Somos seres conectados ao ato de narrar, precisamos compartilhar o que vivemos, pensar nossa experiência no mundo, nos reunir com iguais e diferentes para dividir aventuras.
Quando surgiu o ser humano, surgiu também a história. E, ao longo dos tempos, em diferentes culturas, compartilhamos histórias por meio dos mitos. Os mitos transportam valores ancestrais, dão exemplos de comportamento, estimulam e ensinam. Por sua enorme importância, sua profunda conexão ao DNA do ser humano, é fundamental que sejam apresentados às crianças.
O professor, escritor e pesquisador do assunto Renato Noguera explica que os mitos são elementos vivos que dão sentido à vida. Eles explicam a realidade, narram o nascimento do mundo, do ser humano, como ele deve viver e encontrar sentido para a sua existência. Em momentos históricos em que não havia recursos científicos para compreender o funcionamento das coisas, o mito assumia completamente essa função. Basta pensar, por exemplo, nos mitos gregos, que explicam a origem do universo por meio de divindades.
Mas, para além do papel de oferecer explicação para fenômenos que não entendemos, os mitos são narrativas de uma cultura. Têm um caráter simbólico que acrescenta muito à nossa compreensão da vida e de quem somos. Não são meras “coisas do passado”. Como nos diz Renato Noguera:
“As aventuras de deusas e deuses podem revelar muito sobre a relação do mundo interior com o mundo exterior. A maneira como o ser humano busca desenvolver sua individualidade, sua personalidade, é o resultado de um tipo de ‘guerra’ que trava com as forças externas.”
Mitos e a compreensão de quem somos
Não à toa diversas leituras nas áreas da psicologia e da psicanálise recorreram aos mitos para entender melhor comportamentos dos seres humanos. Nesse sentido, os mitos acabam se apresentando quase como um repositório ancestral de formas de ser e viver nesse mundo. Freud, o pai da psicanálise, recorreu ao mito grego de Édipo para desenhar sua teoria sobre a relação entre mãe e filho na infância.
Já o psicoterapeuta Carl Jung entendia que a humanidade compartilha o que chamou de “inconsciente coletivo”, uma espécie de herança psicológica universal. Ela é um legado povoado por arquétipos, imagens simbólicas que emergem na nossa consciência. A ideia da bruxa má, essa mulher egoísta que busca a própria satisfação, que é mais velha e feia, é um arquétipo. Assim como a mocinha jovem e inocente.
Essas duas imagens, de certa maneira, cruzam a nossa experiência em diferentes momentos de vida (quem nunca se sentiu meio bruxa má e meio mocinha inexperiente?), e nos dão elementos para aprofundarmos o conhecimento que temos de nós mesmos. Para a psicologia, atuam em processos fundamentais. Por exemplo, Renato Noguera cita que, para a psicologia junguiana, o arquétipo do herói seria uma espécie de recurso psíquico que o indivíduo usaria para sair da infância e se encontrar. Assim, entrar em contato com mitos e seus arquétipos nos apresenta um tipo de mapa de nosso próprio repertório de ações.
Variações em diferentes culturas
Os mitos não são histórias isoladas, mas se relacionam com culturas e momentos históricos específicos. Um mito muito antigo, por exemplo, provavelmente terá uma visão mais conservadora dos papéis da mulher. As figuras que transitam em cada mito também variam: a mitologia iorubá, etnia do continente africano, trata de orixás enquanto a mitologia grega trata de deuses.
Pesquisadores de mitos também apontam como, em cada região, as histórias produzidas se diferenciam em sua estrutura, nos códigos e temas empregados. Curiosamente, apesar dessas distinções, mitos de várias culturas apresentam várias semelhanças, como mitos variados que trazem registros sobre grandes dilúvios, deuses que morrem e retornam à vida e deuses jovens que matam grupos de antigos deuses.
Está na hora de diversificar os nossos mitos!
Através dos processos de colonização, alguns valores se sobrepuseram a outros, alguns mitos e histórias têm sido apagados e invisibilizados. Nesse sentido, é importante que valorizemos os mitos produzidos por culturas diferentes igualmente, sem cultivar a ideia de que algum desses mitos representa uma “mitologia universal”. Afinal, como falamos no artigo sobre descolonização cultural, o conceito de universal se relaciona com as disputas de poder ao longo da história e com a dominação dos colonizadores sobre territórios e culturas colonizados.
A artista interdisciplinar, teórica e escritora Grada Kilomba aponta que mesmo os mitos como de Édipo, considerado por Freud essencial no desenvolvimento humano, seriam fenômenos ocidentais e se relacionariam mais à vivência de pessoas brancas. Ela defende que, no caso de pessoas negras, em função do racismo em nossa sociedade, os conflitos surgiriam mais do contato com um mundo exterior branco do que com o grupo de parentesco. A esse respeito, Kilomba desenvolveu a série de obras “Illusions”, em que reconta e encena mitos greco-romanos, discutindo a lógica colonial por trás deles.
A força da palmeira
Pensando na educação de crianças, é interessante mostrar mitos de diferentes culturas e explorar os valores e arquétipos por trás deles. A seleção do Clube Quindim está sempre atrás dessa variedade, e neste mês de novembro trouxe A Força da Palmeira, de Anabella López. Com ilustrações impactantes, o livro é uma releitura de um conto tradicional do Magreb, na região norte da África.
Na história, um homem cruel que sente ódio da vida vê uma palmeira crescer e, sem permitir a alegria do nascimento, coloca uma pedra sobre ela. Contudo, esse peso torna as raízes da árvore ainda mais fortes, dando mais beleza para a palmeira. Trata-se de uma história de superação e resiliência, que pode inspirar os leitores e ouvintes, e transmitir a força residente em mitologias africanas.