora. Perguntas mais “filosóficas” podem ser respondidas, se o soninho permitir ou serem deixadas para o dia seguinte.

10. Escolha um ambiente propício

A contação de histórias deve ser feita em uma atmosfera que contribua para a atenção e envolvimento da criança. Sendo assim, televisão ligada, celular por perto, pessoas passando, falando e outros barulhos são difíceis de lidar e certamente vão dificultar uma escuta atenta.

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11. Capriche na entonação

Você não precisa fazer mil vozes diferentes para os personagens da história, mas caprichar na entonação é fundamental. Fafá orienta a pensar na intenção daquela fala para saber a melhor maneira de fazer: “A intenção é ser engraçado, é fazer suspense, é dar medo? Então a voz precisa acompanhar isso, como se fosse uma montanha-russa, que sobe em um momento e desce em outro”, explica.

12. Deixe as ilustrações falarem por si (e dê uma ajudinha se precisar)

Livro ilustrado uma mistura entre palavras, imagens e objeto. Imagem do livro "Concerto de piscina", de Renato Moriconi
Página do livro “Concerto de Piscina“, de Renato Moriconi. Crédito: Clube Quindim

No caso dos livros ilustrados, pode acontecer de as imagens contarem uma história paralela àquela que se desenrola com as palavras. Nesses casos, você pode deixar que a criança descubra por si mesma o que essa outra narrativa guarda, ou dar uma ajudinha se for o caso.

“Geralmente, quando a criança gosta muito de um livro, pede para que a história seja contada muitas e muitas vezes. Assim, na primeira vez você pode deixar a criança livre, na segunda perguntar se ela percebeu alguma coisa, na terceira indicar que tem algo acontecendo que é diferente do que dizem as palavras e por aí vai”, diz Fafá.

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13. Divirta-se!

Essa, provavelmente, é a dica mais importante: o contador de histórias precisa se divertir também! “Leia com a criança e não para a criança, lembre-se de que você está lendo para si mesmo também! Vamos nos divertir, vai ser gostoso! Aproveite esse momento!”, finaliza Fafá.

Estante Quindim

Conheça 3 dicas de livros para você se aventurar com os pequenos e as pequenas na contação de histórias!

Conte mais uma vez (autor Weberson Santiago, editora Yellowfante)
Conte mais uma vez, de Weberson Santiago
Histórias cansadas (escritor Mario Levrero, ilustrador Diego Bianki, editora FTD)
Histórias cansadas, de Mario Levrero e Diego Bianki
Não confunda (autora Eva Furnari, editora Moderna)
Não confunda, de Eva Furnari