Era uma vez dois irmãos
Em 1812, os Irmãos Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) registraram em um livro intitulado Kinder-und Hausmärchen (Contos Infantis e Domésticos) os contos de tradição oral ouvidos junto a informantes, alcançando êxito imediato para além das fronteiras de seu país, a Alemanha. Filólogos, lexicógrafos e mitógrafos, os Irmãos Grimm, a princípio, buscavam demonstrar a força da literatura nascida no seio do povo, e isso tinha uma razão de ser: seu país ainda não estava unificado, e ameaças externas, como as invasões napoleônicas, acabaram por fomentar os brios locais no tocante à união nacional, e nada melhor do que recorrer às velhas tradições, que remetiam, provavelmente, à mitologia germânica, para promover a unificação territorial. Daí vem a ideia de fidelidade às matrizes tradicionais, que impregnam a primeira edição, abandonada paulatinamente à medida que o livro, reimpresso, alcançava um público cada vez mais amplo.
Os Irmãos Grimm não apenas reproduziam as histórias, mas as analisavam em notas comparativas que traziam, além de versões literárias distribuídas em obras como as italianas Le Piaccevoli Notte (As noites agradáveis), de Giovanfracesco Straparola (1550-1555), O conto dos Contos ou Pentameron (1634-1636), de Giambattista Basile, e as coletâneas francesas de contos de fadas do século XVII, com destaque para Madame d’Aulnoy (1650/1651-1705), criadora do gênero, ou, por outra, a primeira a cunhar o termo “conto de fadas”, duramente criticada por eles.
Também utilizaram a coletânea de Charles Perrault (1628-1703), Histoires ou Contes du Temps Passé, avec des Moralités (História do tempo passado com moralidades), publicada em 1697, com apenas oito narrativas, como modelo, talvez pela concisão narrativa. De inegável origem tradicional, embora modificados e embelezados ao gosto da nobre audiência, característica da “literatura de salão” francesa, que entrou em declínio depois da morte de Luís XIV, os contos de Perrault eram relativamente curtos, mais próximos das versões orais.
Todas essas iniciativas, além das coletâneas provenientes do Oriente (o antiquíssimo Panchatantra hindu e seu desdobramento persa Calila e Dimna; o Śukasaptati, condensado no igualmente persa Tutinama (Contos do Papagaio), além do Livro das Mil e Uma Noites, divulgado no Ocidente por Antoine Galland, eram fontes preciosas para cotejos e confrontos. E, em 1848, quando o neologismo Folclore, ainda envolvido no binarismo passado/presente, foi consignado pelo antiquário inglês William John Thoms (1803-1885), em artigo publicado na revista The Atheneum, o conto tradicional, graças ao sucesso dos Irmãos Grimm, havia alcançado, em muitos países, notadamente na Europa, a merecida atenção dos escritores e estudiosos.
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Algumas, seguindo a picada aberta pelos Grimm, enxergavam nas velhas histórias patrimônios nacionais, a própria alma do povo. O mesmo sentimento de preservação de tradições antigas, ameaçadas de desaparecimento, depois das reformas levadas a efeito pelo czar Pedro, o Grande, moveu Alexander Afanasiev (1826-1871), o mais importante folclorista russo, a anotar e divulgar os contos populares de seu país, publicando-os em um espaço de oito anos (1855 e 1863). Graças a ele, personagens como Vassilissa a Bela, Ivan Filho do Czar e a, agora, sempre lembrada Baba-Yaga tornaram-se conhecidas para além do mundo eslavo.
Outros coletores dedicaram-se especificamente às tradições locais. É o caso, por exemplo, do médico e etnógrafo siciliano Giuseppe Pitrè (1841-1916), que teve em Agatuzza Messia, sua principal informante, uma fonte inesgotável. Sem educação formal, Agatuzza compensava essa “deficiência” com grande capacidade mnemônica, que se constituía num arquivo gigantesco de contos, lendas e provérbios. Um fenômeno. Pitrè a definiu como sua “contadora de histórias-modelo”. O domínio em muitos campos do saber e sua capacidade em extrair, estudar e divulgar as tradições de seu povo, a observação paciente, a leitura arguta, fazem de Pitrè um dos mais importantes folcloristas de seu tempo. E Agatuzza foi o seu principal elo com as velhas tradições daquela que é, segundo Dario Lodi, a região que sofreu, em sentido numérico, dominações como nenhuma outra no mundo.
