Talvez o título que dei a essa coluna cause estranheza em algumas pessoas, pois em geral nas falas antirracistas ainda ecoa o ideal de uma sociedade pacificada em sua condição multirracial, algo avizinhado a “democracia racial” de Gilberto Freire, só que agora a homogeneidade se daria na luta contra o racismo. Mas não somos iguais na ação antirracista.
Por mais que as famílias brancas e ou com crianças brancas sejam militantes da luta antirracista, elas nunca vão passar pela dor de receber em casa uma criança chorando porque foi vítima de racismo em uma festa, na escola, no parquinho ou na casa de uma coleguinha.
Esse momento é um turbilhão de atravessamentos afetivos, sociais, históricos, educacionais e ancestrais que nos marca profundamente. Em especial as primeiras vezes – sim, acontece com mais frequência do que as pessoas não-negras imaginam. Pois, mesmo sabendo que estamos em um país racista, ainda fica a esperança de que sua criança esteja de alguma forma protegida deste escárnio pelo qual você, seu/sua companheiro(a), irmãos(as), pais e avós passaram na infância.
Você pensa, mesmo vendo o noticiário cotidiano das ações racistas em todo território nacional, que com sua criança será diferente, afinal você lutou por mobilidade social e financeira, e pôde escolher uma escola com princípios antirracistas, você se impôs enquanto profissional bem-sucedida e cidadã consciente de seus direitos. Mas nada disso impede que sua criança passe pelo racismo (aliás, justamente por isso racismo não se combate apenas com distribuição de renda).
E o que fazer neste momento? Percebo que mães e pais negros ou que tem filhos(as) negros(as) ainda ficam muito sozinhos neste lugar. Então, esta coluna é sobre educação antirracista levando em conta as diferenças raciais entre as famílias.
Minha proposta é reunir alguns pontos que são importantes para todas as famílias e também falar especificamente com as famílias negras ou com crianças negras. Mas sugiro que todos leiam as duas abordagens, pois são complementares.
Primeiro passo da educação antirracista
Vou listar algumas ações que sustentam a educação antirracista de crianças na primeira infância, mas tem uma que é basilar, fundamental, e é a partir dela que todas as outras ganham sentido: EXEMPLO.
Crianças antirracistas, educação antirracista, não surgem ou se constituem por meio de discursos, mas sim de ações. Seja um adulto, uma pessoa antirracista. Quantos amigos negros você tem? Quantos sócios negros você tem? Quando sua criança vai ao seu encontro em um restaurante ou te acompanha em uma festa de sua empresa, ela te vê interagindo de modo amigável e não hierárquico com pessoas negras? Você elogia pessoas negras publicamente por suas competências, profissionalismo, beleza, lealdade? Sua linguagem cotidiana está livre (ou pelo menos é vigilante) ao racismo linguístico?
Traga a diversidade racial, de gênero e classe para dentro de sua casa, de suas relações pessoais, de sua conversa no cotidiano. Você é o modelo que sua criança segue, ela tende a gostar do que você gosta, preferir o que você prefere, falar o que você fala.
Aí você vai me dizer que não bem assim, que isso não é suficiente, que tem os coleguinhas, tem escola etc. Entendo. Concordo. Mas se sua criança agir ou pensar de modo racista, mesmo vendo em você um comportamento antirracista, a conversa com ela sobre esse tema, orientando-a e explicando como deve ser o convívio com diversidade, será muito mais tranquila, legítima e eficaz se você estiver dando o exemplo e não apenas fazendo discurso. Em educação, a coerência entre o que se faz e o que se fala é a opção mais eficiente. E se você estiver precisando de ajudar nesta conversa, listo aqui alguns caminhos.
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Caminhos da educação antirracista
1 – Reconhecer a diversidade
É importante que os adultos ajudem a criança a reconhecer e entender as diferenças entre as pessoas. Por volta dos quatro anos, ela começa a trazer questionamentos ou observações sobre diversidade étnica. Converse com ela sobre isso. Não mude de assunto, não evite o tema.
Aproveite a oportunidade para observar junto com ela como cada pessoa é diferente em suas características físicas e isso não interfere no respeito que temos que ter com todos e todas.
2 – Frequentar ambientes com diversidade
Coloque a criança em contexto de diversidade, assim ela vai conviver com pessoas diferente e não apenas teorizar sobre isso. Perceba se há diversidade nos espaços sociais que sua família frequenta – parques, igrejas, restaurantes, clubes, mercados, escolas, bairros. Busque e cultive esta interação com respeito, amizade e empatia.
3 – Brincar antirracista
A primeira infância é (ou deveria ser) basicamente sobre brincar. Então, a educação antirracista nesta fase está vinculada também ao brincar antirracista. Observe, cuide da diversidade racial nas escolhas de brinquedos, filmes, livros e jogos que ela ganha e acessa. Felizmente, cada vez mais, temos opções de bonecos e bonecas com diversidade racial, assim como desenhos, filmes e livros.
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4 – Tolerância zero com linguagem racista
Não faça, não ria, não tolere piadas racistas em casa.
O racismo se manifesta de forma dissimulada por meio de piadas, anedotas, ditados populares ou histórias carregadas de preconceito contra pessoas não brancas. Ensine, deixe bem evidente que isso não é humor, mas sim racismo.
Atenção também com os termos que associam pessoas negras com negatividade: “samba do criolo doido”, “morena cor do pecado”, “cabelo ruim”, “serviço de preto” (para ações malfeitas), “denegrir”, por exemplo.
