Até 2021, quando se falava sobre paternidade no Brasil, as noções sobre a masculinidade tinham sempre como base a branquitude. Mas, se a raça impacta todos os aspectos da vida das pessoas pardas e pretas, por que não haveria de impactar também a experiência da paternidade? Com o objetivo de traçar um panorama sob o ponto de vista dos pais negros, um estudo inédito do Instituto Promundo, publicado naquele ano, revelou especificidades até então pouco observadas quando discutimos a paternidade negra.
Por exemplo, seis em cada dez pais negros (65%), de acordo com o relatório, já sofreram discriminação quanto aos cuidados que têm com os filhos. O levantamento, o primeiro sobre as paternidades negras no Brasil, ouviu 180 entrevistados, a partir de um formulário divulgado pelo instituto nas mídias sociais, como WhatsApp, Instagram e Facebook.
“Um pai preto é estereotipado como um homem violento, que não dá carinho. Quando veem a gente com nossos filhos, acham que não vamos dar conta, que seremos grossos e violentos a qualquer momento. Por isso muitas pessoas se sentem mais à vontade em dar pitaco na nossa criação”, diz Sérgio Carolino, criador de conteúdo digital sobre paternidade no Instagram e pai de Maria Antônia, 5 anos, e Caetano, 3 anos.
Em suas conclusões, os pesquisadores Daniel Costa Lima e Luciano Ramos, apontam para o racismo estrutural como um dos principais elementos de impedimento da paternagem do homem negro.
“O homem preto brasileiro, com todas as precariedades que lhes foram impostas, só teve a possibilidade de começar a exercer a paternidade após a abolição da escravatura, em 1888. Logo, ele está há menos de dois séculos exercendo paternidades nessas terras. Um século e meio, quando se trata de desenvolvimento humano, é quase nada. Toda memória de paternidade do homem preto anterior ao século XIX é memória afetiva da África“, observam os autores do relatório.
O pai de Carolino, por exemplo, saía para trabalhar por volta das 7h e só voltava depois das 23h. Quase não via os filhos. Nunca lhe faltou nada financeiramente, mas ele nunca passou férias com a família.
A paternidade de Carolino é completamente diferente — o que acabou afastando a maioria de seus amigos de infância.
“A herança que o racismo e a escravidão deixaram foram as famílias pretas em situação de vulnerabilidade. Afinal: que preto é herdeiro?”, questiona Carolino. “No Brasil, os pretos são a maioria da classe mais pobre. São eles em sua maioria que precisam sair cedo de casa para trabalhar, moram mais longe do trabalho e passam mais tempo dentro de uma condução. São homens que às vezes emendam dois e três empregos. Por isso, é ainda mais difícil praticar a parentalidade sendo homem e preto. Muitas vezes acabamos criando os filhos de outras pessoas, brancas.”
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Estereótipos e racismo
Além do fator histórico, é importante citar a violência: segundo o Mapa da Violência de 2017, a cada 23 minutos um jovem preto é morto no país. Ou seja, a cada 23 minutos, uma criança negra fica sem pai, ou um jovem negro não se tornará pai.
Pais pretos também sabem que, mais cedo ou mais tarde, seus filhos cruzarão com o racismo. A escola, infelizmente, é possivelmente o primeiro lugar onde as crianças pretas lidam com o preconceito. Carolino conta que, ao procurar uma escola para os filhos estudarem, levou em consideração um ponto importante: há funcionários pretos como educadores ou outros alunos negros em sala de aula?
“Quando nossos filhos vão crescendo sabemos que eles vão ser mais parados em blitzes e serem sempre mais suspeitos de algo. Além de toda a preocupação que temos como pais, ainda temos que lidar com o medo do racismo. Sabemos que em algum momento ele vai enfrentar a nossa família e não vai ser aquele racismo mascarado, mas o descarado mesmo. Por isso, estamos sempre na defensiva e preparados para quando esse momento chegar”, ressalta.
Paternidade dividida
O modelo de paternidade mudou: já não se espera que os pais sejam apenas os responsáveis por prover financeiramente a família. Desde que as mulheres entraram no mercado de trabalho, e as mães passaram a lidar também com a sobrecarga, acumulando funções, a pressão para que os homens assumam também um papel de cuidador de seus filhos é cada vez maior.
Mesmo na bolha da chamada “paternidade ativa” falar sobre a paternidade negra ainda é um desafio. “Não é que pais pretos não se importem ou que não busquem ser os mais amorosos possíveis. Mas é preciso se perguntar: Qual é a rotina dos pais negros brasileiros? Como funciona para um assalariado, que faz a jornada de 44 horas semanais por um salário mínimo, na hora de decidir entre trabalhar mais ou cuidar das crianças?”, questiona Diego Francisco, um dos pais citados no documento.
“Sempre costumo falar que uso minha própria paternidade para curar a que eu (não) tive com meu pai. Não tive sua presença e só hoje vejo como isso me fez falta e ainda faz”, diz Carolino, que é fotógrafo e fisioterapeuta, mas hoje trabalha com a esposa, a influenciadora digital Andressa Reis. “O assunto que mais levo para a terapia é essa ausência, essa mágoa que ainda tenho de não ter tido meu pai presente. Por mais que não tenha sido totalmente culpa dele. Hoje faço questão de ser e estar presente na vida dos meus filhos, não só por eles, mas também por mim.”
Como trabalha com a esposa, que é mais requisitada para trabalhos publicitários na internet, no dia a dia Carolino acaba tendo mais tempo disponível e assume algumas das demandas das crianças. Por exemplo, é ele quem costuma levar e buscar os filhos na escola, porque é o único do casal que dirige.
“Estamos sempre bem alinhados: nós dois conseguimos perceber o que precisa ser feito, sem que um fique falando para o outro. Acabo ouvindo que sou um pai muito bom, quando na verdade só faço o meu papel.”
Com a divisão das funções totalmente compartilhada, aos poucos ele se afastou de muitos amigos de infância, que ainda exercem o modelo de paternidade de gerações anteriores.
“Aqueles que já me conhecem e sabem o meu posicionamento acham que vou estar sempre julgando e muitas vezes nem sou convidado para os eventos. No fim das contas, acabo sempre na minha ‘panela’, ou no grupo das mães, com quem mais me identifico”, diz ele.
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Para trocar informações sobre a paternidade preta, Carolino acabou encontrando um canal de segurança com outros pais pretos: Rafael Santos, do canal @Sankofamilly, que fala de paternidade preta e a violência, e Tadeu França (@otadeufranca), que também aborda os temas em sua conta no Instagram.
“Temos uma vivência da paternidade muito parecida e muitas vezes estamos atravessando o mesmo problema ou vivendo a mesma felicidade. Trocamos ideias sobre filhos, relacionamento, parentalidade, racismo. Acaba sendo um porto-seguro”, afirma o fotógrafo. “Mesmo em outros grupos de pais, esbarramos em uma misoginia muito grande. São pais que se dizem desconstruídos, que têm um conteúdo bacana na internet, mas no privado acabam com um tipo de conversa que hoje não consigo mais deixar passar.”
Estante Quindim
Conheça 3 livros que retratam a relação entre pais e filhos: