Quem cuida de uma casa sabe que entre o almoço na mesa e o lavar dos pratos, muitos minutos foram gastos para pensar no cardápio, comprar os alimentos, cozinhá-los, colocar a mesa para, enfim, poder comer. O mesmo vale para deixar as crianças limpas, alimentadas e vestidas na porta da escola todos os dias. É rotineiro, mas são tantas etapas no cuidar da família que nem sempre percebemos o tempo que gastamos, de fato, com essas tarefas.
Afinal, você já parou para pensar quantas horas da sua vida consumiu lavando louça ou roupa? E dando banho nas crianças? Sabe quanto tempo levou amamentando ou varrendo a casa? E aqui estamos citando apenas afazeres domésticos, sem falar no tempo no trânsito, no cuidado com outros familiares, animais de estimação e no trabalho remunerado que você possa exercer.
São jornadas duplas, triplas ou contínuas, que exigem um grau de responsabilidade e comprometimento quase integral. Atire a primeira pedra quem nunca esteve numa reunião pensando na lista do supermercado ou até mesmo tomando um café com uma amiga, mas ordenando na cabeça tudo que terá que fazer assim que chegar em casa. (Spoiler: este gerenciamento mental também é um dos motivos do seu cansaço, sabia?).
Por isso, se você nunca pensou em fazer estas contas, talvez leve um susto com os dados a seguir. Porque, sim, alguém parou e contabilizou as horas que gastamos com tarefas banais que, muitas vezes, nem nos damos conta de que são muito onerosas e exaustivas. E o resultado é assustador.
Segundo o relatório Tempo de cuidar: “o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade”, liderado pela Oxfam, mulheres ao redor do mundo somam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, dedicadas ao trabalho de cuidado sem receberem nada por isso. E se o ditado diz que “tempo é dinheiro”, saiba que isso gera, pelo menos, US$10,8 trilhões por ano à economia global.
Quer mais um dado estarrecedor? De acordo com a plataforma “Vale do cuidado”, encabeçado pelo Think Olga, as mulheres gastam em média mais de 61 horas por semana em trabalhos não remunerados e considerados invisíveis ou desvalorizados. Isso porque se misturam a tarefas do dia a dia que a sociedade já espera que sejam realizadas por elas. O que só perpetua as desigualdades de gênero e aprofunda o abismo de oportunidades entre homens e mulheres.
Para entender a gravidade da questão, primeiro, é preciso compreender o conceito da tão comentada “economia do cuidado”.
Mas o que é economia do cuidado?
Trata-se do conjunto de ações relacionadas aos cuidados para a manutenção da vida de outras pessoas, podendo ser remunerado ou não. No âmbito doméstico, geralmente sem pagamento, está conectado com os afazeres da casa e aos cuidados com filhos e familiares. O relatório “Care Works and care jobs for the future of decent work” (Trabalhos de cuidado e empregos de cuidado para o futuro do trabalho decente, em tradução livre), da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 2018, define o trabalho de cuidado como “atividades e relações envolvidas na satisfação das necessidades físicas, psicológicas e emocionais de adultos e crianças, idosos e jovens, debilitados e saudáveis”.
Em linhas gerais, são as atividades necessárias para promover uma sociedade produtiva: gestar, alimentar, criar, limpar, educar… É o que faz o mundo rodar. Imagine uma realidade em que ninguém investisse tempo nessas tarefas diárias essenciais? Com certeza o prejuízo e a desorganização seriam grandes.
Afinal, se você está aí hoje é porque, alguém no passado – muito provavelmente, uma mulher –, desempenhou o papel de cuidadora, desprendendo horas de atenção com sua alimentação, saúde, higiene, estudos, e que, por vezes, ofereceu o tempo de descanso dela em momentos de lazer conjunto. Tudo para que você pudesse estar saudável e apta para a vida em sociedade.
Existe, no entanto, o perigo de confundir o trabalho do cuidado com carinho, mas é preciso entender que, por mais que sejam tarefas muitas vezes executadas com amor e dedicação, elas são também responsabilidades que foram atribuídas a alguém. E isso é um fardo pesado, que gera pressão social e não são poucas as pessoas vivendo nessa situação.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNADC, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, 54,1 milhões de pessoas declararam realizar atividades de cuidado com moradores de seu domicílio ou parentes. E aqui é preciso deixar claro que 85% deste trabalho no Brasil é feito por mulheres, segundo a plataforma “Vale do cuidado”, que traz dados cruzados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Organização Mundial da Saúde (OMS) e IBGE.
Invisível aos olhos, essencial na vida
Como é então que essas funções primordiais possam ficar tão imperceptíveis aos olhos do mundo? A resposta, como você deve imaginar, não é simples. Está enraizada em padrões sociais por anos repetidos, em que se espera da mulher um recurso inesgotável de tempo e dedicação ao outro, sem reconhecer que isso dificulta diversos aspectos da vida dela, como seu caminho profissional, suas aspirações para além da casa e da família, além de sua saúde física e mental.