Foi pra Portugal, ganhou o lugar
Em Portugal, Francisco Adolfo Coelho (1847-1919) foi o desbravador, com a publicação Contos Populares Portugueses, 1879. Segue-o Zófimo Consiglieri Pedroso (1851-1910), com o livro Portuguese folktales (1882), publicado em inglês e que só ganharia uma edição em português em 1910, ano da morte do autor-coletor.
O mais celebrado etnógrafo português, por sua vasta produção intelectual, em campos distintos, foi Teófilo Braga (1843-1924), autor de Contos Tradicionais do Povo Português (1883), publicada em dois volumes, o primeiro de recolhas feitas por ele e o segundo, com contos raros, de coletâneas como O Livro das Linhagens, O Horto do Esposo, de Frei Hermenegildo de Tacos, e Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, de Gonçalo Fernandes Trancoso, de 1575.
A antologia Contos Tradicionais do Algarve, do padre Francisco Xavier de Ataíde Oliveira (1842-1915), englobando 400 contos do sul de Portugal, é considerada por estudiosos, como Paulo Correia, a mais importante daquele país. Entre outras publicações, a importante contribuição de Leite de Vasconcelos (1858-1941), Contos Populares e Lendas, em dois volumes, saiu postumamente, entre 1964 e 1966.
De SIlvio Romero a Câmara Cascudo
No Brasil, a iniciativa pioneira coube ao polígrafo sergipano Silvio Romero (1851-1914), autor de Contos Populares do Brasil (1885), publicado originalmente em Portugal, com organização e notas de Teófilo Braga; este modificou a posição dos contos e não apontou Romero como responsável pela divisão das seções, o que foi motivo de acirrada polêmica e de resposta virulenta do brasileiro, tributário da escola antropológica, que amparou sua pesquisa em questionáveis teorias raciais, dividindo a obra em três seções, a saber:
- Contos de origem europeia: reúne em sua maior parte contos maravilhosos (O Bicho Manjaléu, João mais Maria, Maria Borralheira, Chico Ramela etc.), encontrados em versões portuguesas, e também um conto jocoso (O Padre sem Cuidados), uma fábula (O Cágado e a Festa no Céu) e um conto acumulativo (A Formiga e a Neve, além de contos realísticos (Dona Pinta, Os Três Conselhos).
- Contos de origem indígena: reúne 21 histórias, todas elas protagonizadas por animais, a maior parte corrente na tradição oral de outros países. Um dos contos mais conhecidos desta seção, Amiga Folhagem, no qual o macaco sedento, coberto de mel e folhas, bebe água da fonte guardada pela onça, foi catalogado por Terence Leslie Hansen (1957) em Cuba e outros países americanos de fala espanhola. Outro, O Veado e o Sapo, no qual o animal mais veloz é derrotado em uma corrida pelo mais lento, consta de mais de uma dezena de versões africanas, portuguesas e de outras paragens.
- Contos de origem africana e mestiça: talvez a mais problemática das seções, reúne apenas 16 contos, finalizando com uma facécia, O Negro Pachola, com o Pai José, homem escravizado que, imitando o senhor, tenta seduzir a esposa deste, dando-se mal ao final. Esta história, recolhida também no início e meados do século XX por Lindolfo Gomes e Theo Brandão, parece ter desaparecido por completo do meio tradicional em rejeição ao conteúdo afrontosamente racista. Outras duas, A Onça e o Gato e O Doutor Botelho, calcam por terra essa obsessão pelas origens, marcante na obra de Silvio Romero. A primeira foi divulgada entre as fábulas de Esopo e a segunda, a despeito de ser o Macaco o auxiliar do herói, é uma maldisfarçada versão do Gato de Botas de Perrault. “Botelho”, aliás, parece ser um derivativo de “botas”.
Não se nega a Silvio Romero, no entanto, a honestidade na fixação dos contos, o esforço de divulgá-los em um projeto que incluía ainda dois volumes de cantos populares e o pioneirismo em reunir, em um único volume, histórias de diferentes gêneros. É verdade que, antes dele, o geólogo canadense Charles Frederick Hartt (1840-1878), com Amazonian Tortoise Myths (Os mitos amazônicos da tartaruga, de 1875), reunião de oito fábulas do Jabuti, grande trickster dos contos indígenas, e o general Couto de Magalhães (1837-1898), na coletânea O Selvagem (1876), apresentaram contos e lendas tradicionalizados entre os povos nativos da Amazônia.
