Um passeio por jardins repletos de riquezas e elementos fantásticos, norteado por versos poéticos sofisticados, que pedem reflexão, tempo e um olhar cuidadoso para o outro e para dentro de si. É essa experiência intensa que o livro Jardins propõe. Volume que integrou a seleção de livros do Clube Quindim, ele é assinado por Roseana Murray, um grande nome da literatura infantil nacional, que levou o prêmio de melhor poesia da FNLIJ e o prêmio ABL (Academia Brasileira de Letras) para livro infantil, e pelo ilustrador Roger Mello, o único ilustrador brasileiro premiado com o Hans Christian Andersen, prêmio internacional considerado o Nobel da literatura infantil.
Dispostos a desafiar a velha crença de que livros de poesia nem sempre chegam ao público infantil e juvenil, eles falam, na inspiradora entrevista a seguir, sobre a criação de Jardins. Sobre a experiência de unir poesia à ilustração e sobre a paixão de ambos pela natureza brasileira. Confira:
Clube Quindim: O livro Jardins nos mostra muito a sua paixão pelas plantas brasileiras. Vocês se lembram de quando começaram a reparar mais nos seus arredores, na diversidade que nos cerca?
Roger Mello: Sempre tive uma conexão muito forte com entorno e com detalhes. Sempre gostei muito de animais e plantas, entendidas para mim, e acho que deviam ser por todos, como indivíduos. Os insetos, os artrópodes, que têm na sua diversidade de formas e de cores um elemento poético, uma partitura quase desse jardim espontâneo que é a natureza. E desde muito pequenas as crianças têm esse fascínio. Não só pelo jardim, não só como um lugar da magia, da poesia. Mas também como um lugar do medo, do perigo, que aprendem a amar também.
Roseana Murray: Sempre, desde criança mergulhava minha alma nas flores. No prédio onde cheguei ao nascer, na entrada, havia uma profusão de flores azuis, miúdas e lindas. Elas grudam na roupa. Eu as amava de paixão, perdida desde o momento em que tenho consciência de mim, da minha memória. Ao contrário do Roger Mello, não sou pesquisadora e nem sei seus nomes, simplesmente entro dentro delas com os olhos e o corpo todo.
C.Q.: Sabemos que o conceito por trás do livro surgiu com um encontro entre vocês durante uma viagem. E como foi o processo criativo que resultou em uma obra tão rica?
Roger: Estávamos indo para o interior de Minas, a uma cidade chamada Cataguases, que tem uma relação muito forte com Brasília, porque é uma cidade onde grandes arquitetos, paisagistas e pensadores modernos brasileiros tiveram suas, digamos, pequenas utopias realizadas. Apesar de não haver um método, no meu caso, o processo criativo precisa que haja a presença de um ou mais protótipos do que esse livro virá a ser (como será o espaço em que as palavras e as imagens vão interagir). Tem muito trabalho para que o livro não seja só de imagens soltas, mas para que haja diálogo entre as palavras, as imagens, a capa, os elementos que estão além do livro. Levando sempre em conta a subversão dos leitores a esse objeto livro.
Roseana: Eu já tinha uma coletânea de pequenos poemas sobre flores, como se fossem um buquê. Eu havia pensado em aproveitar uma exposição dos impressionistas no Rio e oferecer a ideia para algum editor. Mas fomos juntos a Cataguases e, durante a viagem, conversamos sobre flores. Roger é apaixonado pelas flores do cerrado. Então ofereci a ele os poemas e ele criou os jardins mais maravilhosos do mundo!
C.Q.: Vocês concordam que o público nem sempre abraça livros de poesia? Que tipo de ações vocês consideram pertinentes para que a poesia ganhe maior destaque na literatura infantil e juvenil?
Roger: Acho que é uma questão de facilitar o acesso porque a criança gosta de poesia. Basta pensarmos que grande parte da expressão literária do nosso país é musical, e da relação que as crianças têm com a música popular brasileira. Claro, não é toda obra musical que tem uma qualidade destacável como a obra do Vinicius, do Chico etc. Enfim, o Brasil é um país poeticamente muito forte. E essa poesia pega as crianças, mas o livro de poesia precisa ser mais acessado, mais acessível para as crianças, e aí farão a maior festa, não tenho dúvida disso.
Roseana: Criança ama poesia, já que pensa poeticamente e o mundo a assombra e maravilha. Os jovens amam poesia, já que seus sentimentos e emoções estão em erupção e a linguagem poética dá conta disso. Cabe à escola propiciar este encontro. Eu proponho um Calendário Poético. Que um poeta por mês inunde a escola.
C.Q.: Que dimensões vocês acreditam que o livro de poesia ganha com as ilustrações?
Roger: A ilustração é um elemento da imagem narrativa, e a poesia é muito visual também. Fica muito claro no texto poético que a fisicalidade da linha é elemento narrativo, visual-poético. Acho que, nesse caso, a poesia existe na imagem, mas porque o poema em si já é muito visual. Se fosse um livro com páginas em branco com um bloco de poesia diagramado em determinado lugar da página, ainda assim seria muito expressivo, teria uma força muito grande. Mas eu quis desenhar muito.
Fizemos outro livro, eu e Roseana, chamado Desertos, em que era o oposto: fiz as imagens com poucos traços, bem sintéticos, com algumas palavras escritas à mão. Então neste caso o processo é inverso, mas ainda assim a questão do diálogo entre a palavra e a imagem é das dimensões possíveis e impossíveis, mas levando em consideração que a ilustração não é somente imagem e que a poesia não é somente texto verbal. A poesia também é visualidade e letra, e a ilustração é também texto. É confuso e simples!
Roseana: Com um ilustrador como o Roger Mello a poesia alcança o céu.
C.Q.: Os poemas e as ilustrações são quase um convite para que o leitor entre em um universo que segue outro ritmo, diferente da pressa e da tecnologia em que estamos tão inseridos. É uma preocupação de vocês trazer esses elementos para a obra?
Roger: Sim, todo elemento artístico é um convite para desacelerar ou para acelerar em outro universo, em outra dimensão. Não necessariamente contra a pressa e a tecnologia, que parecem nossas inimigas, mas para algumas pessoas são um alento, uma alegria – não é o meu caso. Eu vivo nesse universo paralelo já, e a Roseana também: queremos mostrar um pouco o nosso jardim.
O jardim da pressa e da tecnologia é o jardim de alguém, não vamos julgar isso, mas até essas pessoas precisam percorrer o jardim do outro. Para conhecer o outro, mais do que conhecê-lo diretamente, é importante entrar no seu jardim, ver o que a pessoa deixou, o que recolhe, o que separa, como planta, o espaço que dá entre os canteiros, se é um jardim que somente tem pedras, se é feito para que os animais voltem, se é para pássaros perigosos, para lagartas de fogo. Que seja um jardim da diferença, que permita esse espaço.
Muitas vezes, ao longo da história da filosofia, ou da história dos povos, vamos ver o jardim como um lugar de percurso. Há o jardim dos peripatéticos, em que você caminha enquanto pensa a filosofia; aquele em que você caminha entrando dentro de você mesmo, como os jardins orientais; aqueles somente de pedras e esculturas, como os jardins de Isamu Noguchi; os jardins tropicais com a possibilidade da curva, como os de Burle Marx; e os jardins da América do Sul, em projetos de habitações populares, e que com vasos de latas e garrafas PET criam a diferença no beiral da sua janela – é a necessidade de entender o outro e a necessidade da diferença também.
Roseana: A poesia é música nas entrelinhas do tempo. É necessária para que dentro da gente o tempo faça uma pausa.
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