Deixo aqui uma indicação de leitura: Racismo linguístico – os subterrâneos da linguagem e do racismo, de Gabriel Nascimento. Ed. Letramento, 2019.
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5 – Pontue e questione os privilégios raciais
É importante que a família reflita, converse, questione, e se posicione contra as posições privilegiadas da branquitude. Não se trata de sentar-se com uma criança de cinco anos e explicar o conceito de branquitude, mas sim de se conscientizar e falar sobre o tema sempre que ele surgir no cotidiano (e ele está sempre presente).
Por exemplo: “Como pode um filme só com atores brancos?”; “Que absurdo um hospital sem médicos negros”; “O Brasil precisa de mais juízes negros”. “Quantos professores negros têm na escola, é importante ter professores e professoras negras”. Este tipo de frase informa sua criança sobre suas preocupações e consciência racial.
6 – Continue lendo essa coluna, o que segue também ajuda famílias não-negras
Caminhos do fortalecimento das famílias negras ou com crianças negras
As famílias negras ou com crianças negras desejam, antes de tudo, que seus filhos tenham o direito de existir plenamente, livres de medos, pressões e expectativas desproporcionais — sejam elas negativas ou positivas. Nossas crianças precisam ter o direito de simplesmente ser: jogar, ganhar e perder; estudar, com boas notas ou dificuldades; passear, sem temer que a escolha da roupa ou do penteado desperte olhares ou ações racistas.
Elas não podem ser isoladas das brincadeiras no recreio, nem invisibilizadas pelos professores que, conscientemente ou não, as excluem de atividades de destaque na escola. Nossas crianças não podem ser desmotivadas por critérios racistas, disfarçados de padrões de universalidade que, na verdade, reforçam a exclusão. Precisamos garantir a elas o direito de serem apenas crianças, como qualquer outra, sem carregar o peso de provar, todos os dias, que são mais do que suficientes.
Mas tudo isso acontece. O que podemos fazer para enfrentar o racismo, fortalecer nossas crianças e a atitude antirracista? Além dos caminhos apontados acima:
- Mostre que tem orgulho de sua ancestralidade, cotidianamente. Aceite, cultive e celebre suas origens e características afrodescendente. Ao reconhecer seu orgulho e sua força, as crianças se sentirão mais seguras para pedir ajuda e para enfrentar situações de racismo.
- Saiba que você nunca esteve só. A solidão aterradora é o primeiro sentimento que nos acomete neste momento. Diante do racismo sofrido por sua criança, recupere, rememore, a força de sua ancestralidade. Todas as famílias negras têm suas estratégias de sobrevivência e de luta. Nossos quilombismos, como Abdias do Nascimento batizou as ações de resistência, de manutenção da vida, luta pela liberdade e busca da prosperidade das pessoas negras no Brasil desde a colonização, são todos válidos, sagrados e sempre existiram. Quilombismo é vida negra perseverando, é vida negra em busca da alegria, da abundância, de liberdade. O sentimento de solidão nos enfraquece e não é real.
- Acolha sua criança, ajude-a a identificar e nomear seu incômodo, frustação e revolta diante da situação. Contextualize a luta do povo negro para ela não se sentir só e mostre exemplos positivos de pessoas negras nas várias frentes da sociedade. O empoderamento vai fortalecer a autoestima, criando um círculo virtuoso.
- Prefira escolas, lojas, parques, ambientes que prezem pela diversidade racial. Busque informações prévias desses lugares e faça com que saibam que você está preocupada com isso e que a diversidade deve ser um valor para todos.
- Denuncie, busque ajuda. É comum que famílias negras decidam fazer vistas grossas ao racismo para não aumentar ainda mais o sofrimento da criança (não julgo). Ainda mais no contexto da primeira infância. Respeito a decisão de cada um. Só a pessoa sabe o que está passando. Mas, no geral, é bom considerar a denúncia do racismo e cobrar atitude das autoridades envolvidas, seja escola, igreja, clubes, famílias. Muitas vezes trazer um caso à tona pode ser o início da transformação de uma comunidade.
- Aquilombe-se. Cerque suas crianças (e sua família) de referências negras nas artes, nas ciências, no entretenimento. E principalmente, em sua vida social, crianças negras, em especial de famílias que tiveram histórico de mobilidade social, podem ser muito sozinhas. Cuide para que elas se relacionem, também, com pessoas e crianças afrodescendentes.
Direto do Instagram: Escola Quilombola e a valorização da herança africana no Brasil
Futuro antirracista
Educar crianças para serem antirracistas é um compromisso coletivo que começa dentro de casa, mas que reverbera por toda a sociedade. É um processo contínuo, que exige reflexão, ação e, sobretudo, coerência.
Famílias negras e brancas têm responsabilidades e desafios diferentes nesse percurso, mas ambas são essenciais para construir uma sociedade que acolha a diversidade e rejeite o racismo em todas as suas formas.
A educação antirracista exige coragem para questionar privilégios, empatia para compreender vivências diferentes e, acima de tudo, compromisso com a transformação social. Famílias negras ou brancas, todos temos um papel a desempenhar para garantir que nossas crianças cresçam em um mundo mais justo e respeitoso
A construção de um futuro antirracista começa no presente, dentro de nossas casas, nas conversas do dia a dia, nas escolhas que fazemos e nos exemplos que damos. É um trabalho contínuo, mas também um legado de amor e respeito que podemos deixar para as próximas gerações. Afinal, a educação antirracista não transforma apenas nossas crianças: ela transforma a sociedade.