Nilma Lacerda fala sobre a importância da leitura
Nilma Lacerda é professora da Faculdade de Educação e da Pós-graduação em Literatura Infantojuvenil da UFF. Doutora em Letras pela UFRJ, com pós-doutorado em História Cultural pela École des Hautes Etudes en Sciences Sociales, pesquisa leitura e escrita, literatura infantil e juvenil e criação literária. Recebeu muitos prêmios, como os da CBL e da FNLIJ. Faz parte da Lista de Honra do International Board on Books for Young People. Nilma também é curadora do Clube Quindim e conta um pouco aqui sobre a importância da leitura.
Termo de posse
Minha mãe teve pouco tempo de escola, nenhum acesso a livros. História comum na primeira metade do século XX entre famílias de imigrantes. Já meu pai usufruiu de educação esmerada para a época. O projeto familiar de mulher analfabeta, também imigrante, e de um pequeno empresário passava pela educação dos filhos homens. A menina, não. Ficava em casa ajudando a mãe nos serviços domésticos, criação de aves que colaboravam para manter um irmão no colégio São Bento, outro no Pedro II, ambos encaminhados mais tarde à Universidade do Brasil. Doutores. A moça, em casa, nervosa, à espera de marido.
O casal formado por meu pai e minha mãe projetou uma família escolarizada. Tiveram cinco filhos e todos chegaram à universidade. Três meninas, dois meninos.
A criança que não teve acesso a livros, quando moça, foi trabalhar em uma livraria. Não como vendedora que precisasse conhecer livros para vendê-los bem, mas como caixa. Funcionária devotada, ganhou a amizade do livreiro, o senhor Briguiet. Sobrinho-neto do editor de Machado de Assis, vieram da livraria dele os primeiros livros que tive – obras literárias em edições para a infância, compêndios extras para estudar.
Não tendo alcançado o livro como bem físico, minha mãe pôde reconhecer o bem simbólico e desejar passá-lo em herança. Fez de mim uma herdeira da vida que visitou em desejo. Ao me ver professora, escritora e aluna de pós-graduação, espantou-se do bem-sucedida que fora, assustou-se com o que isso representava: liberdade de pensamento, autonomia crítica. Tudo o que me permitiu amealhar a experiência que me alimenta e alimentou minhas alunas e meus alunos por mais de 50 anos e, como cientista, aquilatar o valor do caderno que deixou – poemas transcritos por amigos, amigas, admiradores, com as dedicatórias usuais de apreço e admiração.
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Ao tomar esse caderno, comprovei que ela sabia bastante bem o que eram bens de leitura, conceito com que trabalho há muito tempo, em vários trabalhos acadêmicos. Os bens de leitura só podem ser partilhados em rede, isto é, em grupos que têm a leitura como prática social. O historiador Jean Hébrard, em célebre estudo, deixa isso muito claro. Ninguém se torna leitor sozinho, por mais inteligente que um indivíduo seja. É preciso que o livro circule por uma família, um grupo de amigos, uma igreja, uma comunidade.
O escritor Graciliano Ramos, nascido no Nordeste brasileiro no final do século XIX, narra em suas memórias como um livro de ficção transformou a vida dele. Um livro que o pai tinha em casa e levou-o a ler, a princípio orientando-o, mas logo deixando-o sozinho. Aflito, precisando terminar a leitura e não tendo ainda competência para isso, pediu ajuda à prima. Emília mostrou ao menino que ele podia identificar os sinais na página, diante dos olhos dele, assim como os astrônomos faziam com as estrelas no céu. Graciliano acata a sugestão e consegue, finalmente, terminar sua alfabetização.
O livro e a palavra como valor. Oral ou escrita, pois todos começamos a usar a palavra em sua dimensão oral. A escrita é um passo bem posterior. Ler histórias é uma ação da palavra, da cultura humana. Parte de um patrimônio milenar, as narrativas tradicionais estão repletas dos modos de viver através dos tempos, de lições sobre aquilo que nos faz humanos ou desumanos.
Contar essas e outras histórias é – além de um ato de afeto – um ato profundamente político, isto é, da vida na cidade. Por meio delas, o ser humano sabe-se em interação com os semelhantes e com a vida em todas as suas instâncias, em uma dimensão planetária. Ao ouvi-las ou lê-las, a criança ou o jovem se apercebe de que é herdeiro de uma comunidade humana, com tudo o que isso implica. “Você tem direito a esses bens construídos ao longo do tempo pela humanidade” é o que dizemos às crianças e aos jovens, no ato de contar histórias, oferecer livros.
As crianças intuem que aquelas palavras que se repetem num mesmo enredo, com as mesmas personagens, foram tomadas emprestadas pelo pai, pela mãe ou outro adulto de algum lugar que não conhecem, de um tempo que não sabem qual, mas que contêm coisas boas. Quando as palavras vêm dos livros, e as crianças identificam isso, mesmo as bem pequenas, há um continente palpável, um lugar onde encontrá-las de novo, sempre que se desejar. O bem é da mesma qualidade, o grau de apropriação diferente. Contudo, uma história, lida ou contada de cor, carrega emoções que permitem ao receptor avançar, retroceder, parar, encontrar-se.
O ouvinte ou a ouvinte vai em busca de algo que é desafio. Retrocede para revisar ou buscar refúgio, para de medo e angústia, encontra a si mesmo como alguém que atravessou a experiência ao lado do personagem. Como o pequeno Sartre fez no momento em que a mãe dele acabou de ler As Fadas, pode também tomar possessivamente para si o livro de onde saiu toda aquela aventura.
Minha primeira filha nasceu, encontrou a voz leitora de histórias e a pequena biblioteca já formada para ela. Havia, é claro, a biblioteca familiar, de que se apropriaria também à época devida. Assim foi com a segunda, a terceira. Todas tiveram narrativas e livros, durante a infância, a juventude. A última vez que li histórias para a filha mais jovem ela estava com 23 anos. A viagem de Teo, me lembro bem. E guardo com grande carinho um cartão de Dia das Mães que agradece à mãe que lia histórias.
Chegou a primeira neta, encontrou voz leitora e livros, que vão virando biblioteca. Livros presenteados com frequência, livros emprestados, associação a clubes de leitura. Assim também com os outros netos, Natan e Júlia, que chegaram há pouco. Ao preencher o Diário do Leitor do Clube Quindim, Natan reconhece que é herdeiro de um bem simbólico. E vem, alegre, tomar posse do que a ele é devido.
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