Sabe aquela história de que ficamos tão perdidas depois da maternidade que nem sequer lembramos dos nossos próprios desejos e vontades? Hobbies então, nem se fala! Se antes gostávamos de sair para dançar, ler na praia, fazer uma trilha ou acampar com amigos, depois dos filhos parece que tudo isso é substituído por simplesmente tomar café enquanto ainda está quente, ir ao banheiro sozinha e tomar banho com calma.

A importância de repensar quem somos na maternidade
Foto: Canva

Para reverberar a nossa conversa, convidamos a escritora, psicanalista e mãe Elisama Santos para conversar sobre a importância de não nos anularmos em função da maternidade, considerando não só as consequências para a saúde mental das mães, já tão sobrecarregadas, como também os benefícios de mostrar aos nossos filhos que somos mais do que mães: somos indivíduos com desejos, sonhos, vontades – e cansaço.

“Chame a culpa para conversar”

Ser mãe pode ser seu papel favorito na vida (é o meu, também). Mas, ainda assim, não é o único. Somos seres múltiplos e existimos para além da maternidade. Enquanto algumas querem fazer um curso de especialização no exterior, outras preferem escalar montanhas. Enquanto umas desejam investir em carreiras acadêmicas e científicas, outras trabalham com voluntariado e resgate de animais.

Se o exercício da maternidade é diverso, como explicar que tantas de nós se sintam culpadas e percebam seu maternar questionado (e, até mesmo, seu amor pelos filhos) quando se permitem fazer atividades e ter desejos que não estão relacionados com as crianças?

Para Elisama Santos, é preciso reconhecer essa culpa e “chamá-la para conversar” pois, ao fazermos isso, passamos a perceber o quanto ela é social. “Quando paramos de individualizar o problema, entendemos que existe uma construção social que faz com que a gente se sinta culpada, e aí temos que decidir o que fazer com ela. A gente olha para essa construção social e pensa, ‘ok, eu não quero ser escrava disso’. Então eu vou respirar fundo e entender que essa culpa fala muito mais desse país que é cruel com as mulheres de diversas formas do que das minhas capacidades ou incapacidades”, explica a psicanalista.

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“Dividir nossa vulnerabilidade com as crianças nos humaniza diante delas”

É claro que nem sempre nossas próprias crianças vão compreender a nossa necessidade de existir e ser feliz em outros papéis que não o da maternidade, especialmente quando ainda são bem pequenas e têm, nas mães, seu mundo inteirinho. Mas, conforme vão crescendo, não só podemos como devemos mostrar que somos pessoas que, assim como elas, sentem medo, cansaço e frustração, que erramos e nos atrapalhamos mesmo tentando acertar.

Para boa parte de nós, que cresceu sem jamais ter visto nossas mães e pais chorando – ou nos pedindo desculpas por terem errado conosco -, isso pode ser bem difícil. Mas dividir nossa vulnerabilidade com as crianças faz parte de um processo fundamental que nos humaniza diante delas e, em consequência, contribui para que eles aprendam a lidar com a própria humanidade também.

Elisama destaca que dividir nossas fragilidades com os filhos não é o mesmo que depositar neles nossos problemas e angústias como se fossem adultos. “Dividir a humanidade com a criança não significa que eu vou desabafar, contar os meus problemas. Não é assim. É respeitar cada fase, a idade da criança, e entender que tem coisas que ela não precisa saber. Você pode dizer ‘uma coisa importante que a mamãe queria muito não deu certo e por isso eu estou bastante frustrada’. Não precisa entrar em muitos detalhes, mas é bonito e importante para a relação”, explica.

De acordo com o crescimento das crianças, nossa capacidade de conversar e explicar outras questões também aumenta. E, nesse ponto, Elisama faz mais um destaque muito importante sobre como é fundamental nos despirmos desse papel da mãe que é santa, abnegada, que está sempre feliz e bem-disposta ou, como ela mesma diz, a mãe que sempre responde que “não foi nada” quando a criança pergunta o que aconteceu, ainda que ela perceba que algo não está bem.

A psicanalista ainda fala sobre como é essencial assumir a verdade da relação com nossos filhos com todo cuidado e respeito. “A gente tem essa mania de mentir para a criança mesmo ela sabendo que a gente não está bem. E, olha só, todos nós criamos histórias nas nossas cabeças. Se eu não digo para a criança o que está acontecendo, a mentezinha dela vai criar uma história. E, na verdade, nessa história a culpa vai ser dela, e a gente não quer isso, né? Então, à medida que eu conto para a criança o que aconteceu, eu dou ferramentas para que ela entenda a realidade sem fantasiar sozinha sobre ela”.

