As expressões racistas presentes em obras de Monteiro Lobato, o uso de palavras como “louco” e “gordo” em livros como Matilda e A Fantástica Fábrica de Chocolate, a diversidade sexual em material literário para crianças. Nos últimos anos, assuntos como esses extrapolaram o mercado editorial e os círculos da pedagogia e da educação infantil para virar tema de acaloradas discussões. De trocas de mensagens em redes sociais até a mais alta corte do país, o Supremo Tribunal Federal (aonde chegou o debate sobre a distribuição de Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, em escolas públicas), a literatura infantil passou, nos últimos anos, a ser objeto de um severo cerceamento popular.
Mas se, durante certos períodos de nossa história, a censura cultural partia da máquina estatal (embora os livros para crianças não fossem alvos costumeiros), podemos dizer que hoje é a cultura do cancelamento que lança novas amarras ao mercado editorial. Seja pelas pautas de costumes, que rechaçam temas como diversidade e educação sexual, seja pelo viés progressista, que considera a possibilidade de alterar obras antigas a fim de eliminar passagens preconceituosas, a literatura infantil se vê cercada por todos os lados.
“Particularmente, não vejo com bons olhos esse revisionismo literário – trata-se de uma modalidade de censura, sim”, afirma João Luís Ceccantini, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisador da literatura para crianças e jovens.
Ceccantini, junto de Eliane Galvão e Thiago Alves Valente, recém-lançou o livro Literatura Infantil e Juvenil na Fogueira (Aletria Editora), organizado com análises de 28 títulos que foram atacados no Brasil nos últimos anos. Com o objetivo de problematizar o assunto, questiona-se os motivos que levam aos ataques e propõe-se formas de trabalhar as obras com os jovens leitores.
“Uma saída sempre mais lógica é a de que se façam edições cuidadosas, quando dirigidas a crianças e jovens, que contenham bons paratextos (em variados formatos) que possam ajudar os leitores a compreender o contexto em que se insere uma dada obra”, diz o pesquisador.
Paralelamente a essa edição cuidadosa, importa também a mediação crítica dos educadores em sala de aula, e de pais e cuidadores, em casa.
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Autocensura e limitação da criatividade
De obras antigas que recebem agora uma visão anacrônica – mirando o passado com os olhos do presente – a novas produções que já nascem pisando em ovos, não há dúvidas de que muito se perde nesse processo.
“A meu ver, esse espírito de ‘pureza’ de amplo espectro que muitos adultos (particularmente mediadores da mais variada natureza – pais, professores, editores, livreiros etc.) buscam atualmente nas obras literárias destinadas a crianças e jovens traz de pior para o universo da literatura o despertar crescente, nos escritores, ilustradores e editores, da autocensura”, alerta Ceccantini.
Segundo o professor, cria-se um espírito de época extremamente castrador para o artista, com o risco de bloqueio contínuo da imaginação, da criatividade, da ousadia e da experimentação. “Isso certamente prejudicará, cada vez mais, a produção para crianças e jovens que justifique o nome de ‘literatura’, na medida em que vai na contramão de sua natureza, que se pauta pela liberdade, a invenção, o risco, o novo, o transgressor e o renovador”, ressalta.
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Monteiro Lobato, Roald Dahl e o revisionismo literário
Nos últimos anos, Monteiro Lobato passou a ser um dos principais objetos de discussão quando o assunto é revisionismo literário. Embora tenha passado a maior parte da vida em um país pós-abolição (Lobato nasceu em 1882), os ecos da escravidão estão presentes em sua escrita, e não há dúvidas de que as caracterizações das personagens negras de sua obra precisam ser problematizadas. Ainda assim, proibir ou propor versões atualizadas de um texto consagrado parece simplificar uma questão que é muito mais complexa e que abre oportunidades de discussões frutíferas com as crianças.
“As exclusões sempre significam uma traição à obra, à visão de mundo de seu autor, à época e ao contexto em que ela foi produzida”, pontua João Luís Ceccantini.
Nesse sentido, como o pesquisador já apontou, edições críticas são bem-vindas, com paratextos que dêem a contextualização histórica e até proponham discussões. Mais do que isso, a leitura em sala de aula pode ser uma oportunidade de trabalhar o tema da escravidão e do racismo, dando voz às crianças e estimulando uma reflexão. Em casa, o papel de pais e cuidadores deve ser o mesmo, contribuindo para a formação de cidadãos que conheçam a história de seu país e sejam capazes de ter uma visão crítica sobre ela.