Isso gera um ciclo que só mantém esta condição conveniente ao patriarcado: o cuidado não rende dinheiro e, consequentemente, não propicia autonomia. Exausta e muito ocupada, a mulher fica mais restrita a conquistar outros objetivos, sejam cargos ou salários melhores, mais estudo ou tempo para se qualificar.
Ainda de acordo com a OIT, 606 milhões de mulheres no mundo afirmaram que o trabalho de cuidado não permitia que elas conseguissem um emprego fora de casa, sendo que apenas 41 milhões de homens disseram o mesmo. A diferença é gritante.
Injusto e desigual: por que sempre cai nos ombros das mulheres?
Já deu pra entender que o trabalho do cuidado é fundamental para que a sociedade funcione, mas por que ele fica desproporcionalmente delegado às mulheres? Um dos fatores é que existe uma construção social machista que nos faz crer que cuidar dos filhos é responsabilidade das mães, assim como se dedicar à casa e aos idosos.
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O relatório “Tempo de cuidar” mostra que as mulheres são responsáveis por mais de 3/4 do cuidado não remunerado e compõem 2/3 da força de trabalho envolvida em atividades pagas de cuidado. Aqui estamos falando, por exemplo, de enfermeiras, babás, faxineiras, educadoras, cuidadoras e assistentes sociais – que veja só, recebem salários baixos, pouca proteção das leis trabalhistas e ainda enfrentam jornadas duplas quando chegam em casa.
A famosa frase que diz que “o tempo é democrático, porque passa para todos”, pode não ser verdade neste caso, já que a forma como ele é dividido, é sim diferente para homens e mulheres. O relatório da OIT indica que em nenhum lugar do mundo o trabalho do cuidado é igualitário. Mulheres costumam dedicar, em média, 3 vezes mais tempo do que os homens nessas tarefas não remuneradas, o que gera 4 horas e 25 minutos por dia, contra 1 hora e 23 minutos deles. Se pensarmos em 1 ano, isso representa um total de 201 dias trabalhados (em turnos de 8 horas) para as mulheres comparado com 63 dias para os homens. Te parece justo?
Ainda que existam diversas configurações familiares e condições financeiras distintas, majoritariamente, o cuidado fica a cargo das figuras femininas, seja na gestão das tarefas ou no trabalho físico. E repare que isso se repete também com a rede de apoio (geralmente formada por avós e amigas) ou de profissionais pagas (como babás, cuidadoras e faxineiras). Raramente vemos um homem nessas posições.
Enquanto eles podem se dar ao luxo de escolher as atividades domésticas que preferem fazer – como pequenos reparos pontuais, única atividade apontada pelo IBGE na qual os homens tiveram percentual de realização maior do que o das mulheres (58,1% deles contra 30,6% delas) – para as mulheres é esperado que elas deem conta de tudo de maneira sistemática. Não é à toa que estamos esgotadas, ansiosas e desconectadas com nossos desejos.
“Há uma sobrecarga de trabalho não remunerado sobre as mulheres que limita não apenas oportunidades mais igualitárias de participação no mercado de trabalho, mas também inibe sua participação social e política, além de tempo livre e de descanso”, relata o report “Pais em Casa – Os impactos da pandemia na divisão do trabalho de cuidado”, da plataforma parental 4Daddy.
A pandemia só escancarou a realidade
Com as famílias convivendo mais tempo por conta do isolamento imposto pela pandemia, a realidade que antes ficava camuflada pela rotina foi descortinada: a divisão de tarefas sempre foi muito injusta. Isso gerou um movimento que trouxe luz à exaustão materna e muito foi discutido sobre sobrecarga, sobre a importância da rede de apoio e sobre saúde mental. Mas, apesar das saídas sugeridas até serem carregadas de boas intenções, hoje sabemos que elas são, em sua grande maioria, paliativas.
Afinal, dizer para uma mãe sobrecarregada que ela precisa dividir as tarefas com o companheiro – como se ela não soubesse ou não tivesse tentado antes – ou que ela precisa tirar um tempinho só pra ela é simplista. E pior: é entendido como mais demanda que ela precisará encaixar em sua agenda cheia.
Isso sem falar que dizer a uma mãe que ela precisa cuidar de si traz um pedido malicioso por trás, no qual a mulher precisa estar “bem” para poder dar conta da rotina pesada – que, veja só, ninguém deveria dar conta. Percebe como isso é injusto? É o ciclo sem fim em que se romantiza a sobrecarga como “heroísmo” ou “mãe guerreira”.
Está implícito que, para que ela melhore de seu cansaço, ela terá que ficar ainda mais esgotada tentando repensar sua rotina toda, gerenciando as mudanças que precisam ser feitas e negociando com parceiros que, muitas vezes, não querem mudar, já que estão sendo beneficiados pelo funcionamento do sistema.