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“Quando eu digo que não estou dando conta, isso diz muito mais sobre a minha falta de apoio do que sobre a minha competência ou incompetência”

A importância de repensar quem somos na maternidade
Foto: Canva

Nessa dança entre a humanização e o estabelecimento de limites, muitas vezes ficamos com a sensação de que estamos deixando as crianças por conta própria, desamparadas. É aí, justamente, que entra a rede de apoio, que para um número imenso de mulheres ainda é artigo de luxo.

“É cruel demais que a mulher se sinta a única responsável, o tempo inteiro, por cuidar da criança, e que ela precise estar todo o tempo disponível emocionalmente. É importante entender que quando eu digo que não estou dando conta, isso diz muito mais sobre a minha falta de apoio do que sobre a minha competência ou incompetência”, comenta Elisama.

Como, então, podemos estabelecer esses limites na prática, sem que a criança sinta que a culpa, ou a responsabilidade pelo cansaço da mãe não são dela? A chave, como para a grande maioria dos desafios que enfrentamos ao longo da vida, está na comunicação.

“É essencial comunicar isso para a criança – dizer ‘a mãe tá cansada, a mãe teve muito trabalho hoje’ – mas não ‘filho, o mundo tá pesando, então pelo menos você seja legal, pelo menos você fique quieto’. A criança não tem a responsabilidade de sanar, de amenizar as dores do mundo pra que eu me sinta melhor. Eu preciso aprender a direcionar para as pessoas corretas os problemas e as dores que me afligem”, explica a especialista.

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“A gente não dá nome às violências das outras relações”

A importância de repensar quem somos na maternidade
Foto: Canva

Como quase tudo na maternidade é “junto-ao-mesmo-tempo-agora”, em meio aos desafios da educação dos filhos, da necessidade de estabelecer e fortalecer os vínculos afetivos, e de olhar para nós mesmas como indivíduos, vem também a necessidade de nos redescobrir. Se antes eu gostava de sair para correr ouvindo música, será que ainda gosto? Se antes o melhor programa pra mim era maratonar filmes e séries, será que ainda consigo me divertir assim?

Para Elisama, a ideia de que vamos voltar a ser a pessoa que fomos antes da maternidade é cruel e violenta. “Nós temos a tendência de acreditar que a gente pode voltar no passado, né? Como se a gente pudesse voltar o filme. Não, não vai acontecer. Eu sou uma mulher diferente, meu corpo passou por experiências diferentes, a minha vida, a minha alma passou por experiências diferentes – eu vou me abrir para descobrir quem é essa mulher, que, além de tudo, é uma mulher que tem filhos. Que é uma mulher que, além de tudo o que ela viveu antes da chegada de seus filhos, ela tem a experiência de estar educando as crianças”, diz.

E essa (re)descoberta dos nossos gostos, do que nos interessa agora, atrai, traz prazer e satisfação, é uma jornada – adivinhe só? – individual, mas que não precisa ser solitária. É possível (re)experimentar o que trazia alegria e plenitude antes da maternidade, mas com um olhar atento e o coração aberto para (re)conhecer como aquilo nos impacta agora. Talvez a essência das atividades permaneça a mesma, mas com algumas mudanças para acomodar e atender a pessoa que você está se tornando.

Se diante do desejo e da necessidade de caminhar rumo a essa descoberta bater o cansaço (spoiler alert: vai bater!), vale a pena refletir com sinceridade sobre o quanto dele realmente é provocado pelas crianças e o quanto vêm de outras faltas, que por muitos motivos acabamos atribuindo aos filhos.

“A gente não dá nome às violências das outras relações e fala: meu cansaço é da maternidade. Mas se a gente parar para refletir um pouquinho, vai perceber que o cansaço que a maternidade traz é menor do que o cansaço dos outros. Se as outras relações não me demandassem tanto, não me esgotassem tanto, não me pedissem tanto, eu teria mais para dar para a maternidade”, afirma Elisama.

Para a psicanalista, é comum que se culpe a criança por um cansaço que não é ela que provoca ou, pior, por pedir algo que uma criança normalmente pede, mas que nós não temos para dar porque muitas outras pessoas já sugaram tudo o que tínhamos a oferecer. Só assim, enxergando esse cenário e dando o devido nome às coisas, é que vamos conseguir lidar com nossos filhos sem cobrança, entendendo que aquilo que lhes oferecemos eles não têm a responsabilidade de nos devolver.