Paulista de Guaratinguetá, radicado em Juiz de Fora (MG), Lindolfo Gomes (1875-1953), ao trazer a lume a obra Contos Populares (1918), depois rebatizada como Contos Populares Brasileiros, contribuiu para ampliar não somente o repertório de histórias recolhidas diretamente da fonte da memória, mas também por apresentar, pela primeira vez, em um ciclo, as facécias protagonizadas pelo burlão de origem ibérica Pedro Malasarte.
São 12 histórias, começando com De Como Malasarte fez o Urubu Falar, típico conto picaresco com ecos do Decamerão, e terminando com De Como Malasarte entrou no Céu, este já com evidente ressonância mítica. Há outros ciclos, como o do citado Pai João, do Preguiçoso, do Diabo, além de Narrativas Maravilhosas, Lendas Populares e Religiosas, mais em consonância com o método histórico-geográfico.
Não se pode esquecer do historiador baiano João da Silva Campos (1880-1940), responsável pelos Contos e Fábulas Populares da Bahia (1928), publicado como apêndice de uma obra menor, O Folclore do Brasil, de Basílio de Magalhães. É uma das melhores coletâneas, seja pela qualidade do registro, vigoroso ao fixar também os traços africanos ainda vivos na poesia e na prosódia do Recôncavo, seja pela diversidade das histórias, que, além daquelas oriundas do estado natal do autor, apresenta outras do Piauí e do Maranhão. Não há divisão, nem classificação, apenas a numeração dos 81 contos em algarismos romanos. Difícil apontar apenas alguns, mas O Cunhado de São Pedro, O Amarelo Mentiroso, Dom Maracajá, O Rei Doente do Mal de Amores e A Aranha Caranguejeira e o Quibungo são destaques de uma recolha excepcional.
E chegamos ao ano de 1946 quando Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), renomado e prolífico etnógrafo, lançou Contos Tradicionais do Brasil, a mais divulgada coletânea do gênero. Cascudo tem por modelo Teófilo Braga, optando pelo designativo “tradicionais” para referir-se aos 100 contos reproduzidos em sua antologia, nem todos recolhidos por ele. Alguns foram pinçados de estudos e coletâneas de Rodrigues de Carvalho, Lindolfo Gomes, Silvio Romero, Desembargador Afonso Cláudio, José Carvalho, João da Silva Campos e Gustavo Barroso, entre outros. A divisão segue o método histórico-geográfico da Escola Finlandesa, desenvolvido por Antti Aarne, revisto e ampliado por Stith Thompson, que traduziu a obra Verzeichnis der Märchentypen (1910) para o inglês, intitulando-a The Types of the Folktale.
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Cascudo ainda recuperou o gênero medieval dos exempla (exemplos), um misto de contos novelescos com alguns contos maravilhosos, e ainda incluiu Seis Aventuras de Pedro Malazarte (sic.), estas um tanto deslocadas na seção. As versões brasileiras de Chapeuzinho Vermelho (O Chapelinho Vermelho), O Pequeno Polegar, A Roupa Nova do Rei (A Roupa do Rei) decepcionam pela pobreza de ações e não parecem legítimos contos populares, mas recriações literárias.
A divisão proposta pelo mestre potiguar − além dos Contos de Exemplo já citados, engloba os Contos de Encantamento, de animais, Facécias, Religiosos, Demônio Logrado e Acumulativos, seções baseadas no Sistema Aarne-Thompson −, implica também alguns problemas, em especial quando propõe um ciclo da Morte, no qual há apenas um conto, uma seção de Contos Etiológicos e outra denominada de Natureza Denunciante. Há ainda, um relato, A Música dos Chifres Ocos e Perfurados, na seção Tradição, um tanto deslocado por não trazer, necessariamente, uma história.
Os contos de animais são em maior parte reproduzidos do imprescindível trabalho de Silva Campos. A maior contribuição do livro reside na forma como Cascudo registra as histórias recolhidas por ele, algumas belíssimas, como A Princesa do Sono sem Fim (versão de A Bela Adormecida no Bosque), O Veado de Plumas, A Princesa de Bambuluá, O Espelho Mágico, Couro de Piolho e Maria de Oliveira. A introdução também traz um ensaio vigoroso, e, apesar de alguns postulados evidentemente invalidados pela passagem do tempo, a escrita poética de Cascudo prevalece.
O autor publicaria, em 1952, Literatura Oral, dedicando várias páginas aos contos populares, e Trinta Histórias de Bibi, edição portuguesa, reunião de contos da ama de sua casa, Luísa Freire, fonte preciosa de muitas informações etnográficas coligidas pelo mestre.