“O modelo de capitalismo dominante explora e impulsiona ativamente crenças sexistas tradicionais que desempoderam mulheres e meninas, ainda que contando com elas para fazer esse trabalho, mas se recusando a valorizá-las por isso”, diz trecho do relatório da Oxfam.
Por isso, não é uma noite sem as crianças ou uma tarde de massagem que será capaz de zerar a exaustão mental e física. São necessárias mudanças estruturais que, sim, começam na sua casa, mas precisam também ser da porta pra fora. O caminho é longo, cheio de padrões a serem derrubados e isso, bem sabemos, não é nada fácil.
Veja também: Tarefas para crianças: como os pequenos podem ajudar na rotina familiar (por faixa etária).
Repensando o futuro
Um primeiro passo para a mudança, apontado pelo relatório “Reconocer, redistribuir y reducir el trabajo de cuidados. Prácticas inspiradoras en américa latina y el caribe” (Reconhecer, redistribuir e reduzir o trabalho de cuidados. Práticas inspiradoras na América Latina e no Caribe, em tradução livre), da ONU Mujeres, é justamente reconhecer que o trabalho do cuidado não é invisível. É necessário valorizar quem executa essa função e repensar os modelos antigos de família e de trabalho, que já não fazem mais sentido se continuarem sendo unilaterais – ou seja, beneficiando apenas os homens. Claro que é difícil mudar o funcionamento da sua casa de um dia para o outro, mas se continuamos a repetir os padrões sem pensar no que isso implica, só perpetuamos o que tanto nos prejudica.
Tá, mas você deve estar se perguntando: como é possível ser agente de mudanças estando tão cansada e vendo a louça se acumular na pia? Primeiro, lembrando que você não deve ser a única responsável por lavá-la.
E aqui entram os dois passos seguintes salientados pelo relatório da ONU Mujeres: redistribuir e reduzir. Por isso, é preciso que todos os moradores do seu lar entendam que:
- O cuidado com a casa e com os filhos não deve ser só da mulher.
- O pai não é rede de apoio e não deve servir como “ajuda”. Ele é responsável por aquela criança tanto quanto a mãe.
- Quem mora na casa precisa ajudar a reorganizar, redistribuir e executar as tarefas, pois só assim a rotina será sustentável todos os dias e para todos.
- É preciso explicar a importância da divisão equilibrada de tarefas para os filhos desde cedo.
- Nada vai mudar num passe de mágica, então é preciso constância e paciência. Se algo não estiver funcionando, recombine.
O relatório do “Laboratório de Inovação Social Mulheres em Tempos de Pandemia”, do Think Olga, pontua que é preciso desvincular a mulher do papel de cuidadora natural e ressignificá-lo como tarefa de todos. Além disso, o documento propõe que se pense também na questão racial como fator determinante, uma vez que as mulheres negras estão sempre na linha de frente do cuidado e foram elas as mais prejudicadas na pandemia – o estudo aponta que 58% das mulheres desempregadas nesse período eram negras.
E, estamos cansadas de repetir, mas nunca é demais: você não está sozinha. É conveniente fazer as mulheres pensarem que não há saída ou que, se as amarras são estruturais, não há o que fazer para mudar. Dá sim, mas é preciso que seja um esforço conjunto para que haja suporte na família, nas empresas e na esfera política.
Com tudo isso em mente, é possível começar a se movimentar. Podemos iniciar com combinados dentro de casa (como as propostas acima), que tragam mais igualdade na divisão das tarefas. Já no trabalho, podemos exigir das empresas políticas internas que tragam um maior equilíbrio entre vida pessoal e carreira, facilidade de trabalho remoto ou híbrido, licença-paternidade e equiparação salarial.
E por fim, é preciso amparo de políticas públicas para que o cuidado seja reconhecido com valor social. Essa, inclusive, é uma das metas propostas pela ONU em seus “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” para a Agenda 2030. “Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais”, diz o documento.
No Brasil, há, inclusive, uma iniciativa recente neste sentido. Em novembro, foi aprovado na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, o Projeto de Lei 2647, que propõe que as mães possam adicionar, em seu cálculo da aposentadoria, um ano de tempo de serviço por cada filho, adotivo ou biológico. O PL está em tramitação e espera-se que seja aprovado ainda em 2023.
Segundo o relatório da ONU, todas estas medidas rendem frutos. Quanto maior a proporção do gasto público dedicado às políticas de cuidado – caso de países como Chile, México e Uruguai, que já possuem estratégias de amparo ao cuidador não remunerado – a participação das mulheres no mercado de trabalho aumenta. Ainda está longe do ideal, mas há esperança no mundo.
E, diante de tudo isso, se você nunca tinha parado para pensar nas horas que você gasta no trabalho do cuidado, agora você já sabe. Não é à toa que estamos exaustas, não é mesmo? O tempo está passando e o despertador já tocou, bem alto e para todo mundo ouvir: está na hora de acordar para uma realidade mais justa para todos.