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“A mãe não é obrigada a ofertar tudo”

Se o parto foi normal ou cesariana, se a amamentação foi em livre demanda ou não, se a criança usou chupeta ou não, se a introdução alimentar foi feita apenas e tão somente com orgânicos… Essas e muitas outras, infinitas preocupações, vêm tomando grandes proporções na maternidade recente e, naturalmente, cobrando um preço bastante alto por isso.

É claro que desejamos oferecer as melhores condições possíveis aos nossos filhos para que cresçam e se desenvolvam como seres humanos completos, felizes, cidadãos ativos e úteis para a sociedade. Mas, além dos recortes sociais que precisamos fazer para entender o que significa ser completo, feliz e útil para cada família e cada indivíduo, é preciso também refletir sobre essa ideia de que tudo, absolutamente tudo, deve vir da mãe.

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“Eu posso ser a pessoa que vai cozinhar com a criança, e que vai ofertar para ela meu amor dessa forma. Posso ser a que vai ler com ela, feliz. E quem não gosta de brincar? A brincadeira é parte essencial para o ser vivo, a gente precisa brincar, mas não necessariamente de boneca, de carrinho. Por isso é tão importante a criança ter outros agentes ao redor dela, para que alguém possa ofertar isso também, porque a mãe não é obrigada a ofertar tudo”, reforça Elisama.

Conforme a criança cresce, conseguimos explicar que não gostamos de uma determinada brincadeira, mas que podemos desenhar e colorir com ela, por exemplo. Que não gostamos de andar de bicicleta ou de brincar de correr, mas que podemos ensinar a bordar. As possibilidades são muitas e, assim, nossos filhos vão aprendendo a se relacionar, entendendo que nós também existimos e temos nossos próprios gostos.

Sobre a ideia de que a mãe é a única responsável por oferecer tudo o que a criança precisa e deseja para existir e ser feliz, Elisama fala sobre como essa é uma preocupação típica das maternidades mais recentes, às quais fomos acrescentando camadas e mais camadas.

“As nossas mães não se preocupavam se tinham que brincar conosco, se estavam dando orgânicos, se amamentavam em livre demanda, não faziam ideia da pedagogia das escolas. Essa é mais uma camada de opressão que entrou na nossa vida, e traz uma perspectiva absurdamente individualista. Como se nós, sozinhas, conseguíssemos suprir todos os problemas do mundo. Como se bastasse querer – e não basta querer”, explica a psicanalista.

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“O tempo, sozinho, nem cura, nem faz doer – são as relações e o que está à nossa volta”

Com tantas demandas e uma cobrança constante por parte da sociedade, da própria família e, frequentemente, de nós mesmas, muitas vezes nos vemos surpreendidas por uma criança que agora já tem a nossa altura enquanto nos perguntamos “onde está meu bebê?”.

A falta de apoio, o cansaço, a pressa e as demandas da rotina (sem falar do trabalho) podem acabar nos trazendo uma relação conturbada com o tempo e a passagem dele. Se tantas vezes o sentimento é de que os dias se arrastam, em outras tantas temos certeza: ele voa. É o grande mistério que envolve a maternidade, com as noites que parecem infinitas enquanto os anos insistem em passar depressa.

“O tempo, sozinho, nem cura, nem faz doer. São as relações e o que está à nossa volta que certamente fazem com que a gente lide com o tempo de formas cruéis com a gente. Quanto mais temos a noção de que a vida é impermanente, e que cada segundo é precioso, mais a gente se relaciona melhor com essa vida bem vivida, com esse tempo bem vivido”, diz Elisama.

Para as mães de crianças de todas as idades, a psicanalista propõe uma reflexão, abraçada por essa representante da Família Quindim que aqui vos escreve: “Quem é essa mulher que eu me tornei? Essa é uma pergunta mais importante e mais respeitosa com a nossa história do que ‘como eu volto a ser a mulher que eu era antes?’. Essa mulher que você era antes morreu. A gente morre para dar espaço para algo novo”, diz a escritora. “A gente não resgata nossa identidade. A gente constrói uma identidade nova”, finaliza Elisama.

Veja também: 9 filmes para refletir sobre o que é ser mãe e lembrar que cada maternar é único.

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ESTANTE qUINDIM

Conheça livros infantis já enviado pelo Clube Quindim que abordam questões da maternidade.

A árvore generosa (autor Shel Silverstein, editora Companhia das letrinhas)
A árvore generosa, de Shel Silverstein
Crec (autoras Nora Hilb e Marcela C. Hilb, ilustradora Nora Hilb, editora Pingo de Luz)
Crec, de Nora Hilb e Marcela C. Hilb
Quando Mamãe virou um monstro (escritora Joanna Harrison, editora Brinque-Book)
Quando Mamãe virou um monstro, de Joanna Harrison