A modificação de obras infantis, porém, não é uma tendência de exclusividade brasileira. A Puffin Books, selo infantil da Penguin, editora britânica que edita os livros de Roald Dahl no Reino Unido, alterou o texto original no relançamento de Matilda e A Fantástica Fábrica de Chocolate. A palavra “gordo” foi substituída por “enorme”, “acabar com ela” deu lugar a “dar uma dura reprimenda” e “louco” e “desequilibrado” foram vocábulos removidos pela preocupação com questões relacionadas à saúde mental.
Sobre esse assunto, Ceccantini comenta: “acredito que esse recurso é dos mais simplistas e demagógicos, subestimando mediadores e leitores, desrespeitando as escolhas dos escritores (que trazem com sua obra toda uma época e sua sociedade, com linguagem e valores específicos)”.
Além disso, o pesquisador chama a atenção para a oportunidade de aprendizado que crianças e adolescentes encontram ao se deparar com valores e linguagens outros. “O leitor pode crescer muito com essa experiência de alteridade, amadurecer, cotejar diferenças, fazer escolhas, ou seja, fruir plenamente um texto literário de fôlego, que traz em si o bem e o mal, tal como a vida em toda sua complexidade, como já nos ensinou Antonio Candido [grande pesquisador da literatura brasileira]. Certamente, essas exclusões traduzem uma visão que subestima largamente os leitores em formação e que assume um conceito bastante raso de criança, como mero depósito de ideias e valores”, comenta o professor.
As mudanças na literatura ao longo do tempo
Em “O Pequeno Polegar” de Charles Perrault, sete garotinhas são degoladas por engano no lugar dos sete filhos de um pobre casal de lenhadores. Em “Barba Azul”, as esposas que não obedecem ao tirano são assassinadas e reunidas, mortas, em uma sala trancada. Essas narrativas, impensáveis para o público infantil dos dias atuais, compõem os Contos da Mamãe Gansa, obra publicada em 1697 que traz a versão do escritor francês para narrativas transmitidas oralmente e que carregavam consigo as características de sua época.
Com o passar dos séculos, novas versões passaram a circular, inspirando outras produções culturais. A Chapeuzinho Vermelho não precisaria mais ser devorada pelo Lobo Mau, afinal, o modo de vida mudou, a sociedade se transformou e os perigos trabalhados pela moral da história passaram a ser outros.
Podemos dizer, portanto, que a atualização da literatura sempre existiu, sobretudo de obras longevas e com origem na tradição oral, como são os contos de fadas. Há, porém, uma sensível diferença entre esse movimento histórico e o que se vê atualmente. “Muito diferente é o movimento artificial de alterar as obras, apenas por razões imediatistas, de natureza política, religiosa e, sobretudo, mercadológica, como se tem feito para atender a esse ou aquele ‘cliente’. São ‘correções’ realizadas de forma tosca, improvisada e exclusivamente doutrinária, num processo bem distante da arte, sem respeitar os leitores e voltado apenas a imediatos lucros políticos e monetários”, considera Ceccantini.
Como selecionar os livros infantis?
Para o pesquisador, o que mais ajuda nessa escolha é a ampliação do repertório do mediador. “Ao mesmo tempo, a busca incessante de formação e informação sobre literatura infantil e juvenil, que ajude a construir para si mesmo critérios de seleção de obras exigentes do ponto de vista do que constitui um objeto de arte – o essencial que se deve cobrar de um livro”, afirma.
Ceccantini acredita que, quanto maior o repertório e a formação dos indivíduos, mais chances de escolher boas obras em sintonia com os valores de cada mediador e de cada família.
Além disso, é interessante levar em conta a faixa etária para qual são destinadas as obras infantis e juvenis – em geral, discriminadas pelas editoras -, além da maturidade do jovem leitor. Associada a isso está a mediação crítica do adulto durante a leitura, lembrando, mais uma vez, que desconsiderar as complexidades e capacidades da infância tira dos pequenos ricas oportunidades de aprendizado e desenvolvimento.
Por fim, vale lembrar dos serviços de curadoria feitos por especialistas na área, como o time do clube Quindim, do qual fazem parte nomes como Ana Maria Machado, Ignácio de Loyola Brandão, João Luís Ceccantini, entre tantos outros.