No último mês de julho, o Fundo de População das Nações Unidas divulgou um relatório indicando que ⅔ da população mundial vive em países de baixa fecundidade, incluindo o Brasil. Por aqui, a taxa de fecundidade, ou seja, o número médio de filhos que uma mulher tem ao longo da vida, chegou ao índice de 1,62, o menor desde 1950.
Seja por questões sociais, econômicas ou relacionadas à escolha individual (sempre bom ressaltar que deve ser respeitada a decisão da mulher sobre ter ou não filhos), está cada vez mais comum encontrar famílias com filhos únicos. Infelizmente, o que continua bastante comum também são comentários como “coitadinho, vai crescer sozinho” e “vai ser egoísta e mimado por não ter irmãos”.
Mas até que ponto a personalidade e o comportamento social de uma criança são determinados pelo fato de ter irmãos ou não? Será que quem cresce dividindo o espaço, os brinquedos, o tempo e a atenção dos pais necessariamente vai se tornar um adulto mais empático, paciente e solidário?
Os estereótipos do filho único e dos irmãos
Todo tipo de generalismo deve ser observado com cautela, e aqueles aplicados aos filhos únicos não são diferentes. Segundo Marcela Pisa, psicóloga clínica com experiência em psicologia hospitalar infantil e especialização em terapia familiar, existem muitos cenários possíveis envolvendo filhos únicos e irmãos. Tantos que, na verdade, seria impossível afirmar que os indivíduos serão de um determinado jeito ou de outro simplesmente por conta de sua constituição familiar.
“Existe o filho único do mesmo pai e da mesma mãe; o filho único do mesmo pai e da mesma mãe, mas que tem irmãos do primeiro casamento da mãe ou do pai; aquele que além de ser filho único também é o único sobrinho e único neto… Existe até o que chamamos de ‘dois filhos únicos’, que é quando a criança nasce quando o irmão mais velho já tem seus quinze, dezesseis anos. Ou seja, tem um irmão, mas as fases da vida são tão diferentes que não vai existir aquela relação de alguém dividindo e competindo por tudo como costuma acontecer com crianças com três ou quatro anos de diferença ou menos. Por isso é preciso olhar para o indivíduo, para além do estereótipo”, afirma Marcela.
Assim, crianças que crescem sem irmãos não estão automaticamente fadadas a serem egoístas e imediatistas, bem como aqueles que crescem com um ou mais irmãos não serão, por princípio, tranquilos, generosos e cientes de que o mundo não gira em torno de si. Somos mais complexos do que isso, e o que de fato pode influenciar no desenvolvimento de determinadas características na criança são os vínculos estabelecidos e fortalecidos entre ela e sua família.
Para a psicóloga, “a criança pode não ter irmãos, mas primos e filhos de amigos dos pais com quem convive de maneira muito próxima e regular a ponto de estabelecer, com eles, esse tipo de aprendizado social, que em outras circunstâncias seria advindo da convivência com os irmãos. Por isso é tão importante abrir o olhar para o contexto da família e de cada criança”, completa.
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Sobre “dar” ou não um irmãozinho para a criança
Quem é mãe, pai ou cuidador primário de um filho único certamente já deve ter ouvido (ou até mesmo falado) sobre a importância de “dar” um irmãozinho para ele ter com quem brincar, para aprender a dividir e não se sentir só. Mas crianças não são coisas para serem dadas de presente, e a responsabilidade de ensinar valores como empatia, generosidade e paciência aos filhos é dos adultos, e não de uma outra criança.
Para Marcela, os pais devem ter muita clareza sobre o desejo e as expectativas de ter mais de um filho. Se o desejo é que o filho mais velho tenha um amigo para a vida toda, isso precisa ser construído, pois não é algo simplesmente dado apenas pelo fato de serem irmãos.
“A expectativa de muitos pais e mães é de que os irmãos sejam melhores amigos e companheiros para a vida toda. Isso pode acontecer, mas é preciso ter muita conversa, estabelecer acordos claros sobre o que é ou não negociável, e entender que é normal haver ciúmes, brigas, raiva e disputa”, explica a psicóloga. “Mas qual é a identidade familiar que esses pais querem construir com os filhos? Tendo essa clareza, fica mais fácil enxergar no outro o que é preciso reforçar ou corrigir para atingir esse objetivo comum”, comenta.
Além disso, especificamente sobre a questão da solidão, vale dizer que o vínculo com os cuidadores pode ser muito mais expressivo do que a simples presença de um irmão na mesma casa. Você já ouviu a frase “solidão a dois”? Ela fala sobre as vezes em que estamos acompanhados por outra pessoa mas nos sentimos sozinhos mesmo assim, justamente porque não existe uma conexão verdadeira. O mesmo pode acontecer com as crianças: por isso, é preciso ser irmão “na prática”.
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A ciência por trás do achismo
Existem muitos estudos que falam sobre como crianças que são filhas únicas tendem a ter comportamentos sociais desejados, como criatividade, independência e iniciativa na resolução de problemas e até notas mais altas na escola.
Vale a pena consultar esses estudos a título de informação? Claro, desde que sejam realizados com metodologia científica e com resultados divulgados em fontes confiáveis e verificadas. O que não faz sentido, no entanto, é tomar uma decisão familiar com base exclusivamente nesses resultados.
Veja um exemplo: um estudo da Universidade de Essex, no Reino Unido, indica que filhos únicos são mais felizes. Em um grupo de 2500 crianças e adolescentes que não são filhos únicos, a maioria relatou que fatores como competição pela atenção pelos pais e bullying era fonte de estresse e aborrecimento, fazendo que a vida deles não fosse tão feliz segundo os critérios da investigação.
Agora imagine que uma porcentagem desses entrevistados teve uma discussão com seus irmãos bem no dia de responder ao questionário. Pode ter sido por algo sério, como bullying, ou rotineiro como uma disputa no videogame. A questão é: você se sentiria seguro para decidir sua configuração familiar com base no resultado dessa pesquisa?
Não se pode ter tudo
Assim como qualquer outra situação de escolha na vida, ao optar por um caminho é necessário abrirmos mão de outros. Não há um meio termo entre ter ou não irmãos. Ou se vive a experiência com eles, ou não, e a vida pode efetivamente mudar por completo em função disso.
Para Marcela Pisa, a relação entre irmãos é algo único, principalmente quando crescem na mesma casa, convivendo no dia a dia. Ainda que tenham primos ou amigos muito próximos e com afinidade, com certeza são situações diferentes, e não existem respostas prontas ainda mais porque esse é um dilema muito próprio do nosso tempo.
“Há 50 ou 100 anos, a não ser que houvesse algum impeditivo relacionado à saúde da mãe ou do pai, as famílias teriam inúmeros filhos, esse era o cenário comum, era o esperado. As dúvidas sobre ter ou não mais de um filho é algo que nossos avós não experimentaram, e talvez mesmo nossos pais tenham vivido pouco. Nós ainda estamos entendendo isso enquanto sociedade”, afirma.
Ainda que existam diversos estudos e pesquisas, e pitacos para dar e vender sobre esse assunto, a decisão continua sendo exclusivamente da família. Se por um lado a experiência com irmãos não pode ser substituída pelo convívio com outras crianças, ter mais de um filho não é garantia de que eles serão amigos e fonte de apoio e conforto uns para os outros ao longo da vida.
“O papel dos pais é fundamental na criação e fortalecimento desse vínculo. Primeiro, fortalecendo a relação parental entre os próprios adultos e, depois, entendendo e batalhando para proporcionar um contexto que possibilite a construção da relação que desejam para os filhos”, conclui a especialista.